‘Não regulamentação da mídia beneficia desinformação como negócio político’, diz pró-reitora da UFRJ
Brasil de Fato
Com a proximidade das eleições municipais no Brasil, a desinformação volta ao centro do debate público. Os pleitos eleitorais de 2018 e 2022 foram fortemente marcados pelo uso estratégico de notícias falsas para influenciar as escolhas políticas dos eleitores. O que o país aprendeu com essas experiências? O Brasil está mais preparado para lidar com fake news?
O Brasil de Fato DF conversou sobre o tema com Ivana Bentes, pesquisadora da Comunicação e pró-reitora de Extensão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Fake news se tornaram um tema popular, mas ao mesmo tempo os dados em torno do consumo e disseminação das fake news continuam alarmantes e as ações de combate à desinformação não ganharam escala massiva”, avalia.
A educação midiática assume um papel de destaque nesse cenário. É com esse objetivo que surge o projeto “Redes de Formação em Cultura Digital – Labic”, uma iniciativa da UFRJ com o Ministério da Cultura (MinC). O programa foi lançado na Universidade de Brasília (UnB), no dia 1º de agosto. O Distrito Federal foi o primeiro lugar do Brasil a receber o projeto, que também percorrerá outras cidades e regiões do país.
“A educação midiática é decisiva num cenário em que a cultura digital se tornou massiva e impacta em todas as esferas da nossa vida”, destaca a pró-reitora da UFRJ. “O letramento digital contribui para que qualquer pessoa possa identificar e combater conteúdos desinformativos, aprender a sair da sua ‘bolha’ e buscar informações diversas e críticas”, explica.
O programa selecionou 30 projetos sediados no DF para participar de mentorias sobre inteligência artificial, segurança digital, criação de conteúdo, gerenciamento de redes e midiativismo. Os encontros aconteceram entre os dias 1º e 4 de agosto.
O avanço da desinformação chama atenção para outro tema urgente: a regulamentação das mídias e das plataformas digitais. O tema está em discussão no Congresso Nacional. No debate público, o desafio é fugir da falsa dicotomia entre regulamentação e liberdade de expressão.
“É preciso ficar claro que a regulamentação das mídias e redes não se opõe à ‘liberdade de expressão’ e que a liberdade de expressão não pode ser utilizada para fazer circular discursos de ódio, fake news, ou seja, seria a ‘liberdade’ para cometer crimes tipificados por lei. A internet e as redes sociais não são outro ‘planeta’ ou ‘nação’, não existe uma ‘justiça digital’, existe o ordenamento jurídico do Brasil a que redes e plataformas têm que se submeter”, defende Ivana Bentes.
Confira, abaixo, a entrevista completa de Ivana Bentes ao Brasil de Fato DF:
Brasil de Fato DF – Os últimos pleitos eleitorais, principalmente a partir de 2018, foram muito marcados pela desinformação e pelo uso estratégico de fake news para influenciar as escolhas dos eleitores. Na eleição de 2022, houve uma atuação mais firme do Judiciário para tentar coibir ou pelo menos minimizar o impacto da desinformação. Recentemente, o TSE estabeleceu regras para o uso de IA e deep fake no pleito deste ano. Como você avalia o cenário das eleições municipais em termos de desinformação? Estamos mais preparados para lidar com a influência política das fake news?
Ivana Bentes – Sim e não. Por um lado, a sociedade de forma geral acendeu um alerta e criou anticorpos e uma percepção massiva sobre a epidemia de desinformação que incide principalmente e de forma mais preocupante em momentos como o das eleições. Fake news se tornaram um tema popular, mas ao mesmo tempo os dados em torno do consumo e disseminação continuam alarmantes e as ações de combate à desinformação não ganharam escala massiva.
Por exemplo, é informação que 67% dos estudantes de 15 anos do Brasil não sabem diferenciar fatos de opiniões, segundo o relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O que indica que o letramento contra a desinformação é falho e não chegou nas escolas. Os estudantes e adultos também teriam que aprender na escola como detectar se as informações são subjetivas ou tendenciosas, se são fatos ou opiniões, desenvolver a capacidade analítica e crítica. E também é necessário formar os professores para lidar com fake news, memes, conteúdo audiovisual, ou seja, dominarem as linguagens digitais.
Outro dado preocupante: quem consome e dissemina fake news ou viu uma notícia falsa, não tem o hábito de buscar as agências de checagem de fatos ou pesquisar a notícia ou dado. De novo, a checagem está a um clique, mas o imediatismo, o desejo de passar adiante e o “viés de confirmação” das suas próprias crenças, contribuem para que mesmo sabendo que são falsas, essas informações sejam disseminadas.
Além disso, o negócio das fake news faz com que sites pseudo-jornalísticos produzam essas informações fakes de forma industrial para alimentar e lucrar com a polarização política. Estamos mais informados e conscientes de como se produz e dissemina fake news, mas existe ainda um trabalho gigantesco de formação em cultura digital e educação midiática a ser feito, pois a mudança não é apenas racional, mas comportamental e emocional.
Um dos eixos do projeto “Redes de Formação em Cultura Digital” é a educação midiática. O que é a educação midiática e qual sua importância para a democracia
Educação midiática é um conjunto de práticas utilizadas para melhorar a relação das pessoas com as mídias que consomem, a partir do desenvolvimento de uma leitura crítica dos conteúdos, principalmente no campo digital.
