Guerra dentro da Rússia: o que mudou para os moradores de Kursk após invasão ucraniana
Brasil de Fato
Apesar de estar localizada próximo da fronteira com a Ucrânia e, consequentemente, perto das ações militares da guerra russo-ucraniana, a região de Kursk passou praticamente imune a riscos reais de ataques e danos nos últimos dois anos. Ao longo de 2024, foram se intensificando os alarmes de risco de bombardeio, passou a se ouvir os sistemas de defesa russo neutralizando drones ucranianos no espaço aéreo, mas, ainda assim, a vida na cidade seguia o seu curso normal. Tudo, entretanto, mudou no dia 6 de agosto.
As incursões ucranianas em território russo não são novidade. A região de Belgorod, que faz fronteira com Kursk e com a Ucrânia, foi alvo de incursões pontuais em 2023 e no início de 2024, protagonizadas por militantes pró-Ucrânia, que entraram apenas alguns quilômetros para dentro do território russo em áreas desprotegidas da fronteira. Mas, desta vez, a operação ucraniana foi de grande escala e com pretensão de assumir o controle de vilarejos inteiros na região de Kursk.
Agora, apesar de uma certa estabilização dos avanços ucranianos por parte das tropas russas, a situação de Kursk assume um cenário de imprevisibilidade para a região e para a guerra como um todo. Há uma redefinição da linha de frente do conflito e foi instaurada uma crise humanitária em território russo. Desta vez, a virada no conflito definitivamente trouxe a guerra para a vida da população local.
É o que conta o brasileiro Guilherme Rodrigues, mestre em psicologia social pela Universidade Estatal de Kursk, que morava na cidade e decidiu deixar a região após o início da ofensiva ucraniana. Ao Brasil de Fato, ele relata que entre a população local, desde o início do conflito até o dia 6 de agosto, nunca havia tido uma atmosfera de insegurança e uma ameaça de a guerra chegar de fato à região. Mas durante o ano de 2024 já começava uma inflexão neste sentido.
“Ninguém, absolutamente ninguém, inclusive os próprios russos que moram na região próxima da fronteira, que é a Oblast (região) de Kursk, se sentiu ameaçado, até porque os russos sempre tiveram um controle muito forte da região militarmente. Então, cada empreitada ucraniana que se tinha, cada tentativa, era falha, até o dia 6 de agosto, quando tudo mudou”, afirma.
Rodrigues ressalta que, até então, os ucranianos não tinham conseguido atingir Kursk nenhuma vez sequer, apenas vilarejos muito fronteiriços, com distâncias entre 1km e 2km, o que, segundo ele, fazia a população se sentir muita segura.
O brasileiro conta que a partir de fevereiro a cidade começou a sentir “uma virada”, com um aumento da intensidade com que Kiev buscava, de alguma forma, atingir Kursk. Com isso, teve início um aumento significativo de alarmes de ataques, principalmente de drone, acontecendo durante o dia.
“E as pessoas ficaram meio desacreditadas, porque o alarme tocava tanto e nada acontecia, que ninguém levava muito a sério, as pessoas acabaram se acostumando, a gente acaba se acostumando com algo que aparentemente não deveria se acostumar”, diz o psicólogo.
“Se intensificou muito em julho, quando já estava se tornando insuportável, porque geralmente era um alarme por dia, no máximo dois. Depois, começou a se tornar sete, oito, nove vezes por dia, e durante a madrugada. […] A gente tinha também o impacto que toda a vez que a sirene tocava, os ônibus, o sistema de transporte da cidade parava de funcionar. E se a sirene está tocando oito, nove vezes por dia, a gente fala basicamente de uma cidade que fica sem sistema de transporte operante. […] Então começou a ficar muito difícil. Até que a gente recebeu a notícia propriamente que a Ucrânia havia entrado”, acrescenta.
Desde o dia 6 de agosto, já são mais de 133 mil pessoas que evacuaram da região russa de Kursk após o início da ofensiva ucraniana. Estes foram os dados apresentados na última quinta-feira, dia 22, pelo governador da região, Alexey Smirnov, que destacou que 19 mil pessoas permanecem nas áreas evacuadas. Para as pessoas que tiveram que deixar as suas casas, foram montados mais de 500 alojamentos temporários, onde atualmente estão vivendo mais de 12 mil pessoas, incluindo 3.407 crianças.
Roman Dodonov, aluno da Universidade Estatal de Kursk e voluntário da brigada de ajuda humanitária “#MyVmeste” (“nós estamos juntos”, em russo), organizada pela própria faculdade, em entrevista ao Brasil Fato, explica que na própria cidade de Kursk atualmente há uma periodicidade constante da sirene de aviso sobre mísseis ou perigo de ataque de drones, mas, segundo ele, “a própria cidade de Kursk se encontra em uma zona um tanto tranquila, quem mais sofre são as cidades fronteiriças”.
