‘Criança não é mãe, estuprador não é pai’: manifestantes saem às ruas de Porto Alegre contra PL da Gravidez Infantil

Brasil de Fato

Uma onda verde tomou às ruas do centro de Porto Alegre, no final da tarde desta sexta-feira (14). Milhares de mulheres marcharam pelas ruas do centro da Capital, da Esquina Democrática até a Cidade Baixa, contra o projeto de lei 1.904/2024, que equipara o aborto realizado após a 22ª semana de gestação ao crime de homicídio. 

Além dos gritos de “criança não é mãe, estuprador não é pai”, os manifestantes também pediam pela saída do deputado Arthur Lira (PP-AL), que colocou o PL em regime de urgência, na quarta-feira (12), permitindo que seja votado no plenário da Casa sem passar antes pelas comissões pertinentes. A ação fez com que eclodisse manifestações pelas ruas de diversas cidades do país entre quinta (13) e sexta-feira (14), como também pelas redes sociais. 

“Estamos aqui manifestando em Porto Alegre, como em todo o Brasil, o nosso repúdio ao PL do estuprador. É um absurdo que hoje nós mulheres, ao invés de lutar por avançar os direitos das mulheres na sociedade, tenhamos que lutar para não retroceder. Criança não é mãe, estuprador não é pai, fora Lira do Congresso”, ressalta servidora pública Tamyres Filgueira. 

De autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), o PL conta com assinatura de 32 outros deputados, sendo 11 mulheres, entre elas a gaúcha Franciane Bayer (Republicanos). A propostar, também chamada do PL da Gravidez Infantil, prevê que meninas e mulheres que vierem fazer o procedimento após 22 semanas de gestação, inclusive quando vítimas de estupro, terão penas de seis a 20 anos de reclusão. 

A questão da punição é uma das críticas que tomou a mobilização, uma vez que, se o projeto for aprovado, a pena para as mulheres vítimas de estupro será maior do que a dos estupradores. 

Pela legislação atual, o aborto é permitido em casos de estupro, risco a vida da mãe e de fetos anencefálicos. Não está previsto um tempo máximo da gestação para que seja realizado. O procedimento é punido com penas que variam de um a três anos de prisão, quando provocado pela gestante; de um a quatro anos, quando médico ou outra pessoa provoque um aborto com o consentimento da gestante; e de três a dez anos, para quem provocar o aborto sem o aval da mulher.

Nem um passo atrás

Com o rosto marcado por um mão vermelha, em alusão ao silenciamento que se quer sobre as mulheres, a integrante do coletivo Juntas, Tamires Paveglio, ressaltou que as mulheres não aceitarão mais retrocessos. “Nós não iremos aceitar nenhum passo atrás, como o desse PL que defende estuprador e faz com que crianças sigam torturadas em manter uma gestação. Não iremos recuar”, disse.


“Nós não iremos aceitar nenhum passo atrás, como o desse PL que defende estuprador” / Foto: Jorge Leão

Como nas manifestações nas redes sociais, nas ruas as mulheres ressaltaram a ingerência do patriarcado e do machismo sobre o corpo das mulheres. “Estou aqui indignada com tudo que aconteceu, com essa PL que foi votada e sem o nosso consentimento. Estão determinando a nossa vida, o que nós devemos fazer com os nossos corpos. Não são os homens que determinam por nós, somos nós que sabemos que é melhor para nossas vidas”, afirma Fátima Soares, integrante do Coletivo Feminino Plural. 

“Estamos falando de crianças de meninas de adolescentes, que vão ter que carregar em seu ventre um feto de um estupro. Isso é não dá pra aguentar”, completa Fátima.


“Não são os homens que determinam por nós, somos nós que sabemos que é melhor para nossas vidas”, afirma Fátima Soares / Foto: Jorge Leão

Tramitação

As mobilizações e a repercussão negativa fez com que Arthur Lira decidisse segurar a votação do projeto de lei. Por sua vez o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), descartou uma votação acelerada. “Um projeto dessa natureza, que é eminentemente de matéria penal e que guarda de fato muita divisão, muita polêmica, é muito importante se ter cautela em relação a ele”, frisou. 

De acordo com ele o aborto não pode ser tratado como o crime de homicídio, que tem pena de até 20 anos de prisão. Para Pacheco, mudanças no Código Penal não podem ser feitas por questões de momento, como a proximidade das eleições.

Já o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luís Roberto Barroso, evitou se manifestar sobre a tramitação do projeto. “A matéria está no Congresso, que é o lugar certo para se debaterem os grandes temas nacionais. Se e quando a matéria chegar no Supremo, eu vou opinar sobre isso”, afirmou.

Nesta sexta-feira (14), o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que o governo não apoia o PL. “Não contem com o governo para qualquer mudança na legislação atual de aborto no país. Ainda mais um projeto que estabelece uma pena para a mulher e para a menina que foi estuprada, que muitas vezes é estuprada sem nem saber o que é aquilo, que descobre tardiamente que ficou grávida porque nem sabe o que é a gravidez ou tem que esconder do estuprador, que às vezes é um parente que está na própria casa”, ressaltou Padilha. 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou neste sábado (15) que o aborto é uma realidade, e que precisa ser tratado como uma questão de saúde pública. “Eu acho uma insanidade querer punir uma mulher vítima de estupro com uma pena maior que um criminoso que comete o estupro. Tenho certeza que o que já existe na lei garante que a gente aja de forma civilizada nesses casos, tratando com rigor o estuprador e com respeito às vítimas.”