O letramento digital contribui para que qualquer pessoa possa identificar e combater conteúdos desinformativos, como as fake news, por exemplo, entender porque aparecem algumas notícias e posts e não outros no seu feed do facebook ou instagram, por recomendação de um algoritmo, aprender a sair da sua “bolha” e buscar informações diversas e críticas; aprender como funciona a Inteligência Artificial para uso no cotidiano e quais os riscos de uso dessas ferramentas de forma acrítica. E tem ainda a questão dos danos mentais mesmo: dependência tecnológica e distúrbios cognitivos.
Essas habilidades são fundamentais para o fortalecimento da democracia, em especial em ano eleitoral, quando sabemos que as fake news se tornam ainda mais frequentes durante as campanhas, produzindo vídeos e áudios manipulados e altamente convincentes. A educação midiática é decisiva num cenário em que a cultura digital impacta em todas as esferas da nossa vida.
De que forma o projeto “Redes de Formação em Cultura Digital” pode contribuir para o combate à desinformação?
Pode contribuir principalmente por meio da educação midiática. Essa ferramenta ajuda cada um dos projetos a lidarem com suas ações, sempre atentos a uma leitura crítica das mídias.
Além do próprio letramento digital, o projeto oferece mentorias com profissionais de diferentes campos, como inteligência artificial, segurança digital, criação de conteúdo, gerenciamento de redes e midiativismo, formas dos mais diversos grupos se apropriarem das tecnologias de modo crítico, etc. Entendemos que esse conjunto de saberes e ferramentas, quando colocados em diálogo num mesmo espaço, como o do Labic, contribui para fortalecer politicamente o cenário da comunicação e o impacto desses projetos nas comunidades e territórios onde atuam.
O avanço das fake news, o aumento dos crimes cibernéticos e o recrudescimento da violência nas escolas, que muitas vezes é gestada e incentivada no ambiente virtual, impulsionam o debate sobre a regulamentação da mídia e das plataformas digitais, inclusive no Congresso. Você defende algum modelo de regulamentação das mídias? Como falar sobre o tema com o público em geral, sem cair na dicotomia regulamentação versus liberdade de expressão?
O Brasil tem todas as credenciais para debater e propor formas de regulamentar as mídias, plataformas e redes sociais, mas a primeira coisa que tem que ficar claro é que a produção de conteúdos, seja para rádio e TV, seja para redes sociais, plataformas, é um negócio, uma atividade econômica que impacta e modula comportamentos e que precisa ter regras como tudo que impacta nossa vida social.
O Brasil foi pioneiro no mundo na regulamentação da internet com o Marco Civil, em 2014, um processo exitoso que estabeleceu direitos, deveres e garantias no meio digital. Ali ficava claro que que os provedores, por exemplo, tinham deveres e responsabilidade e que era necessário estender os direitos já protegidos juridicamente também na internet: políticas de proteção da privacidade, do uso de dados, a liberdade de expressão desde que não incorra em abuso e excesso, com a intenção de injuriar, caluniar ou difamar, enganar, etc.
Também aprovamos a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em 2018, que orienta sobre o uso de dados pessoais, coleta legal e ilegal de dados, a forma legal de armazenamento e compartilhamento de informações dos usuários, uma lei excelente e pedagógica.
Ou seja, qualquer processo regulatório é para afirmar o óbvio: as mídias, redes e plataformas não estão acima das leis. Ao mesmo tempo, o Brasil deixou de fazer a regulação da radiodifusão que já existe no mundo todo: na França, Portugal, Inglaterra, a Lei de Meios na Argentina, que sofreu um desmonte autoritário no governo Macri, etc.
Os regimes autoritários e extremistas têm um discurso de desregulamentação das mídias, por um lado, e, por outro, de intervenção brutal, como no regime militar no Brasil, ou agora com o governo de Milei na Argentina, que impôs por um decreto a intervenção nas empresas estatais de comunicação.
É preciso ficar claro que a regulamentação das mídias e redes não se opõe à “liberdade de expressão” e que a liberdade de expressão não pode ser utilizada para fazer circular discursos de ódio, fake news, ou seja, seria a “liberdade” para cometer crimes tipificados por lei. A internet e as redes sociais não são outro “planeta” ou “nação” , não existe uma “justiça digital”, existe o ordenamento jurídico do Brasil a que redes e plataformas têm que se submeter.
Não é difícil distinguir o que é uma opinião do que é uma ameaça, um crime, uma informação que produz dolo ou morte. Então, por que não regular? A não regulamentação só beneficia os grupos que apostam no caos e na desinformação como negócio político. Sou a favor de regular. É decisivo que os Estados estabeleçam limites para evitar os monopólios, busquem regras para garantia da pluralidade e diversidade desses meios, etc.
Hoje os “direitos digitais” são um campo importantíssimo, a regulação das plataformas é decisiva para se conter o modelo de negócios baseado na polarização, nas fake news e discursos de ódio, que engajam e movimentam as redes. Hoje não sabemos como funcionam os algoritmos de recomendação das plataformas que nos empurram não apenas produtos, mas opiniões e posicionamentos políticos extremados, etc.
É preciso chegar a um consenso sobre essas regras para combater a desinformação, responsabilizar as plataformas digitais ou veículos e garantir fiscalização e aplicação de sanções quando as regras são quebradas, como em qualquer outro negócio.