15 anos sem Elton Brum: o sonho do agricultor assassinado pela PM segue vivo nas lutas do MST

Brasil de Fato

Com luta e organização, o sonho de ter um pedaço de terra para trabalhar na produção de alimentos foi conquistado pela família de Sebastião e Adriana. Eles são uma das dez famílias assentadas da reforma agrária em 2013 no município gaúcho de Encruzilhada do Sul, quando receberam do então governador Tarso Genro a posse do assentamento Elton Brum.

O nome dado ao assentamento presta homenagem ao companheiro que já esteve lado a lado na luta com eles, mas que teve seu sonho interrompido. Há 15 anos, Elton Brum foi assassinado pela Polícia Militar com um tiro de calibre 12 pelas costas, em uma das mais violentas ações de reintegração de posse de um latifúndio improdutivo.

Sebastião Rodrigues de Barros recorda da violência naquele 21 de agosto de 2009 na Fazenda Southall, um latifúndio de milhares de hectares na cidade de São Gabriel, no interior do Rio Grande do Sul. Foi quando cerca de 600 soldados da Brigada Militar promoveram um dia de terror.

“Tiraram a trincheira, limparam, entraram com a cavalaria e, infelizmente, já começaram a bater em todo mundo, a cavalaria com espada, a atingir todo mundo. Tiro com bala de borracha, bomba de gás lacrimogêneo, que eles falam, spray de pimenta”, conta.

Naquele período, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) havia intensificado a luta pela desapropriação dos grandes latifúndios na região, com famílias vindas de diferentes cidades do estado. No dia da reintegração de posse, quase metade dos acampados havia se deslocado para acompanhar uma audiência em Sant’Ana do Livramento. Na Fazenda Southall ficaram cerca de 300 famílias.

“Tortura que ninguém quer lembrar”

Na iminência da ação policial, o grupo havia separado mulheres e crianças em um círculo no acampamento para maior proteção. Os homens ficaram à frente, como recorda o Sebastião. Mas a ação violenta não poupou nem os mais frágeis e acabou em tragédia.

“Foi tortura que hoje ninguém quer lembrar. E, infelizmente, ali, teve um policial com uma arma letal, que não podia ser usada, que veio de uma forma ou outra, ele tinha o mando de alguém, para atirar no nosso companheiro Elton Brum, pelas costas.”


Sebastião, Adriana e sua primeira filha em frente a sua casa no assentamento Elton Brum / Foto: Rafa Dotti

Adriana de Oliveira Soares, que naquele dia levava na barriga a primeira de seus dois filhos com Sebastião, lembra da sensação de medo com tamanha violência. “Nós estávamos na roda ali com as crianças, porque as mulheres ficaram cuidando das crianças. Daí, quando nós vimos, estourou lá pra frente e vieram tudo pra cima das mulheres, das crianças, largando aquelas bombas de gás.”

As memórias daquele dia são doloridas para ela. “No final, ali começou aquela pauleira, polícia, cavaleiro, tudo por cima, né? Não dava pra ter noção. Só dava gente com falta de ar por causa das bombas”, afirma.


Policiais a cavalo com espadas no dia da reintegração de posse / Foto: Brigada Militar

Depois vieram conquistas

O agricultor Anderson Antunes Batista e sua família também vivem hoje no assentamento Elton Brum. Ele estava presente naquele dia em São Gabriel e lembra que a ideia dos acampados era fazer resistência para forçar uma negociação. Ninguém esperava que a ação de despejo chegasse naquele nível de truculência.

“Teve inclusive umas famílias que acabaram desistindo. E teve famílias que depois voltaram e aí continuou a resistência e a luta pela terra. Também continuou a pressão de investigação sobre a morte dele”, afirma Anderson.

Segundo ele, desde aquele dia, mesmo que de forma lenta, foram saindo áreas para assentamento da reforma agrária. “Depois voltamos pro acampamento de Charqueadas. Nesse período, ali de 2012 saíram três áreas, as últimas que saíram no nosso período. Saiu em Taquari, em Charqueadas e aqui em Encruzilhada.”


Anderson recorda de Elton Brum como um companheiro de luta que se dava bem com todo mundo / Foto: Rafa Dotti

Anderson conta que o nome do assentamento foi uma homenagem a Elton Brum. “Pela história que ele tinha, e o sonho dele, que era conquistar uma terra para a família, pra criar os filhos, e que infelizmente não conseguiu concretizar. Ele era um companheiro de luta, se dava bem com todo mundo e aí foi escolhido o nome dele.”

Conflitos no campo e impunidade

A violência no campo é uma realidade brasileira que está longe de acabar. Os relatórios mais recentes da Comissão Pastoral da Terra mostram que os casos de conflitos registraram um aumento nos últimos anos. Desde 2020, o número de assassinatos vinha numa crescente, que se reverteu em 2023. Contudo, 2023 foi um ano com recorde de número de conflitos.


