Mapa da repressão: conheça locais citados como centros de prisões e torturas da ditadura em Curitiba
Brasil de Fato
Quem passa pela Praça Rui Barbosa, na região central da Curitiba, não imagina que esse espaço já foi utilizado para torturas e prisões durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, quando abrigava o Quartel do 15º Batalhão do Exército.
A praça é um dos pontos mais populares da cidade, por onde circulam milhares de pessoas diariamente, mas a maioria desconhece a importância do local para o resgate da verdade, memória e justiça.
Mas essa não é uma característica única da Praça Rui Barbosa. Curitiba possui outros sete locais de repressão que seguem desconhecidos da maioria da população. Muitos deles foram totalmente descaracterizados ou até mesmo demolidos.
Ainda na região central, os curitibanos que fazem compras e passeiam pelo Shopping Curitiba não fazem ideia que aquele edifício já abrigou o Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), outro espaço de prisões e torturas de presos políticos.
Em toda a cidade, predomina-se uma política de esquecimento e invisibilidade das marcas da ditadura. A maioria dos lugares de violação dos direitos humanos não apresenta qualquer sinalização sobre o seu significado e uso durante o período.
Luiz Gabriel da Silva, mestre em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador da ditadura militar em Curitiba, aponta que a cidade não só atua na tentativa de desvincular esses imóveis de seu passado autoritário, mas também possui uma tradição conservadora de apagar tudo aquilo que não é benéfico para a imagem pública.
“Em Curitiba, os locais utilizados para repressão passaram rapidamente por um processo de apagamento e descaracterização. Existem políticas públicas que enfatizam alguns lugares e memoriais em detrimento dos outros”, afirma Luiz. “Temos como exemplo as inúmeras homenagens a italianos, alemães e poloneses, mas poucas para a população africana ou indígena.”
Central curitibana da repressão política
O Quartel do 15º Batalhão do Exército, localizado na Praça Rui Barbosa, coleciona histórias de encarceramento e crueldade. O perfil de pessoas que passaram pelas celas era bastante diversificado, desde estudantes até trabalhadores, mas todos tinham em comum a acusação de terem praticado “atividades subversivas”.
De acordo com relatos da Comissão Estadual da Verdade (CEV-PR), o imóvel foi um dos principais pontos de concentração de presos políticos durante a Operação Marumbi, ação em que a polícia política prendeu mais de 100 pessoas acusadas de praticarem atividades comunistas no Estado, sobretudo a organização das bases políticas do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Teresa Urban, jornalista e ex-militante paranaense, chegou a relatar à CEV-PR que, durante sua presença no quartel “sofreu torturas psicológicas e físicas inimagináveis”. Segundo ela, era a central curitibana da repressão política.
No final de 1975, as instalações do imóvel foram cedidas à prefeitura, em troca de um terreno no bairro Pinheirinho. Atualmente, a área abriga um dos principais terminais rodoviários urbanos da cidade, a Rua da Cidadania Matriz e dezenas de comércios.
Apesar da política de apagamento, a praça é o único local onde os transeuntes podem se deparar com um monumento que marca a memória e representatividade do espaço, o Monumento pela Resistência e a Luta pela Anistia no Paraná.
No entanto, o estado de preservação da obra é preocupante. O memorial encontra-se todo enferrujado, com marcas do descaso e pouco cuidado que o poder municipal tem na manutenção.
Clínica Marumbi
Outro lugar onde ocorreram diversas violações aos direitos humanos foi a Clínica Marumbi, uma suposta clínica veterinária que abrigava salas de tortura.
“Esse local era uma clínica para tratamento de animais de fachada. No interior haviam algumas salas para onde as pessoas eram levadas e torturadas. Vinha gente de São Paulo muito bem treinada para ensinar aos torturadores como obter confissões de forma eficiente”, conta Ivete Caribé da Rocha, advogada e coordenadora do Comitê Estadual da Memória, Verdade e Justiça do Paraná.
Pesquisadores afirmam que esse é um dos locais mais difíceis de ser mapeado. As pessoas que eram levadas para lá estavam sempre encapuzadas, por isso não conseguiam afirmar a localização exata. Mas sabe-se que ficava nas dependências do Departamento Regional de Material de Saúde (DRMS), entre as ruas Dr. Pedrosa e Brigadeiro Franco.
Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS)
Em 1971, Sérgio Faria, ex-militante e professor, foi preso na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS). O DOPS de Curitiba estava localizado na rua João Negrão, 773, também no centro da cidade.
“Fiquei 10 dias nas dependências do DOPS, dentro de uma cela escura, com uma pequena janela e sem coberta. Era o início de setembro e estava extremamente gelado”, lembra Sérgio.
O DOPS atuava na perseguição de opositores à ditadura civil-militar. Registros do Arquivo do Paraná revelam que, durante o período, mais de 44 mil paranaenses foram investigados pelo órgão, muitos deles submetidos a sessões de torturas e, posteriormente, transferidos para outros quartéis do estado.
“Deixaram a gente sem comer e acorrentados nas grades. Depois, pegavam um por um e torturavam com choques elétricos, pancadas e todas essas coisas”, relata o ex-militante.
A CEV-PR reúne uma série de depoimentos de indivíduos que passaram pelas dependências do DOPS. Um dos delegados mais temidos durante o período foi Ozias Algauer, que ocupou o cargo entre 1969 e 1973. Sua figura é frequentemente mencionada dos relatos de violações de direitos humanos por ex-presos políticos da época.
