Homem cis não entra: produtora da festa Mujer, no RS, relembra desafios na criação de espaço seguro e acolhedor para mulheres
Brasil de Fato
Durante o Mês da Visibilidade Lésbica, apresentamos o especial “Mulheres lésbicas da cultura de Porto Alegre que você precisa conhecer“. Nossa quarta entrevista é com Carolina Nunes Esteves, natural de Gravataí, com 26 anos e há 12 deles se entende como sapatão. Produtora da “Mujer” – uma festa que se propõe a ser um espaço seguro, acolhedor e de pertencimento para mulheres e pessoas dissidentes de gênero.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato RS – Como, quando e porque você começou a trabalhar com produção?
Carolina Nunes Esteves – Começar a trabalhar com produção de eventos rolou de forma bastante natural. Sempre fui uma pessoa desenrolada, responsável e com uma dose de cara de pau, qualidades que considero fundamentais para esse tipo de trabalho. Tudo começou com freelas em festas, onde rapidamente aprendi a mexer na CDJ e comecei a tocar em alguns espaços. Foi assim que conheci casas de festas em Gravataí, de onde venho e onde nasceu a “Mujer”. A criação da festa veio como uma resposta a duas necessidades importantes: a falta de espaços de acolhimento e respeito para mulheres e pessoas dissidentes de gênero, e a necessidade financeira de ter um projeto que me desse o básico.
Como é o ambiente cultural no qual você trabalha Como é ser uma lésbica na cena porto-alegrense?
O ambiente cultural de Porto Alegre é rico e diverso, especialmente dentro da comunidade LGBTQIAPN+, onde há muitas propostas incríveis. Tenho me dedicado a conhecer e apoiar esses eventos, pois acredito na importância de fortalecer esses espaços. No entanto, ser lésbica na cena porto-alegrense é, muitas vezes, um ato de resistência, onde precisamos tirar forças de onde nem sempre as temos.
Quando comecei a criar a “Mujer”, enfrentei vários desafios. No início, alguns espaços não aceitavam que o evento acontecesse, pois o fato de não permitir a entrada de homens cis deixava os donos dos bares com receio de que não venderiam tanto, já que, segundo eles, “mulher não bebe tanto”. Esse tipo de resistência é comum, mas foi exatamente essa realidade que me motivou a continuar lutando para que espaços como a “Mujer” existam e floresçam. Ser lésbica aqui é sobre se reinventar, apoiar a comunidade e continuar lutando para que esses espaços possam existir, crescer e se tornar cada vez mais inclusivos.
Tem alguma história curiosa, emocionante ou marcante nesses anos de carreira para dividir conosco?
Ao longo dos anos produzindo a “Mujer”, acumulei tantas histórias, tanto boas quanto desafiadoras. Desde momentos emocionantes como pedidos de casamento que perduram até hoje, até situações absurdas, como quando homens que bebiam em frente à casa de festas pagaram um homem em situação de rua para invadir o evento.
A visibilidade lésbica dentro desses espaços culturais não é apenas uma questão de representatividade; é uma questão de pertencimento e sobrevivência
Mas a história que mais me marca é justamente uma que deu muito errado: não lembro exatamente o motivo, se foi a data, o clima ou o tempo, mas a festa acabou sendo um completo flop. Para pagar a casa, precisei arregaçar as mangas e trabalhar no bar, no caixa e em várias outras funções. Foi um momento difícil, mas também foi assim que criei muitas conexões e vínculos com pessoas que, mais tarde, me ajudariam a manter a “Mujer” firme e forte. Esse episódio me ensinou muito sobre resiliência e sobre a força da comunidade. Mesmo nos piores momentos, é possível encontrar apoio e continuar seguindo em frente.
Qual a importância da visibilidade lésbica dentro do espaço de cultura no qual você atua
Para mim, a visibilidade lésbica é fundamental, especialmente em um lugar como Porto Alegre, onde a cultura LGBTQIAPN+ é viva e pulsante, mas a cena sapatão ainda carece de espaços próprios. Apesar de haver uma grande comunidade de sapatonas na cidade, sinto que estamos dispersas, muitas vezes acompanhando nossos amigos em seus espaços, mas raramente sendo protagonistas ou tendo eventos que realmente nos representem.
Os poucos bares e eventos voltados especificamente para o público lésbico ainda são escassos. É por isso que considero tão importante criar e manter espaços como a “Mujer”, que não apenas celebra, mas também centraliza e amplifica as vozes e as experiências de mulheres lésbicas. Precisamos de mais lugares onde possamos nos sentir seguras, acolhidas e visíveis, e onde possamos nos conectar umas com as outras sem a sensação de estarmos à margem.
A visibilidade lésbica dentro desses espaços culturais não é apenas uma questão de representatividade; é uma questão de pertencimento e sobrevivência. É sobre garantir que nossas histórias, nossas lutas e nossas alegrias sejam vistas, ouvidas e valorizadas.
Como você se vê nessa cena
Para mim, é importante servir de ponte. Em muitos momentos da minha vida, não tive acesso ao básico, seja em lazer, trabalho ou outros espaços. Por isso, em tudo que faço, inclusive na produção da “Mujer”, luto para que os privilégios que conquistei sejam compartilhados. Não vejo sentido em ocupar esses espaços sozinha. Sempre busco estender a mão e trazer comigo as pessoas da minha comunidade, para que possamos crescer e ocupar esses espaços juntas.
Acredito que a verdadeira força está na coletividade, na união de esforços e na criação de oportunidades para todas nós. Meu objetivo é que, a cada passo que dou, eu consiga levar mais pessoas comigo, para que todas tenham a chance de ocupar espaços de visibilidade, segurança e acolhimento. É assim que vejo o futuro: construindo pontes, derrubando barreiras e garantindo que ninguém fique para trás.