Voluntária em crises humanitárias, jornalista viu mais tristeza no RS que em países da África
Brasil de Fato
“As mulheres em crises humanitárias, normalmente estão sozinhas. Porque os seus companheiros, se sobreviveram em um caso de guerra e conflito, eles ficaram nas aldeias, ficaram nas comunidades de origem. Ou estão lutando na linha de frente. E essas mulheres têm uma penca de filhos. E são chefes de família. Elas precisam tocar a vida. E fugir. E caminhar. E cruzar a fronteira. E encontrar proteção”, descreve a jornalista Fernanda Baumhardt.
Formada pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), a gaúcha Fernanda estava no topo da carreira de publicidade, em cargos executivos nos canais Bloomberg e CNN, quando pediu demissão e deu uma virada na sua trajetória.
Autora do livro “Vozes à Flor da Pele – uma humanitária brasileira em busca de propósito”, nos últimos 16 anos tem se dedicado ao trabalho humanitário em comunidades devastadas por desastres ambientais, em campos de refugiados ou deslocados, como ocorreu no Malauí, Afeganistão, Sudão do Sul, Equador e Colômbia.
Passou por 25 países e cerca de 40 missões atuando com organizações como a ONU, a Cruz Vermelha e o Conselho Norueguês para Refugiados (NRC). Assim foi a conversa que tivemos com ela:
Brasil de Fato RS – Para começar, conta um pouco da tua trajetória.
Fernanda Baumhard – Me formei em Jornalismo na Unisinos em 1994. A disciplina em que obtive a melhor nota foi Comunicação Comunitária que, na época, ainda existia. Hoje, algumas faculdades falam sobre Jornalismo Cidadão. Mas é essa ideia de gerar conteúdo com e para pessoas em minoria, em guetos, no fundo do mundo.
Era isso que sempre me interessou. Só que vendi a minha alma com 28 anos para a publicidade. As portas se abriram e acabei indo para o veículo. Ser comercial, vender anúncios, trazer dinheiro. Foi uma grande traição da minha essência, mas que também me faz entender que não se pode ficar só olhando para o idealismo. Temos que olhar para a praticidade também. E, então, eu não tinha grana, precisava pagar minhas contas, como hoje também não.
Quando cheguei ao topo do mundo me deparei com um grande vazio
Fiquei na publicidade durante quase 12 anos. Cheguei na CNN, fiquei oito anos na Turner Broadcasting, na época era TV paga. Eu era comercial do Cartoon Network, TNT e CNN. Não pensava em nada além da minha carreira. Não era altruísta, não tinha despertado para esse lado humano.
E quando cheguei no topo do mundo sem ver o mundo ao meu redor, me deparei com um grande vazio. Talvez essa crise existencial já estivesse em um crescendo mas estava meio silenciosa. Procurei a meditação budista para tentar me dar um norte interno, tipo ´O que está acontecendo comigo?`
BdF RS – Quando foi essa virada de chave?
Fernanda – Em 2007. Estava na CNN em Los Angeles, era executiva de contas ainda na publicidade da CNN Digital. Era a única brasileira funcionária daquela divisão nova. Estava lá, de frente pra Hollywood, com tudo aos meus pés, com dinheiro, com poder, com glamour. E a chave virou quando vi que nada daquilo me trazia preenchimento.
O que vejo a sociedade fazendo quando isso acontece? Muita gente procurando remédio, Rivotril, antidepressivo e muito poucas pessoas usando a própria espiritualidade, um mergulho interior para ver o que está faltando. Fui por esse caminho. Precisava, para me sentir alguém, preenchida, com sentido de vida, fazer algo pelo outro. Foi quando pedi demissão.
BdF RS – E qual foi o teu primeiro trabalho nessa virada
Fernanda – Não foi um trabalho e sim uma experiência como pesquisadora. Fui fazer um mestrado na Holanda. Quando pedi demissão, fui crucificada por todos. Tive uma única tia no meu pequeno círculo que me deu apoio. Porque, inclusive, a própria CNN disse, ´Vais para onde? Vais para o concorrente?` Ninguém aceitava o que eu dizia: vou buscar um caminho. Porque essa resposta, em 2007, não existia.
Mas quando se fala de deslocamento forçado com comunidades fugindo do Talibã, como em 2018?
BdF RS – Então nesse processo na Holanda…
Fernanda – Fui fazer mestrado em Gestão Ambiental para aprender sobre os maiores problemas do mundo. O (ex-vice-presidente dos EUA) Al Gore tinha lançado o documentário Uma Verdade Inconveniente, começando a falar sobre crise climática. E aquilo me preocupava.
