Oposição pretende privatização em massa na Venezuela e governo tem dilema sobre ampliação do Estado
Brasil de Fato
No próximo domingo (28), os eleitores venezuelanos vão dizer se preferem manter um projeto de governo que se diz socialista ou dar um giro à direita. Dos 10 candidatos que disputam as eleições do país, dois despontam e são os favoritos para ganhar. Pelo governo, o atual presidente Nicolás Maduro busca sua reeleição para um terceiro mandato. Do lado da oposição, o ex-embaixador Edmundo González Urrutia tem na ultraliberal María Corina Machado o seu grande cabo eleitoral para mudar os rumos da política venezuelana.
Há 12 anos no poder, Maduro teve que mudar a rota ao longo do caminho. Com sanções dos Estados Unidos que limitaram a venda do principal produto venezuelano, o petróleo, o país viu sua entrada de dólares diminuir e o governo fez ajustes nas suas políticas. Nos últimos anos, o presidente promoveu abertura de capital por meio da venda de ações de empresas públicas e terceirização de serviços, mas ainda mantém o socialismo no horizonte, destacando que é um “socialismo do século 21” com características venezuelanas.
O bloqueio contra a indústria petroleira foi endurecendo e o país passou por uma hiperinflação, chegando a marca dos 130 mil por cento ao ano. Passado o período mais duro da crise, a economia venezuelana conseguiu se equilibrar no primeiro semestre de 2024. A inflação baixou e o câmbio estabilizou nos últimos 6 meses. Por isso, a expectativa do governo é que, mesmo com a continuidade do bloqueio ao setor petroleiro, o país consiga ter dinheiro para manter programas sociais e expandir os gastos públicos.
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Para o sociólogo e mestre em comunicação política Franco Vielma, o presidente tem sido pragmático nas tomadas de decisões e tende, agora, a ter uma postura mais parecida com o que foram seus primeiros 6 anos, em que o governo manteve as políticas sociais de Chávez e tentou expandir o papel do Estado na economia.
“Maduro prometeu Mais Mudanças e Mais Transformações para sua política econômica. Isso está vinculado com uma oferta de campanha associada às necessidades reais da população, de situações de mudança e de transformações, preservando a estabilidade. O povo quer mudanças, mas que se proteja o Estado social e as políticas públicas. Ou seja, a atenção à população vulnerável. Maduro conjugou todos esses elementos no momento em que anuncia grandes missões sociais”, afirmou.
Ao longo dos 14 anos de governo, Maduro deixou de ter uma visão fixa sobre a participação do Estado na economia e promoveu uma série de aberturas durante a crise. Venda de ações de empresas estatais, redução dos gastos públicos e uma redução da liquidez do Estado foram políticas marcadas de seu governo. Por isso, duas correntes começaram a antagonizar ideias no interior da revolução. De um lado, a defesa da ampliação dos gastos públicos. Do outro, um pragmatismo com base na crise econômica do país.
O desafio para os próximos 6 anos será reunificar as diferentes correntes chavistas, desde as que pensam que é mais importante ampliar os salários e os gastos públicos, até os que acreditam que o contexto econômico interfere diretamente nas políticas do governo. De acordo com advogado e especialista em economia política Juan Carlos Valdez, essa será a chave de um governo Maduro 3.
“Esperamos que se abra um processo de discussão novamente no seio das forças que apoiam a revolução. Primeiro resolver aquelas situações que fizeram muitos revolucionários se distanciarem do governo, e que até se opunham ao governo. É preciso abrir a discussão. Esse é um desafio para Nicolás: reunificar as forças revolucionárias por meio do debate. Só no debate e na discussão franca vamos conseguir as soluções para os problemas que não resolvemos”, disse ao Brasil de Fato.
Oposição quer privatizar
Já o projeto encabeçado por María Corina Machado tem como base uma série de privatizações. Mesmo sem poder ser candidata, a ex-deputada montou um plano de governo que apresenta um pacote amplo de privatizações. Uma delas é a estatal petroleira PDVSA.
A Carta Magna venezuelana não permite a venda da empresa de um setor considerado fundamental da economia sem uma mudança constitucional. O artigo 303 da Constituição do país estabelece que o Estado tem “todas as ações da Petróleos de Venezuela, SA, ou da entidade criada para a gestão da indústria petrolífera”. Ou seja, mesmo que a empresa mude de nome, 100% das ações da empresa são do Estado venezuelano.