Total de conflitos no campo bateu recorde em 2023 / Fonte: Relatório ‘Conflitos no Campo – Brasil 2023’, da Comissão Pastoral da Terra (CPT)

No caso de Elton Brum, o assassinato partiu de uma escopeta disparada pela polícia militar, o que facilitou que a luta por justiça a esse sem-terra fosse marcada pela impunidade. Professor da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e advogado da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (Renap), Emiliano Maldonado conta que aquele foi um período crítico da luta pela terra.

“Era um contexto muito duro aqui no Rio Grande do Sul, de acirramento da luta pela terra e, principalmente, de uma política de Estado adotada pelo governo Yeda Crusius (PSDB) e pelo seu braço militar, que era a Brigada, junto com o próprio Ministério Público Estadual, no sentido de criminalizar a luta pela reforma agrária promovida pelo MST.”


Acampados ficaram horas deitados e sofrendo agressões enquanto polícia verificava identidades / Foto: Fernando Ramos

Emiliano foi um dos advogados que se deslocou a São Gabriel logo após as notícias de que a ação policial tinha sido violenta. No caminho, soube que um companheiro havia sido assassinado. “O que se viu realmente foi um cenário de barbárie, que inclusive foi relatado pelo Comitê contra a Tortura, e demonstrado nos processos judiciais, de que não só o Elton Brum, mas todas aquelas famílias sofreram gravemente, naquela desocupação, a violência da Polícia Militar”, afirma.

Confira a reportagem em vídeo:

Policial e Estado condenados

Foram anos de luta judicial até que o policial Alexandre Curto dos Santos, autor do disparo, fosse condenado em júri popular por homicídio qualificado em 2017. O júri não aceitou sua tese de ter confundido a arma letal com uma não letal. As penas foram exoneração do cargo militar, o que nunca aconteceu, e prisão por 12 anos. Ele saiu preso do tribunal, mas logo depois, o Tribunal de Justiça concedeu o direito de recorrer em liberdade.

“Aí foi algo muito triste de ver, ele foi recebido pela prefeitura da região, e com carro de som, como se fosse um herói, após receber esse benefício de recorrer em liberdade. Nós, então, tivemos que recorrer dessa decisão também e o Tribunal de Justiça, depois, reafirmou a necessidade de que ele fosse preso. Depois de um mês, dois meses, ele voltou à prisão”, conta.

Por ser policial militar, Alexandre não foi para a prisão comum, pois tinha direito a permanecer nesse batalhão até a perda do cargo. “Então, se ele tivesse perdido o cargo, inclusive, ele deveria ter sido deslocado para outro presídio. E aí, na prisão militar, ele foi encontrado sem vida na sua cela.” A certidão de óbito aponta para um possível suicídio, ocorrido em 26 de março de 2022.

O Estado brasileiro foi condenado a indenizar a família de Elton Brum, o que também ainda não aconteceu. “A filha do Elton Brum recebe uma pensão, até completar 24 anos, mas a indenização, tanto a filha como a esposa e o pai, que dependiam dele, do trabalho do Elton para sobreviver, até esse momento não receberam. Estão na fila dos precatórios do estado do Rio Grande do Sul para receber essa indenização.”

Sonho que segue vivo

O sonho de Elton Brum segue vivo nas famílias organizadas no MST. É o caso de Andriele Lisiane Pereira Krauser, que aos 15 anos de idade também vivenciou aquele dia de violência em São Gabriel. Ela hoje luta por um pedaço de terra no acampamento Sepe Tiaraju, também em Encruzilhada do Sul, que iniciou em abril de 2024 e reúne cerca de 200 famílias.


Andriele estava na ação de reintegração de posse em São Gabriel e, na época, tinha 15 anos de idade / Foto: Rafa Dotti

Ela lembra que seu companheiro queria lutar. “Ele tinha o sonho pela terra. Para nós é lutar por ele, com bandeira, continuar. É um sonho nosso, dar um futuro melhor para os nossos filhos e produzir.”

Também do acampamento Sepe Tiaraju, Analice Webery reforça que aqueles que tombaram na luta são fonte de inspiração. “Apesar de terem perdido a vida, estão presentes no nosso dia a dia. A gente lembra todo dia dessas pessoas”, afirma.


Analice carrega o sonho de todos os que lutam pela reforma agrária / Foto: Rafa Dotti

“Aqui dentro o sonho que se sonha sozinho não é um sonho, né? Sonho que se sonha junto é realidade”, prossegue a jovem acampada. “Com certeza o meu sonho aqui é de todos, é ter a terra, é ter uma casa, um lugar para viver com a família, viver feliz.”

Da Redação