Queria aprender o que estava acontecendo com o planeta. Minha pesquisa de campo foi com a Cruz Vermelha, em Malauí, na África. Foi minha primeira experiência. Três meses como pesquisadora trabalhando com aldeões de cinco aldeias.
Minha pesquisa envolvia ajudá-los a documentar em vídeo as práticas de adaptação à mudança climática que estavam fazendo. Como, por exemplo, substituir galinhas por patos. Porque eles se deram conta que os patos flutuam. E que as galinhas morriam nas enchentes repentinas. E o vídeo foi indo para outras comunidades. Foi o meu primeiro processo de vídeo participativo. Que é uma metodologia no qual eu sou especialista.
BdF RS – E essas Vozes à Flor da Pele, o que te trouxeram?
Fernanda – Uma necessidade de sacudir o mundo. Em todas as esferas. Vi muito sofrimento humano. No Afeganistão, por exemplo, a menina dos olhos mais tristes do mundo, como relato no livro.
E sofrimento humano em que grau? Deslocamento forçado é o que vimos aqui no Rio Grande do Sul como consequência das inundações.
Mas quando se fala de deslocamento forçado com comunidades fugindo do Talibã, como em 2018? Mil quilômetros, sem comida, sem água, com doença, sem apoio nenhum das autoridades, correndo risco de vida. São muitas crises somadas.
E isso me trouxe para um lugar de humildade profunda em relação à grandeza dessas pessoas que lutam pela sobrevivência. Quando você se depara com essas crises múltiplas somadas, a gente chama de emergência complexa.
O que me interessa, na verdade é mostrar para quem está no comando do mundo que ´Vocês não têm a menor ideia do que é esse sofrimento`. Porque, se tivessem, teriam tomado outro rumo e outras decisões. O que me trouxe também muita indignação.
As mulheres, nas crises humanitárias, normalmente estão sozinhas
BdF RS – E o livro enfatiza a voz das mulheres …
Fernanda – Por que as mulheres? As mulheres, nas crises humanitárias, normalmente estão sozinhas. Seus companheiros, se sobreviveram em caso de guerra, ficaram nas comunidades de origem. Ou estão lutando na linha de frente. E essas mulheres têm uma penca de filhos. São chefes de família. Precisam tocar a vida. E fugir. E caminhar. E cruzar a fronteira. E encontrar proteção.
Ouvi mulheres na linha de frente, por exemplo, na Colômbia, as sobreviventes daquele conflito que não termina nunca. Apesar dos grandes holofotes em acordos de paz que não existem de fato. Essas mulheres tem que proteger umas às outras. E tendo muito mais sucesso nesses movimentos sociais e nas organizações de base comunitária do que em intervenções de agências internacionais, muitas vezes, cheias de pompa.
Tem a voz da Juana Francisca, por exemplo, no capítulo da Colômbia. Juana, a tecedora de dor em cor. Fortíssima a voz dela. Da Mayra, uma representante de uma comunidade indígena que também narra sua história de luta.
E são vozes, o que é mais interessante, que vêm do amor e da construção. A Mayra fala ‘Nós, mulheres, somos construtoras de paz. Precisamos ter o nosso lugar na mesa, um lugar na decisão’.
BdF RS – Onde essas vozes se encontram?
Fernanda – Humanidade. A gente acha que sabe o que é humanidade, mas não sabemos. Humanidade, em um grau que eu só vi no terreno, e quanto pior a situação de risco e de necessidade, maior a humanidade.
Outra coisa, o poder da comunidade unida. Quando existe essa união em prol um mesmo objetivo. Eu vi muito presente nas mulheres da Colômbia, afro-colombianas, indígenas, que estão na linha de frente do conflito armado. São sobreviventes, são mães, são irmãs. E se unem em prol de um mesmo e único objetivo que é a paz.
BdF RS – E o que as diferencia
Fernanda – Não dá para dizer que a Maryam, do Afeganistão, pela questão tribal, cultural, que a força de comunicação dela é a mesma de outras mulheres em outros continentes. Tive que ter muito mais tempo com a Maryam. E o quanto que ela teve que fazer força para sair do fundo da sala e de baixo da sua burca para chegar até o microfone e dizer, ‘Eu tenho algo para falar’.
As colombianas me ensinaram muito. Se a gente olhar na América Latina, o conflito da Colômbia é o maior em termos de tempo. Essas mulheres lutam pela paz há décadas, apesar de todas as dores. Juana Francisca e sua filha foram violentadas. Então, essa força não dá para comparar, culturalmente falando, com a de uma Maryan no Afeganistão. Mas todas, independentemente da dificuldade cultural ou da opressão, precisam de tempo e de apoio para chegarem até o microfone e organizar a sua fala.
Não existiu nenhuma escuta aqui a não ser sobre as histórias de sofrimento
BdF RS – Como você analisa o que nós vivemos aqui?
