Governo tenta diversificar perfil do 7 de Setembro diante de trauma na relação com militares
Brasil de Fato
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viverá, neste sábado (7), mais uma edição do desfile de 7 de Setembro em meio a um conjunto de elementos que, somados, colocam a gestão em um cenário de delicadezas políticas. O caldeirão envolve a sombra da difícil relação com os militares após os anos de ascensão da extrema direita na administração de Jair Bolsonaro (PL), a movimentação do ex-presidente e seus apoiadores para tentarem competir com a gestão atual produzindo um evento próprio durante a data e gerando impacto político no contexto das eleições municipais. Mais recentemente, se somam a esse cenário as complicações geradas ao governo em função das denúncias de assédio contra o ministro Sílvio Almeida, episódio que tem ajudado a inflamar as redes bolsonaristas e seus ataques à gestão do PT.
“Não dá para descartar que 7 de Setembro tem algum grau de tensão. Não que nós estejamos correndo risco como no governo Bolsonaro, mas, de qualquer maneira, sempre o 7 de Setembro não é, de fato, uma data nacional. É uma data do poder militar no Brasil. Eles se utilizam dessas comemorações, manifestações, sempre com uma forma de se impor e levar à memória do Brasil qual é a importância das Forças Armadas, em especial do Exército”, analisa o cientista político Rudá Ricci, presidente do Instituto Cultiva.
Para ele, a relação entre a gestão do PT e os militares segue caminhando sobre ovos. “O governo Lula está fazendo uma aproximação que é sempre muito difícil, assim como foi a aproximação do governo Fernando Henrique Cardoso com os militares, mas é sempre bom lembrar que eles continuam se encontrando cada vez que eles consideram que eles têm que se manifestar como garantidores do que eles acham que são a democracia e a ordem no Brasil.” Na visão de Ricci, as feridas abertas na gestão Bolsonaro ainda carecem de tempo para serem superadas nos níveis institucional, político e ideológico. Ele frisa que não identifica “relação fraternal” entre civis e militares.
“Não conseguimos ainda cicatrizar todas as feridas. Foram muitos militares assumindo postos de comando [na gestão], inclusive [cargos] que historicamente eram dados a civis. Eles receberam um poder completamente desproporcional, e isso foi há apenas três anos. Estamos ainda num processo de superação e houve, inclusive, discussões muito recentes sobre, por exemplo, manifestações de retomada de projetos civis e culturais em locais onde, no passado, prédios acabaram acolhendo ações da ditadura militar. Não acho que em um ano, um ano e meio de governo, a coisa tenha mudado tanto assim. Mudou, mas não mudou tanto.”
Ruídos
Para Ricci, os ruídos promovidos por Bolsonaro e aliados no evento que o grupo irá realizar na Avenida Paulista neste sábado não tendem a gerar grande dor de cabeça política para Lula. “Claro que vai ter bolsonarista tentando aparecer ao estilo Pablo Marçal, mas vejo isso mais como uma espécie de venda de imagem para a bolha deles do que algo com potencial para impactar efetivamente a política nacional. O governo federal hoje está todo estabelecido e o Judiciário brasileiro também. Há hoje informações estratégicas muito importantes que chegam na mesa do presidente do STF [Supremo Tribunal Federal], do presidente da República, e eu acho o que vier a ocorrer no ato será facilmente contornável”, avalia.
Contexto
O evento deste sábado ocorre em meio ao trauma gerado pelas disputas ideológicas que opuseram, de um lado, a ala bolsonarista e militares a ela aliados e, de outro, segmentos políticos e populares críticos ao modus operandi da extrema direita e que fizeram forte oposição ao envolvimento de membros das Forças Armadas com a gestão do ex-capitão. O problema foi temperado ainda pelo 8 de janeiro do ano passado, quando milhares de apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos três Poderes, em Brasília (DF), depredaram os prédios e tentaram desestabilizar o governo Lula por não aceitarem o resultado da eleição presidencial de 2022.
As invasões colocaram no banco dos réus não apenas os vândalos envolvidos no ato, mas também policiais militares que se omitiram diante do caos gerado pelas depredações. Em outra via, deram maior realce ao grau de responsabilidade de militares das Forças Armadas que igualmente se omitiram diante do acampamento montado por bolsonaristas em frente ao Quartel-General (QG) do Exército na capital federal. O local foi ponto de concentração de militantes pró-golpe durante meses e permaneceu imune a uma ação mais incisiva do Estado até um dia após o 8 de janeiro, quando o ministro Alexandre de Moraes, do STF, determinou que o acampamento fosse desfeito.
Apesar do cenário de desconfiança política entre extrema direita e governistas, dos rastros deixados por esse amálgama de conflitos e também da associação entre as Forças Armadas e o golpe de 1964, a professora Mayra Goulart, do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não vê nesta véspera do 7 de Setembro um contexto de confronto entre governo Lula e militares.
“O que a gente observa é um esforço do governo em contemporizar, em não romper e nem causar desentendimentos com os militares. Isso não significa que não haja demarcações de diferenciação em relação ao governo do presidente Jair Bolsonaro. E isso, marcadamente no que diz respeito a uma relação com a memória da ditadura militar, que era vista de maneira idílica como um momento ao qual se desejaria retornar a uma ordem social, no caso do governo Bolsonaro, e, no caso do governo Lula, não é visto dessa forma, porque a ideia de democracia é um dos marcos da coalizão e da frente ampla que permitiu a vitória do presidente Lula em 2022.”
Slogan
O governo prepara para este sábado um desfile com abordagem dividida em diferentes eixos temáticos. A ideia é fazer alusão a símbolos que vão além do que costuma ser tradicionalmente associado ao desfile do 7 de Setembro. Sob o lema “Democracia e Independência – É o Brasil no rumo certo”, o evento será marcado pela referência à atuação do Brasil no G20, cuja reunião deve ser realizada em novembro, no Rio de janeiro (RJ); pela alusão à reconstrução do Rio Grande do Sul (RS) depois da tragédia climática que impactou o estado; e pela tentativa do governo de ampliar os serviços de saúde e massificar a imunização da população, contando, mais uma vez, com a participação do mascote Zé Gotinha na avenida. Tais homenagens dividirão lugar com o rito protocolar do desfile, que engloba a marcha de grupos e colégios militares e a tradicional apresentação da Esquadrilha da Fumaça.
“É uma mensagem interessante porque, primeiro, demarca a ruptura com o governo anterior, o que implicaria uma correção de rumos por parte da gestão atual. Essa correção de rumos tem a ver com a ideia de democracia, mas também com uma posição de independência. O que seria essa independência Tem um fator que me parece central, que é a dimensão internacional, que é o fortalecimento do papel do Brasil nas instituições multilaterais, numa postura de relativa independência em relação às grandes potências, uma postura altiva e própria de colocar o Brasil como um líder regional e mesmo global”, interpreta Goulart.