O bom e velho prato feito está sob ameaça das mudanças climáticas
Brasil de Fato
Já pensou se, daqui a um tempo, a refeição que nós brasileiros consumimos diariamente não tivesse mais arroz, feijão, carne ou salada A hipótese pode parecer um pouco radical, mas não deve ser totalmente descartada, de acordo com especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato.
Os efeitos das mudanças climáticas para a produção de alimentos ainda são pouco mapeados e já se mostraram desafiadores, mesmo num país de clima relativamente privilegiado como o brasileiro. “Pesquisadores de universidades estão começando a se debruçar sobre esses dados de como a produção de alimentos está sendo afetada e o quanto isso pode impactar na soberania alimentar brasileira”, diz Sandra Bonetti, secretária de Meio Ambiente da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura).
A seca recorde na Amazônia em 2023, que fez minguar o volume dos rios e dos peixes locais, ondas de calor no sudeste e as inundações catastróficas que avançaram sobre grande parte do Rio Grande do Sul. Eventos climáticos recentes e de grande dimensão ajudaram a acender o sinal vermelho sobre a necessidade de criar soluções emergenciais de abastecimento.
“Porto Alegre ficou desabastecida por bastante tempo e vai ficar desabastecida ainda por muito tempo, porque as regiões que foram mais afetadas – o entorno de Porto Alegre e região de Serra – são basicamente de agricultura familiar”, afirma Sandra, que reforça o dado do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de que são os produtores de pequeno porte que abastecem cerca de 70% da população brasileira. “Vamos ter que recuperar o solo, não é só limpar a área. A gente não tem mais solo fértil para produzir. O solo demora anos para se recompor.”
A extensão da crise também expõe a população gaúcha a um aumento prolongado de consumo de ultraprocessados e outros alimentos industrializados de baixo valor nutricional, alerta Manuela Dolinsky, diretora do Conselho Federal de Nutricionistas e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“É claro que, numa situação de calamidade, como a que acontece em Porto Alegre, onde a cidade ainda não foi recomposta, não se pode passar fome. Então enviamos a comida disponível e com controle higiênico-sanitário, nesse caso, o ultraprocessado. Mas isso não é sustentável a longo prazo”, afirma.
Manuela menciona o Guia Alimentar para a População Brasileira, lançado há 10 anos e que se tornou referência no exterior e para o Plano Brasil de Fome, pelas recomendações feitas. Priorizar os alimentos in natura e predominantemente de origem vegetal e moderar o uso de óleos, açúcares e gordura são algumas das indicações. O objetivo, segundo ela, é agir preventivamente em prol da saúde e para evitar o sobrepeso, a obesidade e também doenças crônicas ou agravadas pela alimentação inadequada.
Planta-se o que se pode colher
Várias etapas estão envolvidas até os alimentos de qualidade chegarem à nossa mesa, entre elas: produção, logística e armazenamento. As condições desse processo se refletem na oferta e nos preços que chegam ao consumidor. As mudanças climáticas também fazem parte deste cálculo, conforme explica o engenheiro florestal Giampaolo Pellegrino, que coordena o portfólio sobre o tema na Embrapa.
“Nosso enfoque vai desde entender o impacto da mudança climática sobre o desenvolvimento das culturas e produções, sob a ótica da potencial redução de áreas de cultivo no futuro, ao das técnicas de mitigação e redução de emissão de gás de efeito estufa”, explica o pesquisador.
A previsão de cenários ajuda a antecipar medidas necessárias para adaptar culturas ou, ocasionalmente, promover intercâmbios de conhecimentos entre produtores de regiões “cujos clima e ecossistemas passaram a ser mais parecidos”.
“Antes, eu plantava o tomate no campo. Agora, vou ter que usar sistemas protegidos, estufas, controle de temperatura, controle de umidade, usar outra tecnologia, se eu quiser continuar com a minha plantação de tomate nesse local. Se não, plantar tomate não será mais favorável”, exemplifica Pellegrino.
Levar novos conhecimentos e técnicas para produtores não é tarefa fácil e exige um longo trabalho de convencimento sobre um olhar menos imediatista, aponta Sandra Bonetti. “Quando eu chego para falar que a mudança climática afeta diretamente os agricultores e as agricultoras, de pronto me olham e questionam ‘do que você está falando? Clima Eu estou preocupado com a minha produção e com as pragas na minha propriedade'”, relata.
A ambientalista da Contag também comenta que, naturalmente, os próprios produtores vão se adaptando às culturas que dão melhores resultados. “Se eu tenho uma área para produzir mandioca, mas não estou conseguindo produzir a mesma quantia todo ano, então vou reduzindo ou trocando, infelizmente”, diz.
“Por isso eu falo que a pesquisa também é um fator muito importante, seja ela pública ou privada, de pensar sistemas produtivos para esses alimentos principais, para que a gente não perca culturalmente o que a gente come no dia a dia.”
Mitigação de riscos ambientais: via de mão dupla
Nos últimos anos, o Brasil também percebeu que não bastaria contornar os efeitos das mudanças climáticas. Era necessário também não agravá-los na produção de alimentos. Por isso, o governo Dilma Rousseff lançou em 2010 o Plano de Agropecuária de Baixo Carbono, ou Plano ABC, que mais tarde seria relançado como Plano ABC+. A meta do programa é ajudar a reduzir a emissão de carbono, com volume estipulado de 1,1 bilhão de toneladas de CO2 apenas no setor agropecuário, até 2030.
Segundo Giampaolo, são feitos investimentos em pesquisa sobre a redução do impacto da mudança climática na agricultura. “São várias vertentes, como diversificar a produção, aumentar a renda e soluções de temperatura. Então há integração da lavoura com a floresta, da pecuária com as florestas, sistemas de plantios diretos, plantio de florestas mesmo”, comenta.
Ele também explica que as culturas mais tropicais, como a cana e a mandioca, por exemplo, tendem a sofrer menos impacto com a elevação de temperatura. “Outras culturas como arroz, feijão, milho e soja teriam a perda da área potencial total no Brasil. Dependendo do cenário, a redução chega de 30% até a 40% a depender da região”, projeta.
Além desses grãos, Manuela também elenca outros desafios já bem contornados: “algumas frutas tropicais que são mais sensíveis a essas alterações climáticas, como a banana, o abacaxi, o maracujá, que fazem parte do padrão alimentar da população brasileira. E, mais além, a pecuária, pela questão das pastagens e do acesso à água. Há um possível impacto também na produção de carnes, leites, queijos e derivados, além da pesca, que poderá ser afetada pelas variações oceânicas”.
A possibilidade do aquecimento global gerar inflação em alimentos básicos foi mapeada em estudo recente publicado na Alemanha. A alta dos preços poderia passar de 3% ao ano ainda nesta década. Com isso, se prevê uma adaptação na rotina alimentar na Europa e que se estenderia a todo o mundo no futuro.
Do ponto de vista nutricional, segundo Manuela, seria possível substituir o arroz por vegetais ricos em carboidrato, como a batata e o cará; e o feijão por grão-de-bico, por exemplo. Mas a que custo?
“Teríamos como fazer sem essa adequação, mas eu acho de uma tristeza muito grande, porque, afinal de contas, o consumo de alimentos não perpassa só pela composição desses alimentos. A gente tem uma questão cultural forte, uma regionalidade forte, uma identidade, enquanto brasileiros, que atravessa o nosso padrão alimentar. Seria uma perda muito grande alterar a nossa identidade alimentar”, finaliza.