“Não vamos permitir a supressão de nossos direitos”

A marcha em Porto Alegre foi marcada por inúmeros “pañuelos verdes”, símbolo que nasceu na Argentina e se espalhou pelo mundo na luta pela descriminilização do aborto. No caso do Brasil, é uma resposta à ofensiva da bancada fundamentalista, que criou e fomenta o PL que quer acrescentar parágrafos a quatro artigos do Código Penal Brasileiro, que foi instituído em 1940. Os deputados seguem articulados para tentar emplacar o texto no plenário nas próximas semanas. 


“Não vamos nos deixar enganar por essa cortina de fumaça”, Denise Argemi / Foto: Jorge Leão

“Este ato é justamente a concretização de uma defesa, de uma resistência, de uma ação contra o PL 1.904/2024, que visa criminalizar principalmente as meninas e crianças e adolescentes estupradas. Isso é uma aberração, é uma lei que já nasce morta porque é inconstitucional o quanto nós temos os nossos direitos garantidos na Constituição”, enfatiza a advogada, integrante do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher e do Movimento Independente 5050, Denise Argemi.


Segundo o Estudo Meninas Mães 2023, realizado pela Rede Feminista de Saúde, que traz dados de 2020 e 2021, uma criança é mãe a cada 30 minutos no país / Foto: Jorge Leão

Para ela o PL é mais um ataque da extrema-direita, iniciado no passado, com a violência política de gênero contra vereadoras de São Paulo, contra vereadoras de Minas Gerais, deputados estaduais e federais que sofreram ameaças de estupro corretivo e de morte. “Uma delas recebeu inclusive ameaça de estupro à filhinha que tem dois anos e meio”, aponta.

“Este é o modus operandi da extrema-direita e nós mulheres não vamos admitir a supressão dos nossos direitos. Não vamos admitir que crianças sejam mães”, pontua. 

Segundo o Estudo Meninas Mães 2023, realizado pela Rede Feminista de Saúde, que traz dados de 2020 e 2021, uma criança é mãe a cada 30 minutos no país. De acordo com o portal Catarinas, nesse período, mais de 17 mil meninas de 10 a 14 anos foram mães anualmente, conforme análise da organização com base nos dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc – Datasus).


“É possível que nós criminalizemos as crianças e não os pedófilos e não os estupradores?” / Foto: Jorge Leão

“É possível que nós criminalizemos as crianças e não os pedófilos e não os estupradores?”, questiona Denise. “Esses homens que estupram essas crianças ocorre dentro de casa. São pais, irmãos, avós ou amigos da família. É isso que nós temos que ter cuidado. Eles colocaram a 22ª semana porque uma criança sequer sabe que foi estuprada, na verdade ela não entende a transformação que seu corpo vai sofrendo, e são os adultos que moram com ela ou que estão na comunidade que percebem aquele corpo que vai se modificando”, destaca.

Por fim, a advogada lembra que o aborto legal que eles (deputados) estão atacando é uma lei, o artigo 128 do código penal de 1940. “Ou seja de 80 e tantos anos atrás. Eles querem criminalizar algo que é inconstitucional. E sabemos que outros estão engavetados esperando o momento oportuno. Não vamos nos deixar enganar por essa cortina de fumaça porque é isso na verdade que estão fazendo. Enquanto nós nos ocupamos disso, a boiada vai passando, mas dessa vez a gente vai fechar a porteira e a boiada não vai passar”, finaliza.

Em 2022 o Brasil registrou o maior número de estupros da história, de acordo com a 17ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 74.930 vítimas, sendo que mais da metade (56.820 mil casos) são estupros de vulnerável, ou seja, crimes praticados contra menores de 14 anos. Mais de 68% dos casos aconteceram dentro de casa. 86% dos estupradores de crianças de até 13 anos eram conhecidos das vítimas.

A cada 8 minutos, uma menina ou mulher foi estuprada no primeiro semestre de 2023 no Brasil, maior número da série iniciada em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Foram registrados 34 mil estupros e estupros de vulneráveis de meninas e mulheres de janeiro a junho, o que representa aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano passado.  

De acordo com o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) desde 2007, 1.140 meninas de até 14 anos precisaram realizar o aborto legal no Brasil. Só no ano passado foram 154 meninas. Segundo reportagem do jornal O Globo,1.074 mulheres precisaram sair de suas cidades em 2023, em alguns casos até de seu estado, para conseguir realizar o aborto legal no Brasil. O número equivale a 36,2% de todos os 2.963 procedimentos registrados no país no ano passado. 

Entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. O levantamento é da Gênero e Número, que analisou mais de 1,7 milhão de internações registradas no Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) como gravidez que termina em aborto.

“Enquanto frente que luta há anos pelo acesso ao aborto como uma política de saúde, cuidado e respeito às meninas, mulheres e pessoas que gestam, conseguimos de forma muito sensível demonstrar a atrocidade do que o Congresso pretendia fazer com estas vidas. As mobilizações inicialmente pelas redes sociais ganharam as ruas em diversos estados do Brasil. Estamos organizadas na luta em defesa dos nossos corpos e das crianças que aí estão e virão. As ruas ontem demonstraram isso. A mobilização foi rápida e Porto Alegre deu sua resposta contraria a este PL. Foi muito importante, de grande volume de pessoas, algumas já organizadas em movimentos e grupos, outras querendo manifestar sua indignação frente à condenação de meninas, mulheres e pessoas que gestam a uma subcategoria de ser humano. Mas nós mobilizamos pela vida das mulheres, meninas e pessoas que gestam e conseguimos dizer com grande nitidez que criança não é mãe”, afirma Maíra Freitas, integrante da frente pela legalização do aborto do Rio Grande do Sul (Frepla-RS).


Foto: Jorge Leão


Foto: Jorge Leão


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 Foto: Jorge Leão


Foto: Jorge Leão

*Com a Colaboração de Jorge Leão.

Da Redação