Entenda como são os ataques cibernéticos que podem ter afetado as eleições na Venezuela
Brasil de Fato
O Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela (CNE) anunciou no dia 28 de julho a reeleição de Nicolás Maduro para um terceiro mandato e, ao mesmo tempo, denunciou que sofreu um ataque hacker contra seu sistema eleitoral que impossibilitaria a publicação dos resultados detalhados do pleito – até esta sexta-feira (09), 12 dias depois do pleito, o órgão segue sem divulgar os números.
Após o anúncio do CNE e, principalmente, depois de alegações de “fraude” feitas sem provas por um setor da oposição, a origem e a real ação desses ataques se tornaram pontos fundamentais da crise que se abriu na Venezuela logo após o período eleitoral. Apesar de Maduro ter recorrido ao Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) pedindo que a Corte investigue o caso, pouco se sabe sobre a operação que atingiu o sistema de transmissão de dados do Poder Eleitoral.
Analista ouvidos pelo Brasil de Fato destacam que, para entender como os ataques teriam agido, é importante compreender como funciona a contabilização e a transmissão dos votos na Venezuela. O país tem urnas eletrônicas que imprimem não só um boletim eleitoral (chamado de ata) com a soma total dos votos em um dia, como também um comprovante individual por voto. Cada urna envia a soma total dos votos para o centro do CNE em Caracas por uma rede própria da CanTV, empresa estatal de telecomunicações da Venezuela.
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Essa transmissão está fora do sistema de internet e não pode sofrer ataques hackers. Portanto, segundo especialistas consultados pela reportagem, os ataques podem ter acontecido no momento de transmissão dos dados para um sistema conectado à internet, que serviria para publicar os resultados detalhados no site do CNE.
O sociólogo e doutor em ciência política Sérgio Amadeu, especialista em tecnologia da informação, explica que há dois tipos de ataques possíveis: de intrusão ou de negação de serviço. No primeiro caso, o hacker invade o sistema de uma máquina e pode apagar ou modificar os dados. Essa, no entanto, não foi a afirmação do CNE venezuelano, que disse ter tido um problema na transmissão dos dados.
Já o ataque de negação de serviço – ou DDoS, como é chamado – é uma forma de congestionar um sistema com um volume muito grande de pedidos de acesso, forçando a sua queda. Ou seja, muitos computadores tentam, ao mesmo tempo, entrar no mesmo site e fazer os mesmos pedidos, criando um fluxo insuportável para uma determinada página online.
O exemplo usado por Amadeu para ilustrar o funcionamento de ataques de DDoS é um apagão. “Quando a luz cai, não é possível fazer nada. Mas quando ela volta, você pode retomar tudo que estava fazendo. O mesmo funciona com esse ataque: os dados não vão ser apagados, eles só ficam paralisados”, explica.
Os ataques deste tipo foram identificados pela Netscout, uma plataforma estadunidense criada em 1984 que avalia o desempenho de páginas na internet. Segundo um levantamento da plataforma, houve um “aumento incomum” no número de ataques DDoS na Venezuela no dia das eleições, que se estenderam também no dia seguinte ao pleito. De acordo com a Netscout, o número de ataques por segundo foi 690 vezes maior em 28 de julho se comparado ao dia anterior.
Ao Brasil de Fato, Amadeu afirmou que, para os ataques funcionarem, eles devem ter atingido a máquina que enviou os dados eleitorais para um sistema com conexão à internet, ou a máquina que recebeu essas informações. Até o momento, o CNE não especificou como sofreu os ataques, apenas disse que os episódios atrasaram a contabilização e a divulgação dos dados.
“Eles sofreram ataques, de fato”, afirma o especialista. “Mas ataques de DDoS não destroem os dados. […] Esse tipo de ataque não justifica a demora na divulgação dos dados. A Venezuela certamente sofreria com esse tipo de ataques em um momento eleitoral, era previsível. Mas é preciso ter um relatório público do que aconteceu”, afirmou.
O presidente Nicolás Maduro disse em seu discurso logo depois da vitória que o ataque foi realizado a partir dos Estados Unidos. Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a origem dos ataques de DDoS são realmente possíveis de serem identificados, já que são feitos na internet. Para isso, é preciso rastrear o IP de onde foi feito aquele movimento. O IP é como um endereço que cada computador tem.
Segundo Amadeu, é possível que esses ataques usem computadores de terceiros como intermediários – os chamados proxys – mas é pouco provável neste caso, já que para os DDoS são usados milhares de máquinas de forma simultânea.
