Enel: o apagão das privatizações do neoliberalismo

Brasil de Fato

O ano de 2023 foi muito bom para a Enel, o lucro mais do que dobrou. Mesmo com a diminuição das receitas com a queda nos preços médios no mercado de energia, o resultado foi extraordinário: lucro líquido de 3,44 bilhões de euros em 2023. Mais que o dobro do ano anterior, quando acumulou 1,68 bilhão de euros. 

Com atuação transnacional em 30 países nas Américas, África, Ásia, Oceania e Europa, a Enel é uma das maiores companhias do setor elétrico do mundo. São 70 milhões de consumidores, 67 mil colaboradores próprios e mais de 2 milhões de quilômetros de redes elétricas.  

A companhia é responsável pela distribuição de energia elétrica para 18 milhões de pessoas em 24 municípios da Grande São Paulo desde 2018, quando adquiriu o controle da Eletropaulo Metropolitana.  

Essa empresa bilionária deixou mais de 3 milhões de pessoas sem energia elétrica no apagão em São Paulo depois de uma noite de fortes chuvas e ventos, no dia 11 de novembro.  

A empresa de origem italiana de capital aberto tem ações na Bolsa de Valores de Milão desde 1999. O maior acionista individual, que controla cerca de 23% das ações, é o Ministério da Economia e Finanças da Itália.  

Mais de 58% da participação acionária é de um grupo de fundos de investimentos, seguradoras e fundos de pensão, com origem em diversas partes do mundo, especialmente investidores da América do Norte e Europa. Os investidores individuais têm 18% das ações. 

Enquanto as ações da Enel são negociadas na Bolsa na Itália e seus investidores que vivem na Europa ou nos Estados Unidos lucram com a distribuição de dividendos, a população da região metropolitana de São Paulo está refém do serviço de péssima qualidade de uma empresa que faz tudo pelo lucro. 

A Enel é símbolo do fracasso da privatização de áreas estratégicas e da doutrina neoliberal, que prega que o capital privado tem uma capacidade de gestão superior às empresas públicas.  

A receita para a obtenção de lucro com a compra de empresas privatizadas é simples: cortar os custos, cobrar caro e fazer o mínimo investimento.  

Ou seja, fazer o básico para atender os consumidores, independentemente da qualidade do serviço. Fazer de tudo para aumentar a lucratividade para distribuir os maiores dividendos possíveis para os acionistas.  

O povo paga a conta. O preço do serviço de energia é alto: 36% das famílias brasileiras gastam mais da metade do orçamento mensal com energia elétrica e gás de cozinha, de acordo com pesquisa do Instituto Pólis. Para não deixar a conta de luz atrasada, 30% dos entrevistados relatam que deixaram de comprar alimentos básicos e bens de consumo.  

A reprodução da dinâmica do capital financeiro nos serviços públicos essenciais diminui a qualidade do atendimento, mantém preços altos e leva às últimas consequências a contradição entre as necessidades da população e a lucratividade das empresas privadas.  

Essa lógica de funcionamento não é exclusividade da Enel nem da área de exploração do serviço de distribuição de energia elétrica, mas o caso é exemplar dos procedimentos do capital privado na gestão de serviços públicos essenciais.  

A companhia reduziu o quadro de funcionários em 51,55% nos últimos cinco anos, de acordo com relatório do Tribunal de Contas do Município de São Paulo. Foi um corte de aproximadamente 4 mil postos de trabalho. 

Houve uma redução de quase 50% nos custos operacionais entre 2018 e 2023, mesmo com o crescimento de 19% na demanda por energia. Os investimentos tiveram um déficit de 32% em relação ao previsto (R$1,5 bi) entre 2018 e 2022.  

O tempo de atendimento da população em caso de emergências cresceu 72% entre 2021 e 2024, demorando 15 horas. Assim, chegou ao nível crítico do Índice Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) de Satisfação do Consumidor, com 52 pontos (em uma escala de 0 a 100), ficando entre as 10 piores concessionárias de energia elétrica do país. 

A Enel acumula multas aplicadas pela Aneel, Procon-SP e Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), somando R$ 355 milhões. O desempenho da companhia ficou 20% abaixo da meta regulatória estabelecida pela Aneel para o Indicador de Nível de Serviço em 2023. 

Em resumo, a atuação da empresa é uma tragédia. Mesmo com todas as evidências, as instituições têm sido incapazes de defender os interesses dos cidadãos. Em novembro de 2023, um outro apagão da Enel deixou 4 milhões de pessoas na capital e na região metropolitana sem luz por dias. O que aconteceu de lá pra cá? Nada.  

Agora, correm para mostrar serviço e tentar se eximir da responsabilidade pela crise. Não cola. O prefeito Ricardo Nunes (PMDB) não cumpriu sua atribuição de fazer o manejo e poda das árvores e silenciou diante da irresponsabilidade da Enel. Fala grosso agora no período eleitoral, mas não tomou nenhuma atitude contra a companhia.  

A Agência Nacional de Energia Elétrica, que intimou somente nesta semana a empresa italiana a prestar esclarecimentos, deveria cumprir o papel de regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica. Na prática, seus diretores indicados pelo setor elétrico fazem a representação das corporações perante o governo federal, em vez de defender os interesses da população.  

O Estado brasileiro tem sido omisso no processo de regulação do setor elétrico, um serviço essencial para a população. Assim, as empresas fazem o que querem e apagões como esse que aconteceram em São Paulo podem se repetir em todo o país, especialmente com a mudança no regime de chuvas com as mudanças climáticas.  

A reversão de privatizações de empresas que não atendem o interesse público cresce em todo o mundo com o fracasso da gestão do setor privado. Mais de 884 serviços foram reestatizados no mundo, de acordo com o TNI (Transnational Institute), um centro de estudos sediado na Holanda. 

Desde 2000, esse processo aconteceu em 55 países, como na Alemanha, com 348 casos; na França, com 152; nos EUA, com 67; no Reino Unido, com 65; e na Espanha, com 56.  

As companhias foram retomadas por darem prioridade ao lucro e oferecerem serviços caros e de qualidade ruim em diversas áreas, como fornecimento de água e energia, na coleta de lixo e programas habitacionais e funerárias.  

O governo Lula deve tomar a iniciativa política e defender a população que está refém de empresas privadas que exploram serviços públicos essenciais, como a distribuição da energia elétrica. É preciso rever o papel das agências reguladoras, que não cumprem o papel determinado em lei e se transformaram em correia de transmissão do capital privado, abrindo mão de defender o interesse público.  

O país precisa de um levantamento da atuação dessas empresas e de medidas concretas para que atendam a população, com serviços de qualidade e preços correspondentes. No caso de descumprimento, é preciso coragem para romper os contratos e retomar o controle, impedindo que milhões de pessoas sejam prejudicadas por companhias que estão preocupadas apenas com o lucro dos seus investidores. 

 

* Igor Felippe Santos é jornalista e analista político com atuação nos movimentos populares.

** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Da Redação