Por que ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis, continua fascinando gerações?
Brasil de Fato
Em 14 de março de 1900, Machado de Assis apresentava ao mundo “Dom Casmurro”, seu oitavo romance, integrante da aclamada trilogia realista que também inclui “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Quincas Borba”. Ao completar 124 anos, esta obra permanece como um dos romances mais estudados, discutidos e emblemáticos do autor, oferecendo um retrato incisivo da sociedade burguesa do século 19 no Brasil.
Centralizada na vida de Bentinho e Capitu Santiago, “Dom Casmurro” destaca-se pela narrativa em primeira pessoa, marcada pela ironia e ambiguidade de Machado. A história explora temas como ciúme, dúvida e a possibilidade de traição, deixando leitores em eterno debate sobre a fidelidade de Capitu.
Machado e a Arte da Escrita
Além da trama envolvente, Machado de Assis utiliza o romance para refletir sobre o ofício de escrever. A obra é recheada de digressões sobre técnicas narrativas, jogos de palavras e a relação íntima entre autor e leitor, tornando “Dom Casmurro” um estudo fascinante sobre a literatura em si.
“Dom Casmurro” é uma “obra aberta”, rica em interpretações e interações emocionais e imaginativas.
A ambiguidade intencional sobre a traição de Capitu transforma o romance em um campo fértil para discussões e análises diversas, destacando a maestria de Machado em provocar reflexões profundas em seus leitores.
Gestação e Publicação
A criação de “Dom Casmurro” foi um processo longo e reflexivo para Machado, que compartilhava pouco sobre seus trabalhos em andamento. Revelado por correspondências trocadas com contemporâneos, o romance foi meticulosamente planejado e sua publicação, ansiosamente aguardada. Ao ser publicado, não decepcionou, reafirmando a posição de Machado de Assis como um dos maiores escritores brasileiros.
Ao completar 124 anos, “Dom Casmurro” não apenas celebra um marco na literatura brasileira, mas também continua a inspirar debates, análises e a admiração de novas gerações.
A obra é um testamento da genialidade de Machado de Assis e de sua capacidade de capturar a complexidade humana em palavras.
O Manuscrito Perdido
Em carta ao crítico literário José Veríssimo, em 1908, o escritor e acadêmico Mário de Alencar comenta sobre um manuscrito perdido de “Dom Casmurro”. Machado confidenciou a Mário seu processo criativo não linear: inicialmente concebido como conto, “Dom Casmurro” evoluiu para romance durante sua composição. A epígrafe inicial de “Dom Casmurro”, quando ainda concebido como um conto, originou-se de Diderot, a mesma posteriormente utilizada em “Várias Histórias”, de 1896.
Essa escolha revela algo do processo criativo de Machado de Assis, que preferia que a trama se desenrolasse de forma orgânica, acolhendo ideias inesperadas ao longo da escrita, em contraste com a rigorosa organização típica dos romances ao estilo de Flaubert.
Machado é um autor cuja genialidade reside tanto no que omite quanto no que revela, enriquecendo suas obras com camadas de significado e permitindo uma leitura rica em interpretações.
Um Agregado
Em 15 de novembro de 1896, Machado de Assis publicou “O Agregado”, um trecho de “Dom Casmurro”, no periódico “A República”, algo raro no que diz respeito ao “Bruxo do Cosme Velho”, que não costumava antecipar suas obras. Este texto, que sofreu várias alterações até a versão final do romance, incluiu partes dos capítulos 3, 4, 5 e 7. Curiosamente, nele é mencionado que a família Santiago vinha de Cantagalo, não de Itaguaí, o que talvez explique um possível “cochilo” do mestre que no capítulo 31 do livro, referindo-se a José Dias, diz “A erudição deste não avultava muito mais que a sua homeopatia de Cantagalo”. É a única ocorrência de Cantagalo em todo o livro. “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, suscita polêmica há mais de um século pela suposta traição de Capitu.
Este debate persiste, criando um impasse entre os leitores, já que as visões antagônicas se mostram igualmente viáveis, dificultando um veredito definitivo. A chegada das IAs generativas propôs novas formas de investigar esse mistério, levantando a dúvida: será que a tecnologia tem a capacidade de oferecer uma resposta inequívoca sobre o enigma de Capitu? Ou talvez, quem sabe, na vastidão de suas palavras não ditas, Machado tenha nos deixado uma verdade que transcende a própria literatura, sugerindo que certos mistérios sejam mais valiosos quando permanecem sem solução?
*Cláudio Soares é editor, escritor e jornalista. Atualmente, está escrevendo a biografia de Machado de Assis.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.