Brasil afirma ter se surpreendido com manifestações de autoridades venezuelanas e reforça respeito à soberania

Brasil de Fato

O Itamaraty publicou uma nota nesta sexta-feira (1) afirmando ter se surpreendido com manifestações de autoridades venezuelanas. Em nota, o governo brasileiro disse respeitar a soberania de cada país, “em especial a de seus vizinhos”. O comunicado vem na esteira de uma publicação da Polícia Nacional da Venezuela, que publicou nas redes sociais uma imagem com a bandeira do Brasil e a legenda: “Quem mexe com a Venezuela se dá mal”. 

De acordo com o governo brasileiro, as autoridades venezuelanas usaram um “tom ofensivo em relação ao Brasil e aos seus símbolos nacionais”. Mesmo sem citar o presidente Lula, a publicação da polícia venezuelana coloca a imagem de um homem de cabelo e barba branca e o rosto borrado à frente da bandeira do Brasil.  

“Ataques pessoais e escaladas retóricas, em substituição aos canais políticos e diplomáticos, não correspondem à forma respeitosa com que o governo brasileiro trata a Venezuela e o seu povo”, afirma a nota.

Ainda segundo a nota, o interesse do governo brasileiro nas eleições do país vizinho se dá porque o país foi convidado para ser testemunha do Acordo de Barbados, documento assinado entre governo e oposição da Venezuela que estabelecia determinações para a realização do pleito. O texto termina afirmando que o Brasil segue convicto de que as parcerias devem ser baseadas no “diálogo franco, no respeito às diferenças e no entendimento mútuo”.

Venezuela e Colômbia

O ministro das Relações Exteriores da Venezuela, Yván Gil, disse nesta quinta-feira (31) que o governo colombiano “vai se arrepender” de se intrometer nos assuntos internos do país. A fala foi uma resposta à declaração do chanceler colombiano, Luis Gilberto Murillo, que afirmou que o país vizinho não reconheceria a vitória de Nicolás Maduro nas eleições venezuelanas se os resultados não fossem apresentados. 

Segundo o venezuelano, os colombianos fazem uma “diplomacia de microfone” e afirmou que Murillo se deixou chantagear pela extrema direita e pelo “império estadunidense”.

“A diplomacia colombiana tornou-se uma diplomacia de microfone, chega de falar da Venezuela, a partir daqui podemos dar lições ao mundo sobre a verdadeira democracia. A Venezuela responderá no devido tempo e lamentará a constante interferência em nossos assuntos internos”, afirmou Gil.

O chanceler colombiano havia dito que o presidente Gustavo Petro mantinha a posição de não reconhecer os resultados eleitorais até que fossem apresentados os resultados desagregados. Depois da judicialização do processo eleitoral, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) havia reconhecido o resultado das eleições do país, mas determinou que o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) divulgasse os dados detalhados da votação. Depois de 3 meses do pleito, esses resultados não foram publicados.

“A posição do Governo Nacional permanece clara: a apresentação da ata deverá ser realizada antes do final do atual mandato presidencial, em 10 de janeiro de 2025. Caso contrário, como já expressou o Presidente, a Colômbia não concederá reconhecimento aos resultados”, publicou Murillo em suas redes sociais.

A troca de acusações com os colombiano se soma a uma tensão diplomática envolvendo Venezuela e Brasil. O governo brasileiro tem adotado a mesma postura de Bogotá cobrando a publicação dos resultados desagregados e afirmando que não reconheceria a vitória de Maduro enquanto o detalhamento dos votos não fosse divulgado.

O esfriamento das relações entre os países representa um distanciamento dos dois parceiros mais próximos da Venezuela na região neste momento. Lula e Petro foram os únicos presidentes sul-americanos que se encontraram com Maduro nos últimos dois anos. Eles também foram responsáveis por articular um canal de diálogo com Caracas depois das eleições. Maduro chegou a agradecer a participação dos dois no que chamou de “defesa” das eleições venezuelanas.

Há, no entanto, uma diferença em relação ao tratamento que a chancelaria venezuelana dá no conflito com os dois países. No caso brasileiro, a retórica de Caracas se direciona mais ao assessor especial, Celso Amorim, ao Itamaraty e respingaram também no diplomata Eduardo Paes Saboia. A irritação venezuelana se dá, principalmente, em relação ao veto brasileiro à entrada da Venezuela no Brics. 

Para o sociólogo e professor da Universidade Central da Venezuela (UCV) Atílio Romero o fato de o Brasil não apresentar uma justificativa para o veto à Venezuela faz com que haja um sentimento de ingerência nos processos internos. Segundo ele, a sensação que fica é que o Brasil usa o pretexto eleitoral para barrar a participação em um grupo estratégico para outros países.

“Cuba entrou no Brics. Como é possível que ninguém discuta isso? É um adversário histórico dos EUA no Brics. A Venezuela então entra de tabela, já que tem negociações com países do bloco. Ou seja, parece uma represália do Brasil em uma questão que não tem nada a ver com o interesse do próprio bloco”, disse ao Brasil de Fato.