“O local onde eu fui torturado já não existe mais. Por isso, nota-se que, em Curitiba, o complexo de culpa dos opressores acaba por destruir os espaços e marcos de memória material da sociedade. Estão destruindo a memória da cidade”, afirma Sérgio.
Centro de Preparação de Oficiais da Reserva da 5ª Região Militar (CPOR)
O Shopping Curitiba é um importante centro comercial, onde centenas de pessoas circulam todos os dias. No entanto, poucas delas conhecem o passado do edifício, marcado por prisões e torturas durante o regime de exceção.
O CPOR também recebeu alguns prisioneiros durante a Operação Marumbi, apesar de não ser a principal localização utilizada pela operação.
O imóvel foi vendido pelo exército em 1989 e, em 1996, transformado em centro comercial. Apesar das mudanças, a fachada foi preservada.
Presídio do Ahú
Após uma triagem nos locais citados anteriormente, as pessoas detidas eram encaminhadas para o presídio do Ahú, localizado no centro administrativo da capital paranaense, onde também estavam os órgãos dos governos estaduais, municipais e do Poder Judiciário.
A chegada das pessoas ao presídio significava a entrada no sistema carcerário, com direito à assistência médica, visitas de familiares e apoio jurídico.
Entretanto, o prédio já não existe mais. Foi demolido em 2006, quando os mais de 900 detentos foram transferidos para o Centro de Detenção e Ressocialização de Piraquara, cidade da Região Metropolitana de Curitiba.
No terreno, foi erguido o novo prédio do Fórum Criminal e Fórum dos Juizados Especiais do Centro Judiciário. Atualmente, o local abriga o único espaço da Comissão Estadual da Verdade do Paraná (CEV-PR), que recebe visitas e conta com um acervo.
1º Comando Regional de Polícia Militar
Localizado entre as avenidas Marechal Floriano Peixoto e Getúlio Vargas, o Quartel da Polícia Militar é um dos únicos locais que mantêm as suas características originais.
Apesar de ter sido palco de prisões de pessoas envolvidas em atividades contra o regime repressivo, o espaço não foi associado a casos de tortura, apenas como local de detenção, conforme relatado por ex-militantes no Relatório da Comissão Estadual da Verdade.
Foi neste quartel que aproximadamente 70 estudantes estiveram detidos após a chamada “Batalha do Politécnico”, em 1968, quando se reuniram contra a implantação do ensino pago nas universidades públicas. Os estudantes foram posteriormente liberados após intensas manifestações
Superintendência da Polícia Federal
A antiga sede da Polícia Federal, situada na Rua Ubaldino do Amaral, 321, é outro ponto associado à repressão em Curitiba, embora tenha registrado um menor número de denúncias.
Posteriormente, a Superintendência da Polícia Federal foi transferida para um novo prédio no bairro Santa Cândida. Hoje, o imóvel abriga a Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis (PRAE) da UFPR.
Quartel do Boqueirão
Entre os locais marcados pela repressão, o Quartel do Boqueirão não é amplamente citado, mas há registros de militantes que lá estiveram detidos durante esse período.
Ivete Caribé, coordenadora do Comitê Estadual da Memória, Verdade e Justiça do Paraná, relata que ainda existem espaços que precisam ser demarcados na cidade.
“Nos informaram que em uma delegacia próxima ao Museu Paranaense havia porões onde se praticava todos os tipos de tortura e repressão, mas não conseguimos identificar o local. Como as pessoas não viam para onde estavam sendo levadas, é muito complicado descobrir a localização exata desses imóveis”, comenta Ivete.
Relembrar o passado para compreender o presente
A cidade de Curitiba tem optado por uma política de esquecimento e invisibilidade das marcas da ditadura militar.
Embora esses locais pudessem servir como marcos de pertencimento e memória, a ausência de identificação e políticas de preservação contribui para sua marginalização e esquecimento, silenciando uma parte importante da História.
“Existe uma passagem da Odisséia que é dos lotófagos. Ulisses e os seus companheiros chegam a uma ilha onde todos comem a flor de lótus assim que chegam. Mas quando você come a flor de lótus esquece imediatamente do retorno. Eu costumo usar essa metáfora em analogia ao que o poder público de Curitiba faz. Por meio dessa propaganda ufanista e da imagem europeia ordeira, eles oferecem a flor de lótus para que as pessoas esqueçam os conflitos que a cidade já enfrentou”, comenta o pesquisador Luiz Gabriel da Silva.
Neste ano, o governo do presidente Lula também optou pela política do silêncio em relação às manifestações que marcam os 60 anos do regime militar em 2024. Para Ivete Caribé, a atitude se mostrou inesperada e surpreendente.
“Posso dizer que isso é um tremendo erro. Este é o momento de se falar sobre o que é a instituição das Forças Armadas no Brasil, e o governo deveria aproveitar essa oportunidade”, diz Ivete. “A impunidade no Brasil e a falta de conhecimento de nossa história são os principais fatores que levam a acontecimentos como o 8 de janeiro de 2023. É necessário fazer essa conexão para entender que as mesmas forças de 1964 ainda estão atuantes e tentando novos golpes em nosso país”, conclui.