Fernanda – Não posso fazer uma análise completa da situação. O que posso falar é o que vi e ouvi em um dos maiores abrigos de Porto Alegre onde vim voluntariar. Conversei com algumas famílias para entender a situação. Queria entender se estavam sendo ouvidas e se existia algum tipo de associação reunindo essas vozes de forma uníssona. Para que pudessem colocar nas diferentes mesas de decisão que estavam acontecendo em paralelo ao desastre humanitário.
Não existia nenhuma organização de uma voz única. Estou falando de uma voz única apartidária. Estou falando da gente fazer uma consulta cidadã em todos os abrigos, como no Peru, por exemplo. O governo do Peru fez isso na época da inundação, em 2017. Participei disso, da Consulta Ciudadana para a priorização da reconstrução. Tem rodas de diálogo e inúmeras metodologias participativas. Não existiu nenhuma escuta aqui a não ser sobre as histórias de sofrimento e aquilo, como jornalista também, me faz perguntar: onde estão os jornalistas humanitários? Onde estão as perguntas abertas?
Na minha ideia de comunicadora humanitária, as perguntas devem também incluir: ´O que você precisa, nesse momento? Qual é a sua sugestão? Qual é a sua prioridade? O que tu ouves mais o pessoal falar no abrigo? Qual a informação que falta Quais são as pontas desconectadas?
Senti uma grande disputa de vozes, que existe ainda, com megafones, e cada vez mais essas vozes das comunidades afetadas que são as mais importantes, quando se fala em crise humanitária. Elas perderam tudo e, a meu ver, não receberam uma oportunidade de escuta ativa, propositiva, relevante.
Vi olhos de crianças chegando no terceiro abrigo com medo
Estou falando com uma lente humanitária, de resposta à emergência. Conheci famílias que mudaram de abrigo três vezes. Vi olhos de crianças chegando no terceiro abrigo com medo. Por que? Porque, de novo, já haviam perdido as suas casas, não sabiam quando iriam voltar, não sabiam qual seria a solução, e estavam no terceiro abrigo em 35 dias! Havia crianças muito assustadas. Diziam ´Não, profe, não, tia, tenho medo de sair daqui do meu cantinho para ir brincar`. Foi de cortar o coração. Fiquei tão mais triste aqui do que nos piores países do mundo.
BdFRS – Nesse sentido do medo que essa situação gera e os reflexos na saúde mental …
Fernanda – Estive em campos de refugiados, com crianças, como, por exemplo no Equador, que é um país relativamente seguro. Em 2016, quando estava lá, um terremoto de 7.9 (na escala Richter), destruiu a costa do país. Essas famílias com crianças perderam suas casas e familiares soterrados. Quando estive lá eram 26 campos. Abrigavam o que a gente chama de deslocados internos (IDPs). Não são exatamente refugiados já que estão no mesmo país. Havia 28 mil pessoas vivendo nesses campos.
É um problema de saúde mental também. Porque os tremores não param. Continuam assim como a chuva. No caso da chuva, ainda há, minimamente, um alerta meteorológico. No terremoto não tem aviso nenhum. Começa tudo a tremer, as crianças se jogam no chão. Aquele pânico é um estado de alerta constante. Mas lá, nos olhos daquelas crianças – é nos olhos que tu vês – não vi neles o que vi aqui. É algo difícil de descrever.
É uma insegurança profunda que não vi nas crianças do Equador
BdF RS – Por que que esse olhar daqui foi tão impactante?
Fernanda – Não tenho essa resposta. Estou observando como comunicadora e como humanitária, pela minha experiência, mas não pelo viés da psicologia e do trauma. Mas existe uma pesquisa da UFRGS sobre o alto percentual de ansiedade presente no estado.
A ansiedade já está muito alta, mas certamente existe também muito trauma. Acho que a sensação de insegurança que gera essa tristeza, essa paralisia. É uma insegurança profunda que não vi nas crianças do Equador. Outra coisa importante e positiva é que, no abrigo em que estive, tinha comida e água. Não tinha bomba caindo próximo como em outros campos que fui onde havia uma guerra do outro lado.
Por exemplo, no campo do Sudão do Sul, a comida era escassa e as torneiras só eram abertas duas vezes por dia. Mas as crianças pareciam bem mais felizes do que as que vi aqui. Então, a gente pode sim entrar numa análise de resiliência. As crianças que vi lá, muitas, há cinco anos vivendo no mesmo lugar, estavam adaptadas.
Mas o meu ponto é que vou embora do Rio Grande do Sul com essa sensação de angústia. Quero ver se organizo as minhas ideias para escrever inclusive sobre os motivos de tanto sofrimento.