Kamala Harris, Donald Trump e os tigres de papel
Brasil de Fato
“Viu o debate?”. Em época eleitoral, essa é uma pergunta que nos acostumamos a ouvir e repetir. Ainda mais agora, quando nos preparamos para eleger prefeitos e vereadores no próximo mês, e estamos acompanhando atentos o desempenho dos nossos candidatos.
Mas na noite da última terça (10), outro debate roubou nossa atenção. Kamala Harris e Donald Trump se enfrentaram pela primeira — e provavelmente a última — vez na disputa presidencial de 2024 nos Estados Unidos.
Primeira porque a atual vice-presidenta apenas começou a disputar após assumir o lugar de Joe Biden na corrida eleitoral. E última, pois a campanha do republicano parece não concordar com um “repeteco” depois da performance considerada ruim no debate transmitido pela rede estadunidense ABC. Harris disse estar “pronta para outra”, mas Trump cantou vitória e disse não ver necessidade de uma nova rodada.
A posição e o desempenho dos candidatos serviram de combustível para diversas análises na imprensa — de lá e daqui —, que cravaram a boa postura da democrata diante de um republicano dito acuado e mal preparado.
Segundo o New York Times, o republicano falou por mais tempo que Kamala e gastou a maior parte dele se defendendo. Kamala, por sua vez, se esforçou para se desvencilhar de Biden quando lhe convinha, mas não hesitou em apontar para dados e números da atual gestão — principalmente na economia — que pudessem servir para ganhar votos.
Desemprego e inflação são alguns dos indicadores que a vice-presidenta utiliza para compor a personagem que tenta construir: uma mulher de origem trabalhadora, com raízes na tradicional american middle class, cuja família batalhava para fechar as contas do mês. Kamala evoca esse passado, apelando a uma estreita compreensão do que seria a sociedade dividida em classes, em uma abordagem social difusa para atrair o voto dos trabalhadores.
Ainda no debate do dia 10, ela explicitou os vínculos de Trump com bilionários, dizendo que ele cortaria impostos para beneficiar os super-ricos. O republicano — que, de fato, é um bilionário — utiliza uma de suas melhores habilidades para, quando necessário, abdicar da postura de rico excêntrico e tentar se aproximar dos trabalhadores: ele mente. Na ocasião, lançou absurdos alegando que imigrantes fugitivos de “instituições mentais” estariam roubando empregos das classes média e baixa e que até sindicatos seriam prejudicados.
Apesar disso, fica claro que, para ambos os candidatos, os votos de pessoas pobres e de classe média baixa importam e podem decidir a eleição. O que não fica claro é se, de fato, Harris ou Trump estão enxergando a realidade do país e se se dão conta da grave crise humanitária que o regime estadunidense impõe a milhões de trabalhadores.
Segundo o Departamento do Censo dos EUA, cerca de 40 milhões de pessoas era pobre no final do ano passado, o pior índice em 14 anos. Mais de 18 milhões de famílias enfrentam dificuldades para garantir alimentação diária e, até 2021, mais de 47 milhões deles viviam nos chamados “desertos alimentares”, áreas urbanas onde é praticamente impossível encontrar alimentos saudáveis por conta da pressão comercial.
E qualquer complicação de saúde pode gerar dívidas impagáveis a qualquer família comum, já que a inexistência de um sistema de saúde público eleva à máxima potência o poder do mercado sobre a vida. Endividamento, aliás, é um dos motivos que leva cada vez mais cidadãos a perderem suas casas e hoje os EUA possuem mais de 650 mil moradores em situação de rua, mais do que o dobro do Brasil.
Enquanto isso, só no primeiro semestre deste ano, as campanhas de Harris e Trump já haviam arrecadado juntas US$ 785,3 milhões. O número ainda deve subir mais, na medida em que a campanha se acirra e grupos bilionários se agitam para doar através dos chamados Super PACs, canais de arrecadação livres da responsabilidade de declarar origem ou identidade. Quem paga a banda, escolhe a música.
Assim, o debate parece ter deixado claro que os problemas reais do povo trabalhador são apenas tratados em sua superfície, enquanto a resolução da crise estrutural existente na sociedade norte-americana é, muitas vezes, limitada pelos candidatos a uma mera competição de quem consegue criar mais empregos.
A aparente divergência de supostos projetos políticos fica ainda mais diluída quando o tema é política externa. A escolha da China como rival a ser batido está presente nos discursos de Harris e Trump, que se acusam mutuamente de darem chance ao gigante asiático no campo geopolítico e econômico.
Harris ainda faz discreta menção ao excesso de força utilizada por Israel na Faixa de Gaza, ainda que em nenhum momento condene as autoridades israelenses pelo genocídio em curso que já tirou a vida de mais de 40 mil palestinos.
Vale ainda citar a existência dos estados-pêndulo, mais um sintoma das aberrações geradas pelo chamado colégio eleitoral – um grupo de 538 delegados que são os responsáveis, de fato, por elegerem o presidente. Tal elemento nos leva a questionar a própria essência do sistema eleitoral dos EUA, considerado obsoleto e pouco democrático por muitos pesquisadores, já que permite que um candidato que receba mais votos populares não necessariamente se torne o presidente eleito.
No fim das contas, a ausência de propostas reais para a superação da crise capitalista nos EUA e o acordo bipartidário para a manutenção de uma política externa imperialista — que ficaram evidentes no debate — parecem revelar a real natureza do regime político dos Estados Unidos.
Enquanto eu via Harris e Trump debatendo na TV, me lembrei dos “tigres de papel” apontados por Mao Zedong quando falava sobre o imperialismo e seus instrumentos. Segundo o revolucionário chinês, eles aparentavam ser perigosos, mas eram falíveis quando confrontados com elementos concretos como os trabalhadores organizados.
Por trás dos candidatos há um aparato monolítico que só aprendeu a ceder diante da pressão popular. E exemplos de luta e resistência do povo estadunidense existem aos montes.
Mas isso é papo para uma próxima newsletter. Me cobrem dessas histórias, acompanhem a cobertura eleitoral dos Estados Unidos aqui no Brasil de Fato, e nos ajudem seguir reportando os pormenores políticos de diversos países, da China aos Estados Unidos. Ajude o Brasil de Fato.
Seguimos atentos,
Lucas Estanislau
Coordenador de Internacional