A esquerda entre a derrota e o devir
Brasil de Fato
Escrever sobre a derrota com os pés firmes na utopia, isto é, na esperança de alcançar um território social permeado pelo bem comum, em tempos de profunda realidade distópica, implica em correr o risco da estupidez. Das figuras da estupidez descritas pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, me identifico com o bom soldado Schweik, que, ao ver soldados atirando contra às trincheiras inimigas, começou a gritar: “Parem de atirar, tem gente do outro lado!”.
Para esclarecer a ideia, o soldado aparentemente espanta-se com o óbvio, afinal, nas guerras seres humanos atiram, compulsoriamente, contra outros seres humanos. Porém, a atitude do soldado revela uma realidade impertinente, ou seja, lutar pela nação é exterminar outros seres humanos. Portanto, afirmo, com o risco da estupidez, que, para a esquerda, perder eleições municipais não é o mesmo que perder a luta por outra cidade possível.
Ser de esquerda é devir, movimento permanente de luta para o cumprimento das promessas universais da modernidade, de liberdade, igualdade e fraternidade. Entre a derrota e o devir, a esquerda segue por veredas estreitas, ora amargando a explosão de suas barricadas, ora montando, desejando e imaginando outras.
Por certo, escrever sobre a derrota com retórica filosófica, anunciando a morte da esquerda e sua desconexão comunicativa com as periferias urbanas demonstra sintonia com a realidade, principalmente quando a política do pior é a escolha majoritária nas urnas. Contudo, tal como o soldado Schweik, escolho bradar uma realidade sujeitada por décadas de terapia neoliberal, a fim de despertar a imaginação política presente nas utopias.
O Paralelo 30 – onde está localizado Porto Alegre (RS) – foi o epicentro de um outro mundo possível, a Paris das barricadas do século XIX. Há erros, obviamente, mas são pequenos diante da completa ausência de paridade de armas e é impossível registrá-los como causa essencial da derrota.
É uma pragmática insurreição intelectual, esforço para fazer aparecer uma realidade traçada no esperançar, na qual a esquerda brasileira se impõe como a maior esquerda do ocidente e que está presente como bloco fundamental de resistência ao fascismo dos trópicos.
Fato, a esquerda brasileira, a partir de 2013, sobretudo o Partido dos Trabalhadores, foi objeto de forte ofensiva das elites conservadoras, dos meios de comunicação e das estruturas do Estado, inclusive com a liberação da violência política com o retorno da extrema direita. Logo, a adesão popular foi, substancialmente, esbatida.
É impossível avaliar o resultado das urnas descolado da fragilização das instituições democráticas, que possibilita a marcha fascista sobre as bases éticas mínimas do jogo político, com o uso frequente de violência simbólica e física. As redes sociais são as vias de ataque desse fascismo cyber, graças à afinidade de interesses com barões das big techs. E é a partir dessas condições objetivas, da assimetria de forças que dominam o país, que a esquerda deve avaliar o resultado das urnas para persistir, imaginar e construir a luta política. A derrota é tática e o devir é estratégico.
* Doutor em História Social na Universidade de São Paulo (USP)
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.