As áreas atingidas diretamente pela intervenção ucraniana são cidades da região de Kursk que ficam próximas à fronteira da Ucrânia. Mas a própria cidade de Kursk, que é capital e o principal centro da região, não chegou a ser atingida pelos avanços das tropas ucranianas.
“Assim que as forças militares da Ucrânia interviram na região de Kursk, as forças locais e os órgãos do governo organizaram centros voluntários, certas divisões, que não poderiam ficar de lado e chegaram para ajudar nossos moradores que tiveram que deixar as regiões fronteiriças”, diz Roman Dodonov.
Segundo o estudante, a principal tarefa da brigada em que ele trabalha é organizar a distribuição de roupas e alimentos, e fornecer assistência jurídica e psicológica para o grande êxodo de pessoas das áreas fronteiriças. E os medicamentos são encaminhamos para a Cruz Vermelha da Rússia.
“Os moradores das regiões fronteiriças que foram assentadas aqui recebem ajuda humanitária. As autoridades a nível federal e regional os apoiam com pagamentos, porque muitas pessoas não só tiveram que deixar suas casas, mas muitos perderam as perderam”, conta Roman.
Na reunião que o presidente Vladimir Putin realizou com os governadores das regiões fronteiriças na última quinta-feira (22), foi definida uma ajuda financeira às vítimas na região de Kursk no valo de 15 mil rublos (cerca de R$ 900,00). Durante o encontro, não se falou sobre a extensão do controle que as forças ucranianas exercem no território russo, sendo tratada apenas a situação humanitária das regiões fronteiriças.
Por outro lado, as Forças Armadas da Ucrânia alegaram em 20 de agosto que mais de 1.260 quilômetros quadrados de território russo e 93 assentamentos na região de Kursk estão sob seu controle. Há um consenso entre analistas, no entanto, que estes números são inflados e que uma parte considerável deste território atualmente não é controlado por ninguém, considerando os vácuos que existem ao longo da fronteira russo-ucraniana. Ao mesmo tempo, nos primeiros dias da incursão ucraniana, o lado russo reconheceu que 28 assentamentos russos estavam sob controla das Forças Armadas da Ucrânia.
Guilherme Rodrigues conta que no início da operação ucraniana em Kursk, em 6 de agosto, foi difícil compreender a gravidade da situação na região, pois, por um lado, “os meios de notícias russos estavam de alguma forma tentando controlar a situação, não deixando as pessoas entrar em pânico”, e, por outro, a mídia ocidental projetava uma invasão de proporções exageradas da Ucrânia em território russo.
“Então a gente não sabia muito bem em que pé estavam as coisas. No dia 7, as explosões estavam se tornando mais próximas da cidade, a gente estava recebendo as notícias que eles estavam se dirigindo à usina nuclear de Kurchatov; e aí a situação começou a ficar bem mais tensa, a gente conseguiu sentir a tensão no ar, na cidade, já no dia 7, então foi nesse dia que eu decidi que ia comprar um bilhete para ir para Moscou e depois decidir o que ia fazer”, conta.
Enquanto o Kremlin busca aparentar uma certa cautela, sem tomar medidas drásticas e alegando que freou os avanços de Kiev, a impressão que a população local tem é que a operação ucraniana em Kursk já impôs uma nova realidade à região e que a guerra não sairá das zonas fronteiriças em um curto prazo. Autoridades militares russas já reconhecem que a crise em Kursk pode durar meses. O comandante do batalhão checheno “Akhmat” e vice-chefe do departamento político-militar das Forças Armadas Russas, Apti Alaudinov, chegou a fazer uma previsão de que as tropas russas retomariam o controle dos territórios ocupados por Kiev, mas isso levaria dois a três meses.
O brasileiro Guilherme Rodrigues diz que não vê uma perspectiva de melhora da situação na região em um curto prazo, considerando a natureza do conflito que se instaurou entre Rússia e Ucrânia.
“Eu acredito que a situação vai se arrastar, porque essa guerra vem se mostrando uma guerra de trincheiras, quando os ucranianos avançam é menos de 1 km, quando os russos avançam também é um 1 km. Eu acho inclusive que foi isso que surpreendeu, os ucranianos entraram muito rápido em regiões da Oblast, e que para essa guerra, por mais que o território seja minúsculo se a gente for comparar com o território russo, para os padrões dessa guerra foi muita coisa, porque é uma guerra muito devagar, então eu não tenho muita perspectiva de que as coisas vão chegar a melhorar”, completa.