Ainda assim, a ex-deputada promete uma série de desestatizações. De acordo com Ociel Lopez, sociólogo e autor do livro Eleições na Venezuela 2024: o que vai acontecer? isso pode levar a uma disputa interna da oposição em torno do papel das empresas estatais. Isso porque, muitos dos setores que apoiam a oposição estão ligados ao funcionalismo público. Um outro problema são os próprios trabalhadores dessas empresas estatais, que tenderiam a se opor às privatizações.
Segundo a Pesquisa Nacional de Condições de Vida (Encovi) de 2023, levantamento anual realizado por três universidades venezuelanas, o número de trabalhadores do setor público gira em torno de 20% da população economicamente ativa, ou 4 milhões de pessoas.
A proposta do grupo de María Corina pode, para Ociel Lopez, enfrentar uma oposição desses setores que pautaram a sua vida nos serviços públicos. “Isso já existia antes do chavismo. A PDVSA não foi privatizada, mas houve tentativas. María Corina é de um setor extremo que sempre pediu privatização. Essas duas grandes correntes vão se colocar em choque. Edmundo tenta jogar a política e poderia inclusive ser uma espécie de resfriamento da temperatura das emoções para tornar viável uma mudança de governo. A mudança não acontece só pelo triunfo eleitoral, mas pela viabilidade posterior. Por isso a tensão para o dia 29”, afirma ao Brasil de Fato.
Durante os governos de Hugo Chávez, a Venezuela passou por um processo de estatização de empresas, principalmente dos setores estratégicos. A ideia é que não só a prestação de serviços fosse pública, mas que a arrecadação das empresas estatais fosse toda para o Estado investir em políticas sociais.
A proposta da oposição é desfazer tudo que foi feito não só nos 2 mandatos de Chávez, mas em todo o corpo estatal montado pelos governos progressistas no país. De acordo com Franco Vielma, essas propostas podem levar a uma crise institucional no país, já que o Legislativo e o Judiciário iriam atuar para barrar o projeto de privatização das principais empresas, em especial a PDVSA.
Para ele, essas propostas já são velhas e não fazem mais sentido. Primeiro porque elas já aconteceram antes. Segundo porque, em uma crise profunda da PDVSA, o preço da estatal cairia muito no mercado internacional e o Estado venezuelano perderia duas vezes: uma com uma privatização abaixo do preço que ela poderia valer e outra com a falta de arrecadação com o petróleo.
“As privatizações propostas pela oposição são anacrônicas na Venezuela. Já vivemos isso nos anos 1990, onde muitas empresas básicas do Estado e algumas de serviços públicos foram parcial ou totalmente privatizadas, o que foi desfeito depois de 1999 com Chávez. O que Chávez fez, em muitos casos, foi reestatizar empresas que eram estatais. A venda da PDVSA hoje seria o pior negócio da história dos negócios porque o bloqueio fez com que a petroleira perdesse ações no mercado, não pudesse refinanciar dívidas e hoje a empresa não está no seu melhor momento, o que se venderia a preço de banana”, afirmou.
A ideia de privatização foi uma feita pelo ex-presidente Rafael Caldeira (1994-1999), eleito com um programa ecônomico neoliberal chamado de “Agenda Venezuela”. O objetivo era implementar ajuste fiscal e abertura de capital, principalmente com a venda da estatal PDVSA. Em 1997 ele aprova a lei de privatizações. O objetivo era implementar a abertura do mercado petroleiro, o que tirou da estatal petroleira a função de extrair e produzir petróleo. A PDVSA passou a ter como objetivo o agenciamento de contratos para a concessão de poços.
De acordo com o cientista político Juan Carlos Valdez, essas medidas são perigosas para a sociedade venezuelana. Para ele, as privatizações não são ruins por si só, mas o mercado venezuelano é dependente da renda petroleira e, vender a empresa seria abrir mão da entrada desses dólares.
“Esse extremo de María Corina, de Javier Milei [presidente da Argentina], que tem que privatizar tudo, é muito perigoso. Porque eles não estão sugerindo nada novo. Eles já fizeram isso com Menen. Isso foi um erro gravíssimo. A privatização não é ruim per se. Como a estatização também não é ruim por si só.”
“São ferramentas econômicas que em momento determinado podem ser eficientes. Eu sou do tipo que não acha que o Estado tem que estar produzindo calças ou roupas íntimas, isso não tem sentido. O Estado tem que se concentrar em atividades econômicas que sejam estratégicas. Aquelas atividades que em um determinado momento podem afetar todo o país”, afirma.