Com Musk, a proteção da Amazônia e seus povos ganha um novo adversário
Brasil de Fato
Já dissemos no primeiro texto desta série de artigos (clique aqui para acessar) que Elon Musk coloca seus interesses econômicos e sua gana de lucro acima de qualquer limite, desrespeitando as instituições democráticas, as legislações nacionais, os territórios e os direitos humanos. O multibilionário mira a estabilidade das democracias e dos governos de esquerda com sua rede social, e também desafia a soberania tecnológica com seus foguetes e sua internet que já domina o mercado na Amazônia Legal e está presente em mais de 90% das cidades da região Norte, via Starlink.
Se a internet se torna quase mandatória para o acesso a diversos serviços, a programas de governo e outros direitos e facilidades, a permissão do Estado para o domínio da Starlink na região da Amazônia impulsiona também o avanço de diversas atividades ilegais na região e coloca nas mãos de uma empresa nada transparente a comunicação e os dados de um território tão estratégico para o Brasil, numa lógica que impulsiona a dependência tecnológica, o colonialismo de dados e ameaça a soberania digital.
A Starlink é uma empresa de tecnologia proprietária (e portanto hermética à transparência de seu funcionamento) nas mãos de um multibilionário autoritário que faz questão de dizer que usa suas empresas para incidir na política de vários países do globo segundo sua concepção de mundo. Se a Starlink interviu em mais de um episódio militar na guerra entre Rússia e Ucrânia, por que não manipularia situações que envolvem interesses geopolíticos na Amazônia brasileira
Conforme dados de julho de 2024 da Anatel, a Starlink tem no Brasil 224,5 mil clientes: 71,2 mil na região Norte, 66,3 mil no Sudeste, 46,5 mil no Centro Oeste, 24,5 mil no Sul e 15,7 mil no Nordeste. A maioria, 222,4 mil, são pessoas físicas, que utilizam uma antena – além das próprias Forças Armadas do Brasil.
A conectividade significativa no Brasil ainda é restrita a poucos e com desigualdades baseadas em classe, raça e território bastante contundentes. Junto à região Nordeste, a região Norte possui os piores indicadores de uso da internet no Brasil. De acordo com dados da pesquisa TIC Domicílios 2024, enquanto o indicador nacional de domicílios com acesso à internet é de 84%, na região Norte temos 78,9% de conexão domiciliar; 35% dos que não têm acesso à internet em casa relataram o alto preço das tarifas como impedimento e 11,6% por indisponibilidade do serviço. A Starlink entra justamente na falta de políticas públicas de conectividade.
A pesquisa Acesso à Internet no Norte do Brasil, publicada pelo Instituto de Defesa de Consumidores (Idec) em 2022, demonstra que a penetração do acesso domiciliar às redes varia notavelmente por classe social. Enquanto quase todas as residências da classe A contam com internet (99%, segundo o Cetic.br), apenas a metade dos domicílios das classes D e E (50%) têm algum tipo de acesso à rede mundial de computadores.
Para entender melhor o contexto das políticas de conectividade na região, a pesquisa Amazônia Livre de Fake – feita pelo Intervozes e 14 organizações amazônidas – realizou, no ano passado, pedidos via Lei de Acesso à Informação aos governos do Amazonas, Mato Grosso e Pará para a compreensão do investimento em políticas de conectividade. Verificou-se também se houve, em 2023, alguma destinação de emendas parlamentares a programas de inclusão digital na região. Não houve respostas referentes a nenhuma emenda destinada a esse propósito. Em relação às políticas de conectividade, somente o governo do Mato Grosso não respondeu ao pedido de LAI.
O governo do Amazonas informou que, em julho de 2021, foi assinado um Acordo de Cooperação Técnica com o Exército Brasileiro, para fortalecer o Programa Amazônia Conectada (PAC), com investimento de R$ 1,35 bilhões, o que possibilitou a ampliação das redes metropolitanas para conectar órgãos públicos (de todas as esferas), bem como hospitais à rede do PAC, além de escolas, o que deverá ampliar a implementação de políticas públicas no interior do estado do Amazonas. Em 2023, estavam conectados 12 municípios: Alvarães, Novo Airão, Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro, São Gabriel da Cachoeira, Tefé, Coari, Codajás, Anori, Caapiranga, Manacapuru e Iranduba. O PAC consiste na implantação de redes de transportes de fibra óptica ao longo dos rios da região. Quanto ao Pará, foi informado de forma incompleta que foram investidos cerca de R$ 15 milhões para implementação de programas de conectividade, com destaques para o Wi-Fi Livre, que beneficiaram mais de 60% da população nos últimos anos em 76 municípios, sem detalhar qual período e segmentação da população. O programa é realizado também por fibra óptica ou rádios transmissores instalados.
As políticas públicas a nível municipal, estadual ou federal, porém, são ainda incipientes frente aos desafios de ofertar acesso em áreas remotas, sem infraestrutura e com a barreira tarifária. É aí que entra Elon Musk. A Starlink opera com satélite em baixa órbita com a promessa de ofertar internet em alta velocidade em áreas rurais, quilombolas, indígenas e ribeirinhas com preços e tecnologia mais acessíveis.
Se é verdade que, nas operações da Polícia Federal contra o desmatamento ilegal, o garimpo ou até mesmo contra o tráfico de drogas, a apreensão de antenas que servem a essas atividades ilegais é constante, também é verdade que a ausência de uma política que garanta de forma eficiente conectividade significativa para a região deixa a população à mercê da rede criada pelo bilionário. Com o alto custo do serviço, as antenas acabam ficando nas mãos de quem tem recursos financeiros. E quem pode pagar geralmente redistribui o acesso para gerar mais lucro.
