Retomada Mbyá Guarani atingida por enchentes no RS recebe sementes para reflorestamento e preservação cultural

Brasil de Fato

A missão Sementes de Solidariedade chegou à comunidade Mbyá Guarani da retomada Tekoá Nhe’engatu, em Viamão (RS). O projeto que leva apoio a comunidades rurais atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul entregou aos indígenas, na última quarta-feira (18), sementes de milho, de feijão e amendoim, mudas de árvores, de cana, de batata doce e ramas de mandioca.

Liderança do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e diretor do Instituto Cultural Padre Josimo (ICPJ), Frei Sérgio Gorgën, esteve no ato na retomada. “A mandioca é muito importante na tradição indígena, é uma herança dos indígenas. Também trouxemos mudas de erva-mate, que é guarani. Mudas nativas que tinham se perdido também, como a jabuticaba, a guabiroba, etc”, ressaltou

A ação solidária, que congrega mais de 23 organizações, entre movimentos sociais, cooperativas, pastorais religiosas, movimentos populares, representações sindicais e entidades representativas, iniciou as entregas para agricultores de pequeno porte atingidos no Vale do Taquari, neste mês. Mas também prioriza comunidades indígenas das etnias Mbya Guarani e Kaigang.

A indígena Cláudia Gomes comemorou a entrega das sementes e contou como eles vivem naquela terra. “Aqui, a gente planta melancia, milho tradicional, milho guarani mesmo. Ele é de toda cor, é branca, preta, azul, amarela. Essa terra é muito boa de plantar. É boa porque ela é muito importante, para as crianças, para a saúde. Tudo que vem da terra, da plantação, é saúde. Meus antepassados já vivam nessa terra, tanto é que a gente preserva muito a semente tradicional. Aí vai plantando, vai plantando, sempre gerando.”

A retomada da área em Viamão aconteceu no dia 14 de fevereiro de 2024. Em comunicado, os guaranis deixaram clara a sua intenção: “A retomada Tekoá Nhe’engatu orienta o sentimento de um povo que há séculos luta pelos seus direitos ancestrais.” Um dos líderes da retomada é Eloir Werá Xondaro, que foi vice-cacique na aldeia da Estiva, em Viamão. O seu avô Turíbio Gomes, que morreu com 101 anos de idade, é a força espiritual e a inspiração nesta busca pela terra demarcada, assim como anciãos e anciãs que lutaram e padeceram lutando por uma vida digna para o povo Mbyá Guarani.


Cláudia mostra terras retomadas / Foto: Rafa Dotti/ Brasil de Fato 

Sementes que produzem vida

Também presente no ato de entrega, o missionário Roberto Antônio Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário no Rio Grande do Sul (Cimi-RS) explica a importância da ação. “Nós do Cimi viemos atuando nessas parcerias, com o Movimento dos Pequenos Agricultores, há bastante tempo. Nós temos as mesmas perspectivas, no sentido de assegurar que as sementes tradicionais, as sementes crioulas, sejam preservadas, cultivadas e sirvam como ferramenta de luta e de resistência sobre a terra.”

Ele destaca que o projeto contribui para assegurar a posse-permanência das comunidades na terra, porque elas produzem aquilo que elas têm como perspectiva alimentar. “Toda a produção tradicional, especialmente dos Guaranis, dos Kaingang, tem como fonte especial a necessidade de produzir aquilo que gera vida. Todas as sementes híbridas e transgênicas usadas atualmente perderam o potencial da vida porque elas são reproduzidas artificialmente. E essa perspectiva do resgate da vida, da importância da vida, solidariza, portanto, a solidariedade entre os povos, entre os pequenos”, pontuou.

Liegbott entende que a solidariedade das sementes é fundamental na construção de outra perspectiva de relação com a terra. “Porque as sementes originárias, as sementes tradicionais, além delas produzirem vida, porque elas são essencialmente vida, elas asseguram a diversidade sobre o solo, a diversidade sobre a terra, se contrapõem com esse modelo hegemônico dos monocultivos transgênicos. Então, é uma luta política, é uma resistência contra um modelo que degrada”, afirma.

O missionário explica que as retomadas “são um retorno”, como dizem os próprios Mbyá Guarani. “Eles identificam aqueles lugares que para eles têm um sentido de memória, espiritualidade. Então buscam resgatar mesmo diante de um ambiente de profunda degradação e devastação. E, em geral, as retomadas se combinam com a mística de cada povo”, explica. Nesse processo, o sonho e as memórias dos pajés são fundamentais para azer “esse retorno ao lugar de onde nunca deveriam ter saído ao longo da história”.

Aldeia nova em terra antiga

A liderança indígena Laercio Karai ressalta que a retomada indígena nada mais é do que uma recuperação de espaço do território para os povos indígenas. “A história mostra que o Brasil todo foi colonizado pelos europeus e nesse processo todo, vários povos foram expulsos dos seus territórios, escravizados e mortos. Então, nesse sentido, a gente perdeu muitos territórios. E hoje em dia, o que a gente está fazendo é nada mais do que recuperar e voltar nesses espaços antigos, que não são aproveitados adequadamente pelo Estado, para dar uma função social também para esses territórios.”


Laércio conta a história da retomada / Foto: Rafa Dotti / Brasil de Fato

De acordo com ele, vários fatores explicam por que o Estado não está usando adequadamente os territórios, o que depende da agenda política. “Hoje em dia esses territórios são especulados pelas imobiliárias, várias grandes empresas imobiliárias. Também pelo agronegócio. E ao mesmo tempo tem o outro lado, os povos indígenas que estão em beiras de faixa, sem ter um território adequado. Isso se torna quase sempre um conflito violento. Então é nesse sentido que a gente está também está recuperando esse espaço em forma de resistência, ao mesmo tempo de estar existindo nesse planeta.”

