Movimento Ocupe Estelita: quais as lições para a cidade do Recife?
Brasil de Fato
No Recife, o Ocupe Estelita foi um movimento icônico em defesa do direito coletivo de escolher o tipo de cidade para viver. A ação foi inspirada pelos ventos das “cidades rebeldes” que sopravam em outros movimentos de resistência, como a “Primavera Árabe“, os “Indignados” na Europa e os “Occupies”, com destaque para o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos.
O Movimento Ocupe Estelita teve como uma das bandeiras a defesa da apropriação identitária de um espaço urbano de referência histórico-cultural e paisagística que extrapola a cidade, mas bebe das origens da construção da pernambucanidade, acompanhando os conjuntos portuários e configurando os armazéns localizados às margens do Rio Capibaribe. O Ocupe Estelita exemplifica a força da resistência e luta coletiva pelo Direito à Cidade.
Nascido em 2012 para confrontar a implantação do “Projeto Novo Recife“, parte do planejamento estratégico desta cidade, o Ocupe Estelita emerge denunciando as irregularidades na compra do terreno de 10 hectares, localizado no Cais José Estelita, bairro de São José, área central da capital pernambucana. O terreno havia sido repassado pela Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA) ao município, sendo arrematado em leilão no ano de 2008 pelo Consórcio Novo Recife – constituído pelas empresas Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara Empreendimentos e GL Empreendimentos.
Como antecedente de violência contra a paisagem do centro histórico, o polêmico projeto de duas torres residenciais de 41 andares, com apartamentos de luxo, conhecidas como “Torres Gêmeas”, foi construído de 2005 a 2009, no bairro de São José.
No Cais José Estelita, a proposta do “Novo Recife” abrigava 13 torres de até 40 pavimentos, sendo 8 residenciais, 2 empresariais, 2 flats e 1 edifício-garagem. Em março de 2012 o Projeto foi apresentado pelo Consórcio em audiência pública. Face ao seu enorme impacto, o grupo “Direitos Urbanos” toma a frente da organização do Movimento Ocupe Estelita, exigindo do poder público o cumprimento das legislações e a participação popular na construção de uma nova proposta, de uso mais coletivo, para a área.
Defendia-se o acervo da memória ferroviária brasileira abrigada no Pátio Ferroviário das Cinco Pontas e apontava-se os impactos de vizinhança e os prejuízos ao conjunto histórico dos bairros de Santo Antônio e São José que o Projeto Novo Recife causaria.
Pela importância da causa, gestão horizontal e diversidade de perfil dos participantes, o Ocupe Estelita contou com o apoio popular e teve muita repercussão nas redes sociais (no blog do grupo Direitos Urbanos e no Facebook). As produções artístico-culturais, que aconteciam no Cais José Estelita aos domingos, agregaram muitas pessoas em uma apropriação pública e festiva deste espaço.
O enfrentamento no campo jurídico, incluindo denúncias junto ao Ministério Público Federal (MPF) em Pernambuco, ampliou o alcance nas mídias. Com o início da demolição dos armazéns, os integrantes e outras pessoas que aceitaram a convocação do movimento montaram um acampamento no Cais José Estelita, permanecendo no local do dia 21 de maio a 17 de junho de 2014.
Contudo, a repressão policial e jurídica, juntamente com o desgaste ao longo dos anos, impactou a mobilização do grupo. A demolição dos armazéns históricos pelo consórcio representou um abalo para os defensores do patrimônio cultural.
Passados 10 anos do Ocupe Estelita, o site da construtora Moura Dubeux anuncia que estão prontos para morar duas das torres do empreendimento, chamadas “Mirante do Cais”, cujos apartamentos de até 228m², com 4 suítes, encontram-se à venda pelo valor médio de 4 milhões de reais.
A inovação e o desenvolvimento sustentável são aclamados no marketing comercial, que ressalta, além dos equipamentos de lazer (quadra de tênis profissional, piscina coberta aquecida, pista de cooper, horta, pomar orgânico), o teto verde, sistema de reuso da água para irrigação, abastecimento do espelho d’água que o contorna, cinco andares de garagem oferecendo 4 vagas por apartamento e estações de recarga para carros elétricos.
Hoje, em uma via de circulação do empreendimento, colado ao muro, vê-se a placa com a palavra “ressignificar”, em letras garrafais. Ressignificar o quê? A tentativa simbólica de apagar o enfrentamento ao Projeto Novo Recife desperta a indignação dos que lutaram pelo Direito à Cidade. Foi o que faltava para reacender o espírito que anima o Movimento Ocupe Estelita. As pessoas e as representações sociais voltaram a se reunir para abraçar a bandeira do “rememorar”, do “resistir” e refletir sobre o Movimento.
