Em 1974, ditadura Pinochet instituiu desaparecimento forçado como política de Estado no Chile
Brasil de Fato
O casarão localizado no nº 38 da rua Londres, na capital do Chile, Santiago, foi o primeiro centro de detenção e tortura da Direção de Inteligência Nacional (Dina) da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
Meses após o golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, foi nesse espaço que a ditadura Pinochet instituiu o desaparecimento de opositores como uma estratégia do aparelho de repressão do Estado, a partir de abril de 1974, contra o Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), primeiro, e depois contra outras organizações da esquerda chilena, como o Partido Socialista (PS) e o Partido Comunista (PC).
“Já havia desaparecidos em 73, mas em 74 foi muito mais direcionado e eles começaram a implementar [o desaparecimento] com outros métodos, poderíamos dizer mais refinados no sentido de buscar a ocultação mais eficaz dos corpos, que é o significado de desaparecimento. Negar, esconder e apagar o destino das pessoas que foram vítimas da repressão. É aí que começa essa política, e ela começa a ser direcionada contra o MIR”, afirma ao Brasil de Fato a ativista chilena Gloria Elgueta, ex-militante do MIR.
Elgueta atua hoje no Coletivo Londres 38, que transformou o antigo centro de tortura em um espaço de memórias sobre o período autoritário no Chile. O espaço foi formalmente entregue para a gestão do grupo apenas em 2014, 40 anos após as primeiras denúncias dos sobreviventes e familiares dos prisioneiros sobre sua utilização como centro de torturas e extermínio de opositores pelo regime. O prédio funcionou por dez meses como uma das centenas de locais secretos de tortura, execução e desaparecimento praticados pelo governo Pinochet.
“Foi usado por pouco tempo, mas de forma muito intensa. E nessa época (1974) começou a ser identificado como um local de prisão de pessoas e, ainda durante a ditadura, foi denunciado judicialmente”, aponta.
No casarão da rua Londres 38, foram detidos e torturados seus dois irmãos, também militantes do MIR. Um deles, o estudante de engenharia Martín Elgueta Pinto, preso aos 21 anos, se tornou umas das 1.468 pessoas consideradas desaparecidos políticos durante a ditadura chilena. Até o momento, foram reveladas informações (nem todas completas) sobre o paradeiro de apenas 307 delas.
No local, um número ainda indeterminado de pessoas foi detido e torturado. Até onde foi possível apurar, 98 pessoas desapareceram ou foram executadas pela Dina naquele endereço.
Apesar da promessa do governo de Gabriel Boric, de um plano de busca dos desaparecidos, a ativista chilena aponta que essa política ainda esbarra em obstáculos para ser efetivamente implementada no país.
“No momento de implementá-la, os mesmos obstáculos começam a aparecer. É muito difícil implementar uma política quando não houve um diagnóstico suficiente dos obstáculos existentes, que têm a ver com cumplicidades, formas de ocultação dentro do Estado e a cumplicidade do judiciário”.
Londres 38 e as políticas de memória no Chile
Construído em 1925, o casarão na rua Londres foi adquirido em 1970 pelo Partido Socialista, para ser usado como sede da filial da Oitava Comuna dessa organização. Tomado pela ditadura chilena após o golpe de 1973, o espaço foi desocupado pelos militares em 1975. Em 1978, por meio de um decreto assinado por Pinochet, a propriedade foi transferida para o Instituto O’Higginiano, vinculado ao Exército, financiado pelo Estado e dirigido até 2006 pelo general da reserva Washington Carrasco, que foi vice-comandante em chefe do Exército e ministro da Defesa do ditador chileno.
Em agosto de 2007, a propriedade foi recuperada pelo Estado no governo de Michelle Bachelet. Em dezembro do mesmo ano, o Instituto O’Higginiano deixou o local e, pela primeira vez, houve uma visitação massiva por parte de ex-presos políticos e parentes das vítimas da ditadura ao local.
A proposta de transformação do casarão em um centro de memórias começou a ganhar forma no ano de 2009, em diálogo com o governo Bachelet após a formação de um grupo de trabalho com cerca de 20 pessoas.
“Durante nove meses, elaboramos um projeto preliminar para aquela casa e depois discutimos e propusemos o que achávamos que deveria ser, não como um espaço para os parentes das vítimas, mas que pudesse dialogar com a sociedade. Para fazer uma ligação entre essa parte da nossa história e os problemas do presente, que estão tão intimamente relacionados à história da ditadura. Falamos muito sobre os legados e as consequências da ditadura no presente, que em muitos casos permanecem intactos, começando pelo modelo econômico, pelo tipo de relações trabalhistas que existem no Chile, pelas características, por exemplo, da polícia.”
Além de preservar a memória daqueles que passaram por aquele espaço durante o período de repressão, o Londres 38 busca se conectar com os momentos de mobilização social mais intensa que o Chile vive nos dias atuais. “Nos relacionamos muito com esses setores. Estou falando, por exemplo, das grandes mobilizações estudantis ou das mobilizações contra o sistema de pensões que existe no Chile, que levaram a mobilizações muito grandes em 2016 e 2017.”
Durante as intensas mobilizações de rua vivenciadas pelo Chile naquele período, o casarão funcionou como um espaço de apoio para os manifestantes, e acolhida para aqueles que retornaram feridos dos protestos, com o intenso uso de gás lacrimogêneo e balas de borracha por parte da polícia chiliena.
“Essas foram algumas das maneiras pelas quais procuramos relacionar as duas histórias: a que está sendo construída no presente e a da qual Londres 38 faz parte, mas que, para nós, é atual, é um passado presente.”
Neste 11 de setembro, em que completam 51 anos do golpe contra o governo de Salvador Allende, Elgueta reafirma a luta do Coletivo Londres 38 de que a memória da ditadura chilena deve ser trabalhada pelo conjunto da sociedade chilena e não apenas dos ex-presos políticos e dos familiares das vítimas.
“Quando o dano é tão personalizado, é uma forma de privatizá-lo e também de reduzi-lo. Nossos parentes, é claro que sentimos falta deles. Eu sinto falta do meu irmão, obviamente, mas eles também fazem falta ao Chile, fazem falta a este país. E é isso que temos tentado instalar permanentemente e conscientizar sobre esse aspecto, como um problema coletivo, não como um problema individual de algumas famílias.”