11 de setembro no Chile: a importância dos espaços de memória para barrar a volta do fascismo
Brasil de Fato
Nesta quarta-feira (11), se lembram 51 anos do golpe de Estado no Chile, com a derrubada do governo socialista de Salvador Allende e a instauração da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), uma das mais sangrentas da América Latina. Em um contexto de avanço da extrema direita, os espaços de memória têm um papel cada vez maior diante da sombra do fascismo que se espraia pelo continente.
No Chile, a extrema direita cresce liderada por José Antonio Kast, do Partido Republicano, sigla criada em 2019 que conseguiu 22 das 50 cadeiras durante o debate de uma nova Constituição no país em 2023, e se tornou a oposição principal à proposta do presidente de esquerda Gabriel Boric.
A exemplo de Javier Milei a Argentina e do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, Kast propõe um revisionismo histórico sobre a ditadura Pinochet, ao defender que a atual Constituição, criada em 1980, ainda na ditadura, “permitiu os 30 anos de maior progresso no Chile”.
Para o professor do departamento de Relações Internacionais da Uerj, Paulo Velasco, o exemplo chileno de manutenção dos espaços de memória mantém viva a memória sobre os horrores praticados durante o regime autoritário, e barra tentativas de repetir essas práticas no presente.
“É importante que toda região onde vivemos isso seja bandeira, para lembrar uma das experiências mais violentas pela qual a America Latina passou e que se lembre muito bem o que aquilo foi para que aventureiros como Milei, Kast e Bolsonaro não tenham muito espaço nessa retórica que nega a história”, disse ele ao Brasil de Fato.
Em 1991 o informe Retting – espécie de Comissão da Verdade chilena – , documentou 2.279 casos de presos desaparecidos e executados políticos durante a ditadura chilena. Já o informe Valech calculou em 2004 que mais de 28 mil pessoas foram torturadas por razões políticas durante a ditadura no Chile.
Museu da Memória e dos Direitos Humanos
Com base nessas informações, foi inaugurado em 2010 durante o governo de Michele Bachelet, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Projetado pelos arquitetos brasileiros Carlos Dias, Lucas Fehr e Mário Figueroa, o edifício, foi construído na região central de Santiago para lembrar as vítimas da ditadura.
“Não podemos mudar nosso passado, mas podemos aprender a partir do que aconteceu. É nossa oportunidade e nosso desafio”, afirmou Bachelet – também presa e torturada durante a ditadura Pinochet – na inauguração do edifício, acompanhada dos três presidentes que governaram o país desde a volta da democracia: Patricio Aylwin (1990-1994), Eduardo Frei (1994-2000) e Ricardo Lagos (2000-2006).
Para Paulo Velasco, o museu é “emblemático” da luta travada ainda hoje no Chile por Verdade, Memória e Justiça em relação ao período ditatorial, ao permitir às novas gerações conhecer a violência praticada durante a ditadura e o trauma gerado na sociedade. “Permite que as novas gerações possam aprender com a história e aumentem os esforços em favor da memória histórica e da verdade, para evitar a sua repetição. Permite à população, de maneira ampla, com a um conhecimento palpável do que foram aqueles dias.”
Londres 38
Outro espeço que trabalha a memória do período de repressão é o casarão localizado no nº 38 da rua Londres, na capital do Chile, Santiago, primeiro centro de detenção e tortura da Direção de Inteligência Nacional (Dina) da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990).
O prédio funcionou por dez meses e foi o primeiro de uma das centenas de locais secretos de tortura, execução e desaparecimento praticados pelo governo Pinochet. Além de preservar a memória daqueles que passaram por aquele espaço durante o período de repressão, o espaço batizado de Londres 38 e mantido por um coletivo que leva o mesmo nome, busca se conectar com os momentos de mobilização social mais intensa que o Chile vive nos dias atuais, como os massivos protestos que tomaram as ruas do país em 2019.
Recuperado pelo Estado chileno em agosto de 2007, também durante o governo Bachelet, o espaço foi formalmente entregue para a gestão do Coletivo Londres 38 apenas em 2014, 40 anos após as primeiras denúncias dos sobreviventes e familiares dos prisioneiros sobre sua utilização como centro de torturas e extermínio de opositores pelo regime.
“Do ponto de vista da repressão, do terrorismo de Estado no Chile, Londres 38 cumpriu uma função que consistiu em ser o primeiro espaço em que o desaparecimento forçado começou a ser implementado como uma política sistemática”, disse ao Brasil de Fato Gloria Elgueta, ativista do Coletivo Londres 38 e ex-militante do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR).
No local, foram detidos e torturados seus dois irmãos, também militantes do MIR. Um deles, o estudante de engenharia Martín Elgueta Pinto, preso aos 21 anos, se tornou umas das 1.468 pessoas consideradas desaparecidos políticos durante a ditadura chilena. Até o momento, foram reveladas informações (nem todas completas) sobre o paradeiro de apenas 307 delas.
Salvador Allende
Outra medida de memória em relação às atrocidades cometidas pela didatura Pinochet é o busto de Salvador Allende mantido no Palácio Presidencial, La Moneda, bombardeado pelos militares golpistas no dia 11 de setembro de 1973, evento que culminou na morte do então presidente, que decidiu não se entregar.
“Ele foi a figura que sofreu mais diretamente no 11 de setembro, inclusive com sua morte, então é um local de peregrinaçãonão só para a esquerda chilena e latino americana, mas para quem quiser conhecer de maneira efetiva o drama que foi aquele momento. O primeiro presidente socialista eleito na região sendo morto num ato golpista e que acabou enveredando o Chile por um cenário muito sombrio.”
Ao assumir o governo do Chile, o presidente Gabriel Boric saudou a estátua de Salvador Allende e se comprometeu a dar um novo passo para a memória desse período durante seu governo, por meio de plano de busca dos desaparecidos, política que ainda esbarra em obstáculos para ser efetivamente implementada no país.”É muito difícil implementar uma política quando não houve um diagnóstico suficiente dos obstáculos existentes, que têm a ver com cumplicidades, formas de ocultação dentro do Estado e a cumplicidade do judiciário”, aponta Olga Elgueta.
A ativista do Coletivo Londres 38 aponta que muitas iniciativas foram barradas pelo judiciário chileno ao longo da história e a política no país hoje está voltada principalmente para o pagamento de indenização aos familiares das vítimas e ex-presos políticos, que considera insuficiente enquanto política de reparação.
“A compensação sem verdade plena e sem justiça é uma nova forma de violência por parte do Estado, porque é uma forma de compensação que não pode, sob nenhuma circunstância, substituir a verdade e a justiça. No Londres 38 cunhamos um slogan que não era tão popular quando o laçamos e agora, felizmente, está ressoando. Não queremos verdade e justiça, queremos toda a verdade e toda a justiça, não menos do que isso. Não é porque não temos consciência da dificuldade que isso implica, mas porque nos parece que essa é a exigência legítima da sociedade.”