Memória não morrerá: 50 anos sem Frei Tito

Brasil de Fato

Era para ser apenas um passeio pelo Quartier Latin, escala no caminho de volta para o Brasil, depois de uma estadia na Alemanha de 2 anos e meio. E de repente, numa esquina do Boulevard Saint Michel, naquele julho de 1971, alguém me deu um encontrão que quase me derrubou: era o Tito, Frei Tito Alencar de Lima, afobado, como que fugindo. A alegria de encontrar um conterrâneo, a surpresa de esbarrar com um camarada longe do país, se esvaíram pela tensão e nervosismo, que o faziam não responder às perguntas que brotavam: desde quando estava em Paris, o que fazia, como ia o Brasil, como estavam os amigos comuns, e a repressão?  Sim, e a repressão?
 
Eu não sabia que ele recém integrara o grupo dos 70 presos políticos trocados pelo Embaixador suíço sequestrado no Brasil. (Nem ele falou disso, na ocasião; eu só soube ao chegar de volta ao Brasil, quando me informaram também que o Tito tinha sido barbaramente torturado). Morando em Berlim e com a correspondência censurada, as notícias políticas mais sensíveis do Brasil se reduziam ao pouco que chegava pela imprensa internacional e pelos jornais que a minha família enviava, sem comentários e sem nada assinalado. Por carta, nunca! Por vezes eu recebia, com atraso de um mês, vindos por navio, uma Folha ou um Estadão inteiros, que eu vasculhava cuidadosamente, na certeza de encontrar algumas linhas dolorosas a respeito de alguém conhecido. Podia-se avaliar a intensidade da censura através das receitas de cozinha ou de trechos de “Os Lusíadas” com que a imprensa resolveu preencher os espaços censurados, evidenciando aos leitores que ali havia material proibido. Mas a morte de Marighella, líder da ALN, um ano e meio antes, em novembro de 1969, foi noticiada pela imprensa europeia: assassinado a tiros, numa emboscada em que estudantes dominicanos, confrades do Tito, foram torpemente implicados.    

Eu tinha conhecido o Frei Tito em São Paulo, na tensa e intensa década de 60, cruzando com ele nos corredores do Convento dos Dominicanos, onde ele morava e aonde eu ia frequentemente participar de reuniões. Os dominicanos decididamente se tinham colocado na resistência à Ditadura, e corajosamente franqueavam os espaços do Convento de Perdizes para atividades consideradas “subversivas”. Assim, nós, estudantes da Maria Antonia (a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, antes de sua depredação e incêndio pela Direita do Mackenzie, em 1968), bem como universitários da PUC, lá realizávamos reuniões de várias siglas em que se dividia o movimento estudantil – no meu caso, eram encontros de AP (Ação Popular) e também atividades preparatórias para as classes de Alfabetização de Adultos Método Paulo Freire, que aconteciam numa vila operária de Osasco – de 1966 a 1968, quando fomos forçados a abandonar a empreitada, porque o Dops havia baixado em Vila Iolanda.

Agora, tantas décadas depois, penso que era realmente “subversivo” aquilo: uma tentativa de que os alfabetizandos se reconhecessem como criadores, como sujeitos históricos, numa percepção ainda tímida da junção entre a mão que faz e a cabeça que pensa: o primeiro passo no rumo da tão buscada conscientização libertadora. O método Paulo Freire só poderia mesmo ser proscrito pela Ditadura.  “Ivo viu a uva”, poderiam continuar a dizer as cartilhas. Mas perguntar-se em que condições Ivo plantava a uva, como agia o proprietário das terras, qual era o lucro na comercialização do vinhedo, etc, etc… tudo era altamente desestabilizador para o status quo. 

Volto ao encontro com Frei Tito, em 1971. Conversávamos na rua e, de repente, ele agarrou meu braço e literalmente nos arrastou para dentro de um Café. E dizia: vocês viram o Fleury? Ele virou a esquina”. Mas no Café seus olhos não abandonavam a porta por onde, dizia, a qualquer momento ia entrar seu carrasco, o delegado torturador Sergio Paranhos Fleury. Eu não sabia ainda, mas com as sevícias que o destroçaram na OBAN, tendo internalizado seu torturador, ele o carregava para onde quer que fosse. Como narra Frei Betto em Batismo de Sangue. Guerrilha e morte de Carlos Marighella  – de leitura obrigatória para quem quiser saber o que se passou na ditadura brasileira – Frei Tito entrara, sim, como ameaçou um dos agentes do DOI-CODI, na “sucursal do inferno”, da qual só sairia quando a morte buscada o libertou. Há 50 anos, em 10 de agosto de 1974. Eu acabei sendo uma inesperada testemunha da demolição psíquica desse rapaz de 26 anos, e tenho o dever de memória. Como dizem Milton Nascimento e Fernando Brant, em “Sentinela”: Morte, vela / Sentinela sou / do corpo desse meu irmão que já se foi /…  / Memória não morrerá.

* Adélia Bezerra de Meneses, professora e ensaísta, é autora de vários livros, entre os quais Chico Buarque ou a Poesia Resistente. Ensaios sobre as letras de canções recentes, Ateliê Editorial, 2024.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Da Redação