‘Os homens passam, o povo permanece’: o legado de Fidel Castro

Brasil de Fato

“Fidel Castro Ruz é Cuba. Não podemos falar de Cuba sem falar de Fidel, já que os últimos 65 anos da história do país foram marcados por sua trajetória”, afirma com segurança a historiadora cubana Sissi Abay Díaz ao Brasil de Fato

Por mais arriscada que essa frase possa parecer, é difícil não enxergar a importância da figura de Fidel Castro na história recente de Cuba. Nascido em 13 de agosto de 1926 em uma pequena cidade da província de Holguín, Fidel Castro Ruz demonstrou desde sua juventude uma extraordinária relevância no cenário social e político de Cuba. 

Atuando como um de seus principais líderes, Fidel tinha apenas 33 anos de idade quando a Revolução Cubana triunfou em 1959. Um processo histórico que rapidamente se tornaria um dos acontecimentos mais importantes da América Latina e do Caribe. Toda a história da segunda parte do século 20 no continente foi marcada pela influência social e política produzida por essa revolução nesse pequeno país que fez o “socialismo falar espanhol pela primeira vez”. 

Há anos, a pesquisadora e ensaísta cubana Sissi Abay Díaz estuda a vida e a obra de Fidel Castro. Ela escreveu dezenas de artigos sobre diferentes aspectos da vida e legado do revolucionário cubano. Atualmente, Abay Díaz é vice-diretora do Centro Fidel Castro Ruz, uma instituição dedicada ao estudo e à divulgação de sua obra. 

Em uma extensa entrevista ao Brasil de Fato, realizada no Centro Fidel Castro, o pesquisador revisita alguns dos aspectos essenciais do pensamento e da trajetória do líder revolucionário neste novo aniversário.  Assista ao vídeo e leia os principais trechos abaixo.

Primeiros anos

“Quando era muito jovem, Fidel entendeu que a única maneira de transformar o país era por meio da luta armada. E ele fez isso. Ele travou uma guerra que durou pouco mais de dois anos e o levou ao poder. Um poder ao qual eu não aspiro”, diz Ebay Diaz.  

Com apenas 21 anos de idade, Fidel foi presidente do “Comitê Pró-Democracia Dominicana” da Federación Estudiantil Universitaria, destinado a promover diferentes ações em solidariedade ao povo dominicano e contra a ditadura de Rafael Trujillo. Foi essa militância internacional inicial que o levou a ser eleito como delegado em um congresso estudantil internacional realizado em 1948 sob o patrocínio do então presidente argentino Juan Domingo Perón. 

Naquele ano, Fidel viajou pela primeira vez para fora de Cuba, onde visitou a Venezuela e o Panamá, estabelecendo contato com jovens ligados aos processos nacionalistas e anti-imperialistas que estavam ocorrendo em diferentes partes do continente. 

Antes de retornar a Cuba, Fidel visitou Bogotá para se reunir com o dirigente popular Jorge Eliécer Gaitán, então candidato a presidente da Colômbia. No entanto, a reunião nunca aconteceu. Na mesma tarde marcada para o encontro, o líder colombiano foi assassinado, dando início a anos de violência no país. Décadas depois, foi revelado que a CIA esteve envolvida no assassinato.

O rápido contato de Fidel com as lutas sociais e anti-imperialistas do continente o marcaria por toda a sua vida. 

Mas seria alguns anos mais tarde que o nome de Fidel se tornaria famoso em todos os cantos de Cuba. Sendo ainda um jovem advogado, Fidel se candidatou à Câmara dos Representantes do Congresso cubano. O país atravessava, então, uma grave crise econômica e política. 

No entanto, esse processo eleitoral nunca seria realizado. Apenas alguns meses antes das eleições, no dia 10 de março de 1953, o general Fulgencio Batista realizou um golpe de Estado. Seu governo teve a legitimidade imediatamente reconhecido por Washington. Batista instalou um regime repressivo que procurou sufocar qualquer luta para transformar o país.  

Com apenas 27 anos de idade, Fidel foi um dos principais organizadores da tentativa de assalto ao Quartel Moncada. Na madrugada de 26 de julho de 1953, 131 jovens, com idade média de 26 anos, tentaram invadir dois quartéis militares em uma tentativa de desencadear uma rebelião popular para derrubar a ditadura de Batista. 

O ataque fracassou e dezenas desses jovens foram mortos pela ditadura. Junto com outros líderes, Fidel Castro foi preso e submetido a um julgamento no qual optou por assumir sua própria defesa. A alegação desse julgamento é conhecida como “A História me Absolverá”, considerada o primeiro documento político da revolução que acabaria triunfando em 1959.    


Fidel Castro Jovem / Fidel Soldado de Ideas

O sonho da independência 

Após três anos de ditadura, Batista foi finalmente forçado a renunciar em 31 de dezembro de 1958, cercado pelas forças revolucionárias. O dia 1º de janeiro de 1959 marcou o triunfo da Revolução Cubana. 

Naquele dia, diante de milhares de pessoas reunidas na praça central de Santiago de Cuba, Fidel fez um longo discurso. “Desta vez, felizmente para Cuba, a Revolução realmente chegará ao poder”, disse em meio dos aplausos e gritos de alegria.