Técnicos do CNE afirmaram ao Brasil de Fato que houve também uma série de ataques contra o site do órgão eleitoral que também tiveram como objetivo derrubar o sistema. Por isso, a plataforma estaria sendo mantida fora do ar.
Centro Carter questiona
Um dos principais observadores convidados para acompanhar o pleito, o Centro Carter dos Estados Unidos questionou a veracidade dos ataques. A chefe da missão de observação do grupo, Jennie Lincoln, afirmou nesta quinta-feira (8) que “não há evidência” de que o sistema eleitoral da Venezuela tenha sido alvo de um ataque hacker nas eleições presidenciais.
“Empresas monitoram e sabem quando há negações de serviço [ataques cibernéticos] e não houve um naquela noite”, explicou Lincoln em entrevista em Atlanta, nos Estados Unidos. “A transmissão dos dados de votação é feita por linha telefônica e telefone via satélite, e não por computador. Eles não perderam dados”, acrescentou.
O chanceler venezuelano, Yván Gil, respondeu afirmando que todo o trabalho e prestígio construído pelo ex-presidente dos EUA e fundador da organização, Jimmy Carter, em seu centro de monitoramento eleitoral foi “jogado no lixo” por Lincoln, a quem classificou como “assalariada do Departamento de Estado” dos EUA.
A participação do Centro Carter nas eleições da Venezuela como observador foi definida em um acordo assinado entre o governo e parte da oposição em Barbados, em outubro de 2023. O grupo já acompanhou outras eleições no país e Jimmy Carter chegou a afirmar que o sistema eleitoral venezuelano era o “melhor do mundo”.
Crise com redes sociais
O episódio desencadeou uma reação do governo venezuelano contra plataformas digitais, especialmente o X (antigo Twitter) e o Whatsapp. No primeiro caso, Maduro denunciou a participação do bilionário Elon Musk, dono do X, nos ataques ao sistema eleitoral venezuelano.
Musk tem apoiado as manifestações violentas na Venezuela e contestado os resultados das eleições do país. Em publicações nas redes sociais, compartilhou mensagens afirmando que o candidato opositor Edmundo González Urrutia venceu o pleito e pedindo para que venezuelanos saiam às ruas protestar.
Em resposta, o governo da Venezuela suspendeu por 10 dias o X no país. Ao anunciar a medida, Maduro disse que seu proprietário incita o ódio e o fascismo.
“Assinei um memorando com a proposta feita pela Conatel [órgão responsável pelas telecomunicações no país] para retirar a rede social X, antes conhecida como Twitter, por 10 dias de circulação na Venezuela”, declarou Maduro durante um ato no palácio presidencial de Miraflores, em Caracas.
Já em relação ao Whatsapp, o presidente pediu que a população desinstale o aplicativo do celular porque ele seria usado para atacar a juventude e as lideranças populares venezuelanas a partir de articulações de outros países.
Oposição contesta
A oposição questiona os dados divulgados pelo CNE até agora e alega ter mais de 80% das atas que supostamente indicam a vitória de Edmundo González Urrutia. Antes mesmo da divulgação dos resultados, a ex-deputada ultraliberal María Corina Machado já havia dito que “González Urrutia teve 70% dos votos e Nicolás Maduro 30%”.
Outros países pedem a divulgação das atas eleitorais. Segundo a lei eleitoral venezuelana, o CNE tem a obrigação de publicar os resultados por mesa de votação na Gazeta Eleitoral em 30 dias, mas não tem o dever de publicar todas as atas. O site do CNE é usado justamente para isso e conta historicamente com os resultados detalhados de todas as mesas de votação.
Após alegarem “farude”, a setor da oposição liderado por Maria Corina e González chegaram a convocar atos violentos e incitaram militares à rebelião. Nesta segunda-feira, o ex-candidato publicou uma nota nas redes sociais pedindo que militares do país “desobedeçam ordens”. No texto, o ex-embaixador se autoproclama “presidente eleito” da Venezuela e volta a afirmar, sem provas, que o presidente reeleito Nicolás Maduro não teve mais de 30% dos votos.
Maduro entrou com um recurso no TSJ pedindo a investigação dos ataques cibernéticos e a divulgação das atas. A Sala Eleitoral recebeu na segunda-feira (5) todo o material eleitoral do CNE e começou a analisá-lo.
Países vizinhos também tentam mediar a crise. A chancelaria brasileira tem conversado com o governo venezuelano para tentar apaziguar a tensão no país. Nesta quinta-feira, Brasil, Colômbia e México publicaram mais um comunicado reforçando a necessidade da publicação dos resultados de cada mesa de votação. Dessa vez, a nota afirma que o responsável por essa divulgação é o CNE, e não a Justiça venezuelana.