Ele continua explicando que como é uma aldeia nova, com uma organização “bem coletiva, como vivem em outras aldeias, os povos Guarani”. Conta que a roça e outros vários espaços são coletivos, e as casas que chegam a 30 na retomada também são diferentes. “Nessas casas estão as famílias, com os pais, com os filhos, com os sobrinhos, são espaços coletivos, espaços de uma forma bem guarani de ser.”

Reflorestamento de área degradada

Ele conta que a retomada já planta milho, melancia e aipim. E que com as mudas recebidas, estão começando a reflorestas partes degradadas do território. “Essas sementes têm um valor espiritual também para nossas crianças, para nossos rituais que são feitos aqui na aldeia”, afirma.

Para ele os povos guaranis podem ensinar mais sobre como se relacionar com a terra. “Nossos antepassados tinham essa relação com a terra, de que a terra e o ambiente são uma extensão do nosso corpo. Então a gente tem sempre essa ideia de relacionamento de que todas as árvores, todos os rios têm um ser que protege ele. Essa relação é sempre de cuidado e respeito, para que a gente não possa causar esses danos. Essa relação é espiritual também ao mesmo tempo. Essa dinâmica é uma relação que os não-indígenas não compreendem, tanto é que têm somente uma relação econômica com o meio ambiente de querer lucrar, com a questão da natureza e dos recursos naturais que hoje em dia são escassos.”

História e memória

Laércio tem 30 anos e se formou recentemente em história pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Eu me formei em abril, e o estado não está abrindo ainda contratos, então estou esperando abrirem o edital para me inscrever. Daí eu pretendo dar aula aqui na aldeia.”

Ele conta que o nome da retomada, Nhe’engatu, carrega o sobrenome do avô que faleceu já há algum tempo. “A aldeia leva a memória do nosso avô nessa aldeia. Nesse caminhar todo nosso avô não conseguiu ver um único território demarcado, enquanto ele esteve presente em vida. Então a gente está levando essa luta do nosso avô em frente. A gente pretende ver essa área demarcada logo, logo.”

Também liderança da retomada, Reni Gomes de Oliveira, confirma que era sonho de seus avós encontrar um espaço maior, onde pudessem fazer plantações e preservar a cultura. “Era um sonho deles que infelizmente partiram, mas espiritualmente estão sempre com a gente. Como era um sonho, está sendo bem bom, o espaço é grande, tem muita mata e tem rios também, que na outra aldeia a gente não tinha.”

Ela afirma que é fundamental para seu povo manter as tradições. “Porque sem a natureza, na verdade, a gente não é praticamente quase nada. Porque a gente mantém, preserva o espaço que a gente tem também, que hoje que o homem branco, na verdade, está á destruindo, infelizmente. Aí, o pouco que a gente tem, a gente preserva.”


Reni faz parte de uma nova geração de lideranças / Foto: Rafa Dotti / Brasil de Fato

Mulher Guarani e liderança

Ela comenta ainda sobre ser mulher guarani e liderança. “É fundamental uma mulher ter essa ocupação, na verdade, porque antigamente não se via mulher como uma liderança ou também para trabalhar também. Eu sou professora também aqui na aldeia, de educação infantil. Então o papel da mulher é fundamental, até para fazer grupos de mulheres também, porque até então era só de homens, lideranças de homens, mas é um aprendizado também.”

Ela diz que a tarefa é bastante desafiadora “porque tem coisas que seria apenas para homens fazer”. Por exemplo nas reuniões. “A gente conversa, tudo mais, é um homem ou mulher, porque antigamente era só o homem que, vamos dizer, comandava, e hoje em dia está crescendo mais essa questão da mulher ocupar o espaço. E é importante para ser exemplo também para os demais, para as crianças, principalmente para para as meninas mulheres.”

Um programa de resgate

Frei Sérgio conta que o MPA tem um programa de resgate, produção, multiplicação e plantio de sementes crioulas varietais, sementes de alimento saudável, mudas e ramas de mandioca. A iniciativa, de acordo com ele, é voltada para a base de pequenos agricultores mas, a partir de 2008, 2009, tudo começou a ser compartilhado também com os povos indígenas e com os quilombolas.

“Os povos indígenas, os povos originários, especialmente os guaranis, eles nos deram no passado a comesticação de várias plantas que são alimentos para nós. A mandioca, o amendoim, o próprio milho, o abacaxi, as batatas. Eles foram roubados dessas suas sementes e mudas de sobrevivência, porque eles perderam a terra. Eles foram roubados de suas terras e agora eles as estão retomando, inclusive aqui em Viamão é uma retomada, é uma nova terra indígena constituída e nós compartilhamos com eles, devolvemos para eles as sementes que um dia foram deles”, afirma.

Segundo ele, hoje esse movimento está acontecendo em todas as aldeias indígenas guaranis do Rio Grande do Sul e em uma boa parte das aldeias Kaingangs também. “É uma integração entre os pequenos agricultores e os povos indígenas porque nós compartilhamos os mesmos alimentos, da mesma forma de sobreviver. Ninguém vive sem comida. E é comida saudável, é comida de qualidade, é comida com sabor. E é isso que a gente está fazendo aqui”, concluiu.


 
 

 

 

Da Redação