Em seguida, fez uma extensa enumeração de todas as vezes em que os processos revolucionários e de independência cubanos foram interrompidos ou traídos. “Nem ladrões, nem traidores, nem intervencionistas. Desta vez é realmente a Revolução”.

“Os homens que caíram em nossas três guerras de independência unem seus esforços hoje aos homens que caíram nesta guerra; e a todos os nossos mortos nas lutas pela liberdade podemos dizer que finalmente chegou a hora de realizar seus sonhos”.

A queda da ditadura seria apenas o início de um longo e inesgotável processo de luta pela construção de um poder popular, no qual os sonhos de emancipação não estão enclausurados nas instituições do poder. Uma luta que continua até os dias de hoje. 

“Fidel conhecia os custos do poder nos processos revolucionários, que transforma ou desfigura os propósitos fundadores”, diz a professora Sissi Abay Díaz, lembrando que o líder não ocupou a presidência apesar da enorme relevância que sua figura já tinha. 

“A primeira responsabilidade institucional que ele assumiu no governo foi porque muitas das pessoas que ocupavam cargos de responsabilidade no governo não entendiam por que uma revolução estava sendo feita. Da mesma forma, Fidel detectou o perigo de que fosse apenas mais um processo político em que apenas os donos mudariam e algumas pessoas ficariam mais ricas, mas o país não seria transformado, que era o que se buscava”, acrescenta.

Por um breve período de seis meses, Manuel Urrutia Lleó foi presidente após a queda de Batista. Ele logo deixou o cargo para se juntar aos esforços contrarrevolucionários organizados nos Estados Unidos. Assim, durante os primeiros 17 anos da revolução, o presidente de Cuba foi Osvaldo Dorticos. 

Revolução significa nunca mentir

Apesar de vir de uma família privilegiada, Fidel escolheu dedicar sua vida aos pobres e oprimidos. Ele poderia ter sido um bom advogado que defendia causas justas, denunciando a triste realidade dos pobres. No entanto, decidiu jogar seu destino no destino do povo. 

“Apenas quatro meses haviam se passado desde a adoção da medida mais importante da primeira etapa da Revolução Cubana: a reforma agrária, a distribuição de terras para aqueles que as trabalhavam”, explica Abay Díaz. Para a pesquisadora, isso significou a relevância do “papel dado ao povo, aos camponeses, às pessoas mais humildes, na estrutura do poder revolucionário”.   

No início de fevereiro de 1959, diante de uma multidão de 150 mil camponeses, Fidel Castro declamou: “Sem reforma agrária não há governo revolucionário”. Apenas cinco meses depois, rodeado por membros do Conselho de Ministros, Fidel assinou o decreto da Reforma Agrária no alto de uma colina em Sierra Maestra. 

A propriedade da própria família de Fidel foi das primeiras a ser distribuída entre os camponeses pobres, o que lhe gerou sérias disputas. Depois que a revolução se consolidou, Fidel nunca aceitou presentes, doando tudo o que recebia para o povo cubano. 
 


Fidel Castro assinando o decreto de reforma agrária / Fidel Soldado de Ideas

Um grão de milho

“Fidel vem de uma formação jesuíta”, explica Abay Díaz, para quem “o espírito austero dos jesuítas e sua disciplina” tiveram um efeito profundo sobre o líder revolucionário.  
 
“Oliver Stone, o cineasta americano, o entrevistou e lhe perguntou o que aconteceria com Cuba quando ele não estivesse mais lá”. Naquele momento, Fidel lhe deu uma resposta extraordinária: disse-lhe que sempre duvidou da relatividade da glória e, citando José Martí, respondeu que ‘os homens passam, mas as pessoas permanecem, toda a glória do mundo cabe em um grão de milho'”. 

“Fidel se dedicou a sofrer o destino dos outros. Para mostrar solidariedade com as causas que ele entendia que mais afetavam a essência dos seres humanos. Essa é a maior lição de ética que ele poderia dar.”

Uma das coisas que mais impressiona os visitantes estrangeiros em Cuba é o fato de não haver uma única estátua de Fidel Castro ou uma única rua com seu nome em nenhum lugar da ilha. Contra o culto à personalidade, Fidel proibiu qualquer tipo de homenagem a ele após sua morte. 

Consciente de que o único tributo que vale a pena é o afeto de seu povo e que o único triunfo verdadeiro é a permanência das ideias.

“Fidel sempre expressou preocupação com o culto à personalidade. Antes de tudo, ele dizia que o poder rebaixa os homens. E o homem que acreditava estar no poder sempre estaria em desvantagem com relação à história”, diz Ebay Díaz. 

“Seu principal legado foi o povo cubano, foi o trabalho da revolução. Que há coisas que poderíamos fazer melhor. Coisas que temos de propor para fazer melhor na situação difícil em que nos coube construir um processo diferente dos demais, mas que valha a pena. E ele sempre nos levou ao que valia a pena salvar no projeto revolucionário. Os homens passam e os povos permanecem, esse é o seu legado. Em seu último discurso aos cubanos no congresso do partido, ele disse que ‘as ideias dos comunistas cubanos permanecerão’. Em vida, ele declarou que seu principal herdeiro era seu pensamento”.

Da Redação