O atraso no avanço das obras oportunizou a ampliação do debate com a sociedade sobre a importância daquela área como um espaço coletivo e identitário da história do Recife. Entre as conquistas alcançadas na resistência contra o projeto original do Novo Recife, estão a diminuição do gabarito do skyline e a articulação com parques abertos à população. Essas conquistas minimizam, não totalmente, claro, a segregação que resultaria do impacto social e paisagístico com o grande “paredão” proposto.
O Ocupe Estelita alcançou marcos simbólicos significativos no diálogo urbano que conseguiu reverberar com o envolvimento da comunidade. Ele revelou lacunas nos procedimentos de aprovação de empreendimentos imobiliários de grande escala e exigiu maior transparência. Apesar dos desafios enfrentados, o movimento permaneceu resiliente. Nesta ocasião que marca os 10 anos, o Movimento reacendeu o desejo de celebrar e refletir sobre os caminhos do planejamento urbano do Recife.
Vários eventos comemorativos marcaram este momento, incluindo uma sessão solene na Câmara dos Vereadores no dia 21 de maio, caminhadas, bicicletadas, passeios de barco pelo rio Capibaribe, sessões de cinema-debate, programas de rádio, publicações de artigos, festas… A grande celebração dos 10 anos do movimento ocorreu no domingo, dia 16 junho de 2024, numa ocupação político-cultural.
Não por acaso, o evento ocorreu, como inauguração simbólica e popular do parque batizado por força de lei e por pressão do Movimento como “Parque da Resistência Leonardo Cisneiros”, em reconhecimento ao papel de um dos seus mais incansáveis componentes.
Dez anos após o seu início, a luta continua a inspirar outros movimentos urbanos no Brasil, novas formas de resistência e de organização popular. Além disso, reforçou o sentimento de pertencimento e responsabilidade entre os recifenses, em relação aos espaços públicos, trazendo à tona questões ambientais, históricas e sociais que são negligenciadas durante processos de urbanização acelerada.
Ao promover um debate público sobre o futuro das cidades, o “Ocupe Estelita” enfatizou a importância de um desenvolvimento urbano conduzido com a participação ativa da comunidade, respeitando a diversidade e a memória dos lugares. O movimento desperta o profundo vínculo dos recifenses com seu patrimônio histórico-cultural e paisagístico, destacando a importância da participação cidadã na definição dos rumos do desenvolvimento urbano.
O apoio e engajamento junto aos movimentos sociais podem nos alimentar coletivamente, no sentido do Estado de Direito, em busca da defesa de uma sociedade mais justa, equitativa e solidária. A práxis das lutas coletivas no cotidiano também ampliam as possibilidades de resistências às vulnerabilidades socioambientais por meio de redes de solidariedade, a exemplo dos aprendizados que vivenciamos com a pandemia da covid-19 e com o agravamento progressivo das emergências climáticas.
Mais do que nunca, precisamos reivindicar o Direito à Cidade, em defesa à vida, o direito à segurança alimentar e à permanência com segurança no local onde se construiu relações identitárias ao longo do tempo e se consolidou os vínculos afetivos. Há que se cobrar dos nossos representantes políticos, o compromisso prioritário com todas as pessoas, sem distinção social.
Além da definição dos limites e execução do projeto do Parque da Resistência, o poder público precisa cobrar a construção das 200 unidades de habitação popular que ficou estabelecida entre as contrapartidas do Projeto Novo Recife. E todos nós recifenses devemos acompanhar esses desdobramentos. Inspirados no “Ocupe Estelita”, que emerge como um ícone de resistência por um Recife mais equitativo e abrangente, não podemos esquecer do seu grito de guerra: “A CIDADE É NOSSA!”.
*Danielle de Melo Rocha é professora adjunta do departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE e do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE), além de ser membro do Observatório das Metrópoles – Núcleo Recife. Representante da UFPE no Conselho da Cidade do Recife (Concidade) e no Fórum do Prezeis.
**Talita Maria Pereira de Lima é advogada, mestra pelo programa de pós-graduação em Direitos Humanos (PPGDH/UFPE) e doutoranda do programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano (MDU/UFPE). Membro do Observatório das Metrópoles – Núcleo Recife.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente reflete a posição editorial do Brasil de Fato.