Amílcar Cabral: uma relação especial entre Cuba e a África

Brasil de Fato

Próximo ao centenário do nascimento do líder revolucionário Amílcar Cabral (1924-1973), ativistas e acadêmicos realizaram uma reunião em Havana sobre sua vida e obra. Sob o título Amílcar Cabral em duas épocas, o objetivo da conferência foi levar a um público amplo reflexões sobre o pan-africanismo e a relação que a revolução cubana estabeleceu com a independência dos países africanos.

Amílcar Cabral foi uma das figuras mais importantes na luta contra o colonialismo português e pela independência de Guiné-Bissau e Cabo Verde. Seu pensamento e obra deixaram uma marca profunda no pensamento pan-africanista e nas lutas pela emancipação nacional no Terceiro Mundo. Sua influência foi tão forte que o renomado pedagogo Paulo Freire o descreveu, juntamente com Che Guevara, como “as maiores expressões do século 20”.

 
Em entrevista ao Brasil de Fato, Yoslán Silveiro Gonzalez, pesquisador especializado em estudos africanos e organizador do evento, afirma que “apesar de suas enormes contribuições para a humanidade, o conjunto do pensamento africano nos processos de descolonização é realmente desconhecido, especialmente entre acadêmicos que não trabalham com questões africanas”. 

“Há toda uma série de líderes africanos que surgiram nos anos 50 e 60, com os quais Cuba estabeleceu um vínculo muito forte desde o início da revolução. A ideia é resgatar esse pensamento e trazê-lo para os dias de hoje. Não apenas como um exercício acadêmico, mas, sobretudo, como uma tarefa política”, explica. 

Recuperar o pensamento de figuras como Amílcar Cabral é resgatar a memória de histórias e pensamentos que foram sistematicamente ocultados. Apesar de ele ser uma das principais figuras do século 20, assim como os demais lutadores pela independência da África, é difícil encontrar cátedras universitárias, publicações ou filmes sobre sua vida e obra. Os grandes centros acadêmicos e culturais negam o pensamento das periferias como um pensamento digno de ser universalizado. 

Apesar de ser uma pequena ilha do Caribe, toda a história de Cuba é atravessada pelo testemunho persistente de lutas e memórias de resistência que apontam para uma perspectiva a partir da qual se pode observar a chamada história universal através dos olhos dos oprimidos. A própria história do relacionamento entre Amílcar Cabral e Cuba foi um exemplo disso. 

O direito dos povos de ter sua própria história

Em 1966, Cuba organizou a Primeira Conferência Tricontinental, uma das mais importantes reuniões de movimentos anticoloniais e anti-imperialistas da história. Durante quase duas semanas, mais de 500 delegados de movimentos revolucionários da África, Ásia e América Latina se reuniram em Havana para discutir e trocar experiências de suas lutas.  

Durante essa conferência, foi acordada a criação da Organização de Solidariedade dos Povos da África, Ásia e América Latina (OSPAAAL). O objetivo era estabelecer um projeto de cooperação para o desenvolvimento econômico e social dos países do sul global. Dessa forma, o Movimento Não Alinhado foi estendido para a América Latina e o Caribe. Dessa forma, criou-se um espaço de solidariedade com as várias lutas de libertação nacional que estavam ocorrendo no Terceiro Mundo.     

A reunião foi uma oportunidade para o governo cubano estabelecer contatos com diferentes movimentos revolucionários em todo o mundo. Entre os participantes, Amílcar Cabral foi uma das personalidades mais destacadas. 

Amílcar já era um dos mais importantes líderes pró-independência na Guiné-Bissau e em Cabo Verde, dois pequenos países empobrecidos da África Ocidental que faziam parte das colônias de Portugal. Desde muito jovem, dedicou sua vida à atividade revolucionária, sendo um dos principais fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA).   

Em Havana, diante dos delegados reunidos, Amílcar fez um discurso que entraria para a história como “a arma da teoria”. Longe de qualquer tom de autocelebração, essa oportunidade foi usada para apontar o que ele considerava ser as principais deficiências do movimento revolucionário.  

Em um tom assertivo, ele apontou que “a maior fraqueza” das forças de libertação nacional “na luta contra o imperialismo” era a “falta de conhecimento da realidade histórica”. Para Amílcar, o acesso ao conhecimento e à cultura – que o colonialismo negou aos povos da África – desempenhou um papel insubstituível nas lutas de libertação.  

