Com quanta misoginia se faz uma tradição?
Brasil de Fato
Nos meses de agosto e setembro, o Rio Grande do Sul se mobiliza fortemente em torno da cultura nativista e rural. A começar pela Expointer e culminando no 20 de setembro, data da polêmica “revolução”, a produção cultural explora as raízes das tradições gaúchas.
Nesse contexto, um vídeo publicado nas redes sociais tem causado discussões pertinentes. As artistas Clarissa Ferreira e Ana Matielo compartilharam um vídeo de uma paródia de um clássico nativista e causaram furor.
Entenda o caso:
Clarissa Ferreira é violinista, etnomusicóloga, pesquisadora e compositora do Rio Grande do Sul. Bacharela em violino (UFPel), mestra (UFRGS) e doutora (Unirio) em etnomusicologia, pós-graduanda em arteterapia e estudante de licenciatura em história. Está lançando seu primeiro álbum autoral, que se chama LaVaca. Publicou, em 2022, seu primeiro livro, Gauchismo Líquido: reflexões contemporâneas sobre a cultura do Rio Grande do Sul, pela Editora Coragem, que foi obra vencedora do Prêmio Reflexo Literário 2022 como Melhor Livro de Crônicas. Professora da graduação em música popular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Alia seu trabalho musical autoral com pesquisa abordando questões que repensam o regionalismo gaúcho nos espaços sociais e na geografia local. Ao longo de sua carreira, Clarissa dividiu o palco com renomados artistas brasileiros, incluindo Lia de Itamaracá e Danilo Caymmi. Seus trabalhos foram apresentados em festivais como o La Serena Festival de la Canción, no Uruguai (2020/2024), Festival Pira Rural (2023) e Festival Acid Rock (2024).
Ana Matielo é cantora, violonista e etnomusicóloga de Porto Alegre. É graduada em Música Popular na UFRGS e atualmente está finalizando seu mestrado em Etnomusicologia, pesquisando a articulação política de grupos de mulheres musicistas no Rio Grande do Sul.
O projeto Ana Clara e Clarissa surgiu da união dos trabalhos autorais das duas, encontrando consonâncias entre arranjos camerísticos de violão e violino a duas vozes, no estilo caipira das duplas vocais brasileiras. As artistas fazem vídeos autorais com paródias na internet abordando atualidades políticas, e estão fazendo um financiamento coletivo para o lançamento do seu EP como dupla, intitulado “Amiga”.
Conversei com as artistas sobre a repercussão após o compartilhamento do vídeo.
Brasil de Fato RS – Sobre o caso: o que aconteceu?
Clarissa Ferreira – Criamos uma paródia com uma música considerada clássico do cancioneiro gaúcho e postamos em nossas redes sociais. Nossa versão trazia uma abordagem crítica e a motivação se deu após acompanhar o contato de uma cantora de visibilidade nacional em uma feira do agronegócio que aconteceu recentemente. Esse contato desvelou uma contradição que é o mercado da música gaúcha, que tem raízes machistas e conservadoras, mas que em virtude da possibilidade de projeção de mercado faz essas parcerias.
Não foi nosso intuito criticar o trabalho da artista, que inclusive reconhecemos e admiramos, mas sim desvelar a incoerência de entendimento sobre essas esferas culturais dentro dessa complexa teia da indústria cultural.
Como o trabalho dessa artista tem um viés bastante libertário, abordado a liberdade sexual feminina. Como já havíamos observado os comentários de julgamento sobre ela ao cantar em outro evento, no RS, outra música gaúcha com suas vestes de performance, e ser duramente criticada por comentários moralistas, criamos essa paródia usando a linguagem do funk, na música pop. A partir de um eu lírico feminino empoderado, como se fosse a versão dessa cantora, e fazendo o uso do deboche também como forma de desestabilizar esses pensamentos rígidos sobre a tradição.
Em menos de uma hora o vídeo teve mais de 400 compartilhamentos. Foi retirado das nossas redes e começou a ser compartilhado em grupos do Whats, motivados pelo discurso de ódio acionado contra nós em postagens das redes sociais criadas com o print no nosso vídeo por um “jornalista” local.
BdF RS – O que motivou a produção do vídeo?
Clarissa – Conversarmos bastante sobre o papel do agronegócio na destruição do meio ambiente e também do ecossistema do mercado musical. Também sobre a apropriação que agentes de grande poder econômico fazem com discursos em prol da diversidade social e inclusão, até mesmo da recuperação do RS, enquanto esvaziam seus significados ao utilizá-los para lucro próprio, fazendo a manutenção do seu próprio poder.
Passa a ser um escracho e um deboche a seriedade de um discurso deslocado para manutenção dos símbolos reificados, como já foi demonstrado com a aprovação do PL 106/2021, que torna a Cultura Regional Gaúcha Patrimônio Imaterial do Estado, apesar das indicações contrárias do antropólogo analista do PL. Enfim, surge como uma brincadeira, mas também uma forma de trazer essas reflexões complexas com leveza para o nosso cotidiano.
BdF RS – Qual o impacto ele teve e o que vocês acreditam que levou a essa repercussão?
Ana Matielo – O primeiro impacto foi positivo, no sentido de que as mensagens eram de divertimento, dizendo que éramos “im-po-sí-veis!” (risos). Depois começaram os comentários odiosos, e depois, a publicação de um print do vídeo com uma carta de repúdio no perfil de um jornalista ligado ao meio tradicionalista, já famoso por seu conservadorismo e por incitar ódio. A Clarissa já havia passado pelo mesmo tipo de tentativa de controle em 2017 quando escreveu sobre o machismo nas letras das músicas gaúchas em seu blog Gauchismo Líquido que deu origem ao livro.
Clarissa – Talvez o mais impactante foi o quanto foi entendido como desrespeitoso fazermos uma letra sobre liberdade sexual em uma música que se tornou um símbolo do estado. E isso é um debate que seguimos abordando, de outras formas, nas redes sociais.
Interessante que o vídeo surge em um momento de debate sobre o papel de dominação do mercado (agentes com grande poder econômico) sobre as decisões artísticas vinculadas ao RS, sendo que ao recebermos um repúdio em larga escala dos integrantes dessa grande feira de agronegócio, chegamos a perder alguns trabalhos. Ao final, a repercussão do vídeo sinalizou uma rede de apoio fortíssima de amizades, fãs, e artistas de múltiplas áreas do RS que demonstram vontade em experimentar formas de identificação cultural local, e combater ideais opressores.
Apesar de todas as críticas, elas afirmam que vão seguir produzindo esse tipo de conteúdo e fazendo músicas abordando o que aconteceu. Nas redes sociais de ambas (@clarissaferreiraaaa @anamatielo @anaclaraclarissa) as paródias continuam a todo vapor.
Segundo elas a arte, com humor e música, é uma grande forma de fazer política. E as redes sociais acabam sendo o meio dessa produção e linguagem, gerando alcance por serem vídeos dinâmicos, divertidos e abordarem tópicos atuais.
Elas também vão começar as divulgações do seu primeiro EP como dupla, de canções autorais, com mais conteúdos voltados para esse lançamento e para o financiamento coletivo para essa realização.
* ana c, de carolina, é comunicadora por vocação, produtora cultural por capricho e multiartista por essência. mulher lésbica, feminista e latinoamericana, escreve para dar sentido ao que sente.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.