Já com os colombianos a tensão envolve diretamente o ministro Murillo, que tem sido porta-voz da insatisfação do governo em relação ao resultado eleitoral venezuelano. No começo de outubro, Murillo já havia dito que respeita o princípio da soberania e que este é um tema os venezuelanos têm que resolver, mas colocou “sérias dúvidas de legitimidade e legalidade” nas eleições. 

Na ocasião, Gil já havia respondido afirmando que a Colômbia não tem o direito e a “moralidade” para dizer o que os venezuelanos devem fazer.

Para Romero, o distanciamento de Colômbia e Brasil é reflexo de uma movimentação do tabuleiro geopolítico. Segundo ele, a Venezuela já está isolada do mundo ocidental, mas mantém relações com países asiáticos, africanos e da América Central. 

“Há uma disputa entre o bloco dos Brics e o G7, que está ligado aos EUA e ao interesse de impor um sistema. Há uma agenda dominante que tem sido enfrentada e o Brics significa um desafio a essa hegemonia. Nessa disputa, há um grupo de países como Venezuela, Cuba e Nicarágua que são enfrentados pelo bloco hegemônico. Nisso o veto do Brasil está inscrito, é uma decisão da chancelaria que, independente de Lula, segue os interesses das elites brasileiras e é interessante para o interesse dos EUA”, afirmou. 

Crise entre Venezuela e Brasil

A tensão envolvendo os dois países vizinhos começa na corrida eleitoral venezuelana. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) brasileiro enviaria dois observadores para acompanhar o pleito, mas desistiu depois de Maduro afirmar que as urnas brasileiras “não são auditadas”. Em vez de observadores, o governo brasileiro enviou o assessor especial, Celso Amorim, para Caracas durante as eleições. 

Maduro foi eleito para um terceiro mandato com 51,97% dos votos contra 43,18% do opositor Edmundo González Urrutia. A oposição venezuelana contestou o resultado e afirmou ter recolhido mais de 80% das cópias das atas eleitorais e, segundo a coalizão de direita Plataforma Unitária, isso garantiria a vitória de Urrutia.

Isso, somado a denúncia de um ataque hacker contra o sistema eleitoral da Venezuela, levaram Maduro a pedir uma investigação pela Justiça. O órgão eleitoral atrasou a divulgação dos resultados detalhados alegando a atuação hacker, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) venezuelano investigou os supostos ataques, recolheu todo o material eleitoral do órgão e ouviu 9 dos 10 candidatos que disputaram o pleito. Só Edmundo González Urrutia não compareceu.

O governo brasileiro começou a articular com Colômbia e México uma mediação da questão eleitoral venezuelana. Os três governos emitiram duas notas conjuntas pedindo a publicação das atas eleitorais pelo CNE e não pela Justiça do país. O TSJ da Venezuela validou a eleição de Maduro e pediu a publicação dos resultados desagregados em até 30 dias. No entanto, mais de 3 meses depois do pleito, os resultados ainda não foram publicados e o site do órgão eleitoral continua fora do ar.

Lula então passou a oscilar entre pedir que a situação seja resolvida internamente, sugerir a realização de novas eleições e dizer que não reconhecia a vitória de Maduro se os resultados das atas não fossem publicados e, consequentemente, sua vitória nas urnas fosse comprovada de forma independente. 

A relação entre Venezuela e Brasil se estabilizou momentaneamente até a cúpula do Brics, realizada em Kazan, na Rússia, de 22 a 24 de outubro. Nela, o governo venezuelano esperava ser incorporado ao grupo na categoria de “Estado parceiro”, mas ficou de fora da lista de 13 novos integrantes por um veto do Brasil. A decisão do Itamaraty revoltou os venezuelanos.

O motivo do veto não foi justificado publicamente pelo governo de Lula. O presidente não compareceu ao evento e enviou o chanceler, Mauro Vieira, para chefiar a delegação. Caracas afirma que a decisão foi uma “punhalada nas costas” e que a medida de “ingerência” do governo brasileiro é uma forma de interferir na política local.

Em audiência na Câmara dos Deputados, Amorim reforçou que a questão do pleito deve ser resolvida por venezuelanos e que o Brasil não reconhece a eleição do presidente Nicolás Maduro, até que sejam apresentados os resultados desagregados. Amorim não explicou claramente o veto no Brics. Primeiro, disse que é preciso ser um país com influência e que represente a região, algo que, para ele, a Venezuela não cumpre. Em um segundo momento, citou o mal estar entre os governos brasileiro e venezuelano. 

Em resposta à fala do assessor especial, o governo da Venezuela convocou o embaixador venezuelano no Brasil, Manuel Vadell, para consultas. Em nota, Caracas afirmou que a medida foi tomada depois das declarações “intervencionistas e grosseiras” de Amorim. A chancelaria venezuelana também convocou o encarregado de negócios do Brasil em Caracas para demonstrar “rechaço” às declarações de representantes do governo brasileiro em relação ao processo eleitoral do país. 

Da Redação