Ao mesmo tempo em que enfatiza seu apoio à luta armada como “a única forma eficaz de alcançar a libertação nacional”, Cabral apresenta um relato de uma concepção ampla da luta pela independência. Ele argumenta que, em última análise, a base da libertação nacional está “no direito inalienável de cada povo de ter sua própria história”. Descrevendo o caráter cultural e de massa da luta pela revolução.

Seu discurso causou uma grande impressão na liderança política da revolução cubana. Tanto que, naquela época, o próprio Fidel se referiu a Amílcar como “um dos líderes mais lúcidos e brilhantes da África”, dizendo que ele havia lhe dado “uma enorme confiança no futuro e no sucesso de sua luta pela libertação”.     

Cuba prestou apoio material à luta na Guiné Bissau e em Cabo Verde, colaborando com assessores técnicos, médicos e professores que foram à região para trabalhar ao lado do PAIGC. A luta armada na Guiné-Bissau durou quase uma década. De 1963 a 1973, Portugal foi forçado a substituir seu governo militar na colônia quatro vezes. Em 1973, o PAIGC conseguiu controlar a maior parte do território da Guiné-Bissau, desenvolvendo um amplo processo de alfabetização e construção de escolas nos territórios libertados. 

Em 20 de janeiro de 1973, apenas oito meses após a declaração de independência da Guiné-Bissau, Amílcar Cabral foi assassinado. Finalmente, em novembro de 1973, Lisboa foi forçada a reconhecer a Guiné-Bissau. A luta anticolonial na África foi um dos principais motivos para a queda da ditadura do Estado Novo em Portugal e o triunfo da Revolução dos Cravos

O legado das rebeliões africanas  

O pesquisador Yoslán Silveiro Gonzalez explica que, após a Revolução, a política externa da ilha em relação ao continente africano foi fortemente marcada “pela herança africana da cultura cubana”. 

A herança africana na ilha, à qual Silveiro Gonzalez se refere, é constante. Desde as expressões culturais na música e na dança até a onipresente religiosidade popular da ilha. Todos esses aspectos da vida espiritual e cultural de Cuba trazem a marca indelével da herança africana. 

Essa presença é consubstancial à própria história de Cuba. Na época colonial, o comércio de escravos trouxe milhões de pessoas da África para a ilha. A escravidão foi abolida tardiamente em 1886. Entretanto, a abolição formal e legal – como no resto do mundo – não pôs fim às práticas racistas, especialmente por parte da elite crioula.   

Antes do triunfo revolucionário de 1959, apesar de ter uma enorme população negra, Cuba era fortemente segregada. O acesso à educação superior, à saúde e à cultura era severamente restrito para a população negra, cuja grande maioria fazia parte dos setores mais pobres da sociedade. Os negros não podiam acessar nem mesmo muitas das praias, que eram reservadas aos brancos. Foi com a Revolução de 1959 que essas práticas foram abolidas e uma política ativa para abolir qualquer tipo de discriminação foi mantida. 

Após a Revolução, mais de 450 mil cubanos – civis e militares – viajaram para a África para lutar e ajudar nos processos de independência do continente. Essa experiência levou milhares de famílias cubanas a vivenciar em suas próprias histórias as lutas contra o colonialismo na África e a participar das guerras civis contra o Apartheid. Compartilhando seu destino com o povo africano.  

“Há inúmeros gestos de gratidão mútua que foram estabelecidos ao longo dos anos entre os povos da África e de Cuba”, diz Silveiro Gonzalez. Entretanto, ele afirma com segurança que uma das imagens mais poderosas que ilustram graficamente essa relação é o abraço de Mandela com Fidel.  

Apenas alguns meses após ser libertado da prisão, Mandela visitou Cuba em 1991 em uma viagem histórica. Era o primeiro país da região que o líder sul-africano visitava após 27 anos de prisão. Naquela tarde, diante de milhares de cubanos que tinham vindo para ouvi-lo, Mandela não escondeu sua emoção. 

“Há muito tempo queríamos visitar seu país e expressar nossos sentimentos sobre a Revolução Cubana e o papel desempenhado por Cuba na África, no sul da África e no mundo. O povo cubano tem um lugar especial no coração do povo da África. Os internacionalistas cubanos fizeram uma contribuição para a independência, a liberdade e a justiça na África que é inigualável pelos princípios e altruísmo que a caracterizam”.

Da Redação