Por políticas digitais amazônidas
Em sentido alternativo, propostas amazônidas alertam para os riscos e limites da prestação de acesso à internet majoritariamente em regime privado na região. Segundo defendem, a reivindicação por infraestrutura e por programas de conectividade centrados no interesse público deve, necessariamente, estar conectada às características que fazem a sociobiodiversidade da região, respeitando e promovendo a autonomia tecnopolítica de povos indígenas, populações extrativistas, quilombolas, ribeirinhos e trabalhadores rurais na definição de toda e qualquer medida com impacto nos seus territórios. No caso dos Povos e Comunidades Tradicionais isso já é previsão garantida pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Aponta nesse sentido a Carta de Recomendações para Políticas Digitais na Amazônia, de 2023, quando enfatiza a necessidade de desenvolver tecnologias para gestão participativa e benefícios locais. O documento, organizado pelo Centro Popular de Comunicação e Audiovisual (CPA) e pela Coalizão Tecnopolíticas Pan-Amazônicas, alerta ainda para o risco do processo em curso de extrativismo de dados por grandes empresas estrangeiras, e orienta que o progresso tecnológico deve se voltar para atender às necessidades específicas da Amazônia, promovendo igualdade, respeito às diferenças e acesso universal aos benefícios tecnológicos.
Mercado de dados e Desinformação
Seguindo as características de seu projeto de dominação, o avanço de Elon Musk sobre a Amazônia não se dá só via Starlink. A Tesla, fábrica de veículos elétricos controlada por Musk, fechou contrato “de longo prazo” com a Vale para o fornecimento de níquel a partir das operações da mineradora brasileira no Canadá. A empresa também extrai níquel no Pará.
Via a rede social X, e junto às plataformas digitais da Meta, Musk e o as big techs avançam com seus modelos de negócios baseados na extração de dados. O modelo mineral também se aplica à lógica de mercado de dados das plataformas digitais. Encontram também na Amazônia, de mídia concentrada e de desertos de notícias, terreno fértil para passar a boiada da desinformação e do discurso de ódio.
No contexto amazônida, o que se observa é que a desinformação – que se aproveita dos algoritmos e dos modelos de negócios de empresas como o X de Elon Musk, o Instagram e o Facebook da Meta e o Youtube da Google – não se trata de uma disputa sobre o que é precisamente verdade ou mentira, mas de uma estratégia proposital para disputar e construir uma visão de mundo assentada num modelo desenvolvimentista e predatório avesso aos direitos dos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e tradicionais. É assim que a desinformação vem beneficiando os centros de poder ligados a figuras políticas sustentadas e sustentáculos do agronegócio, da mineração e de outras personagens centrais nos conflitos socioambientais que marcam a região.
O já citado projeto Amazônia Livre de Fake mapeou, em 2023, 32 figuras públicas desinformadoras nos estados do Amazonas, Mato Grosso e Pará. No total de políticos monitorados – entre deputados, senadores e governadores – 28 deles publicaram 192 postagens com desinformação nas redes sociais. Além disso, os políticos investiram nessas plataformas 13 mil reais de recursos públicos em 68 anúncios com temática socioambiental que possuíam desinformação, obtendo mais de 4,5 milhões de interações nas postagens.
Na soma de violações ao direito à comunicação, alguns desses políticos também descumprem o artigo 54 da Constituição Brasileira, que não permite que esses representantes sejam proprietários de mídia. No âmbito das casas legislativas são figuras que investem em projetos de lei que beneficiam o garimpo ilegal, flexibilizam áreas de proteção ambiental em benefício do agronegócio, avançam contra a demarcação de terras indígenas e sobre os direitos das mulheres e meninas como é o caso do PL da Gravidez infantil. Como não podia deixar de ser, em âmbito federal, são os mesmos atores que tiveram posição ativa em barrar qualquer iniciativa de impor responsabilidade e transparência às plataformas digitais conforme trataremos no próximo artigo desta série.
Enquanto o Brasil se coloca como sede da COP30 e busca assumir uma posição de destaque na geopolítica mundial no que tange ao combate à chamada crise climática, assistimos os direitos das populações amazônidas e do território da Amazônia nas mãos de interesses político-econômicos que atropelam a autonomia de povos e comunidades tradicionais, acelerando processos violentos de tomada de territórios, de exploração de bens comuns, aprofundando um modelo de desenvolvimento predatório e avesso à vida. Nesse cenário, Elon Musk segue jogando o jogo e dando as regras e encontra no Estado uma parceria importante em várias jogadas.
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A defesa da Amazônia em sua sociobiodiversidade ganha um novo adversário. Nessa guerra de mundos em que Musk age na lógica do jogo War, é urgente fortalecer as tecnologias não proprietárias, locais, autônomas que, cotidianamente, criam e recriam mundos possíveis de viver. Na semana em que celebramos o Dia Mundial da Amazônia (5 de setembro), seguimos amplificando as vozes das populações amazônidas que necessitam reivindicar o fortalecimento de seus territórios entendendo que seus modos de vida são extensões deste lugar e deles dependem a preservação da sociobiodiversidade e mesmo a continuidade da vida no planeta.
* Iara Moura é jornalista, mestra em comunicação e integra a coordenação executiva do Intervozes. Luisa da Silva é assistente de pesquisa da COJOVEM (PA), aluna do Programa Youth de Governança da Internet (NIC.br) e jovem ativista climática. Pedro Vilaça é publicitário e integra a coordenação executiva do Intervozes.
** Este texto faz parte da série “O X da Questão: big techs e soberania tecnológica”, parceria entre Brasil de Fato e Intervozes
*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente reflete a linha editorial do Brasil de Fato.