Quais são as possibilidades e desafios para a desdolarização das economias do Sul Global?

Brasil de Fato

Uma moeda comum do Brics ainda é vista como possibilidade distante por especialistas que participaram de debate recente organizado pelo Clube de Pequim para o Diálogo Internacional, Beijing Club. A entidade é uma think tank (laboratório de pensamento) chinêsa fundado em 2023. 

Mas há consenso no grupo para avançar com o processo de desdolarização. A próxima Cúpula do Brics, que acontecerá na cidade russa Kazan em fins de outubro, pode anunciar alguns novos instrumentos “para criar um sistema financeiro internacional inclusivo”, segundo disse à agência Tass, Andrey Mikhailishin, chefe do grupo de trabalho de Serviços Financeiros do Conselho Empresarial do Brics.

Em junho, em uma das reuniões preparatórias da próxima cúpula, os ministros de Relações Exteriores dos países do Brics reafirmaram a importância de aprimorar o uso de moedas locais em transações comerciais e financeiras entre os países do bloco.

A China é o país que mais tem avançado no uso de sua moeda para o comércio internacional. A participação do yuan nos pagamentos internacionais atingiu um recorde em julho deste ano. A moeda chinesa se tornou a quinta maior moeda do mundo para reservas, pagamentos e negociações, e a terceira maior moeda para financiamento comercial. Na América Latina, a Bolívia é um dos casos mais recentes de adoção do yuan para acordos comerciais. 

No ano passado, o período de abril a junho foi o primeiro trimestre na história em que o uso da moeda chinesa superou a utilização do dólar no comércio bilateral do país. As sanções contra a Rússia explicam, em parte, o acontecimento.   

No Brasil, o dólar tem predominância. No ano passado, a moeda dos EUA respondeu por 95,84% do total das exportações no nosso país e 80% das importações. 

Alternativas ao sistema de pagamentos e às reservas internacionais

Além de utilizar mais moedas nacionais no comércio intra-Brics, a conselheira sênior em Cooperação Sul-Sul e Financiamento do Desenvolvimento do South Centre, Li Yuefen, disse em entrevista ao Brasil de Fato que outra das medidas que os países – não apenas do Brics, mas de todo o Sul Global – devem começar a tomar de forma gradual é a redução da dependência do sistema Swift. 

O sistema é utilizado por mais de 11 mil bancos e instituições financeiras de mais de 200 países para troca de informações sobre transações financeiras. Em 2015, a China criou o Sistema de Pagamentos Interbancários Transfronteiriços (conhecido pela sigla em inglês de CIPS), que trabalha com o yuan. O Swift funciona com as maiores moedas, mas o uso do dólar se mantém em cerca de 47% nos últimos meses, com o euro como segunda moeda, bem atrás – em março teve participação global de 22%, por exemplo. Em 2022, sete bancos russos foram banidos do sistema Swift, como parte das sanções pela crise na Ucrânia. 

Um sistema de pagamento e liquidação alternativo ao Swift não está ligado à formulação ou ao surgimento de uma moeda comum, mas é forma de explorar o que fazer no curto prazo para reduzir a dependência excessiva do dólar, argumenta a economista Li Yuefen. 

Para ela, se a dependência do sistema Swift continuar, “o uso do dólar como arma certamente continuará”. Ela afirma que essa tendência teve uma escalada: “Não são apenas sanções comerciais, sanções financeiras, já está chegando à fase de confiscar os ativos dos países que estão sendo sancionados”.

Recentemente, a porta-voz da chancelaria russa, Maria Zakharova, afirmou que a desdolarização não é um objetivo de organizações e de algumas nações, mas sim uma realidade, “porque o dólar se tornou uma moeda problemática”. 

Por causa do grande predomínio que a moeda estadunidense ainda possui, mudanças devem acontecer de forma incremental, defende Li Yuefen. 

Ela acredita que o Brics pode desenvolver uma opção para reduzir a superdependência do sistema Swift, por exemplo. “Os países do Brics podem desenvolver um tipo de sistema e, gradualmente, você terá um tipo de infraestrutura alternativa para esse tipo de negociação.”
 
A diversificação de ativos e reservas cambiais também é necessidade, aponta Yuefen. “Você não coloca todos os ovos em apenas uma cesta, você pode usar não apenas dólar, mas também outras moedas, e também ouro, portanto, você diversifica a reserva cambial”.

O preço do ouro atingiu uma alta histórica no começo desta semana, causada, em parte, pela redução da taxa de juros nos Estados Unidos em 0,5%, o primeiro corte desde 2020. Inclusive há a perspectiva de que o Federal Reserve, o banco central dos EUA faça mais cortes na taxa de juros no futuro. Como o ouro não rende juros, o custo de possuir ouro baixa e a demanda tende a aumentar. 

O integrante do grupo de discussão Clube Valdai, Oleg Barabanov, concorda com a necessidade de diversificação das reservas cambiais. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele cita, como exemplo, tanto o congelamento de cerca de US$ 300 bilhões (R$ 1,6 tri) em ativos russos em países do Norte Global (e Cingapura), como o sequestro de 32 toneladas de ouro da Venezuela por parte do Banco da Inglaterra desde 2018.

O sequestro da propriedade venezuelana aconteceu porque o governo britânico reconheceu o ex-deputado Juan Guaidó como presidente em 2020.  

O que é importante é o controle soberano sobre as reservas, diz Barabanov. “Elas devem ser mantidas no próprio território dos Estados ou no território de alguns Estados amigáveis”. “Há algumas discussões entre economistas e políticos no Sul Global sobre como evitar a situação no futuro e a receita evidente é simplesmente renunciar à dependência do Ocidente”, afirma o analista russo.

E a moeda dos Brics?

Uma moeda comum do Brics é vista como possibilidade que ainda pode levar tempo. Um dos desafios é a grande diversidade entre os países do Brics, aponta a economista Yuefen. Ela cita o caso do euro e da moeda única da África Oriental, cuja implementação foi adiada para 2031.

“Até agora, as moedas comuns, elas estão normalmente entre países que compartilham fronteiras, história, religião ou estrutura econômica, estrutura política, macroeconomia. Então, eles têm muitas coisas em comum e essas são as pré-condições para que eles estabelecessem uma moeda comum”, explica a especialista.

Essa pré-condições não estão presentes no caso dos Brics, e o cenário se torna ainda mais diverso com a expansão do grupo. Ela reafirma que o caminho nesse caso, é “se mover passo a passo”. A opção mais próxima deve continuar sendo a do uso das moedas locais entre os países do grupo, incluindo a possibilidade de moedas digitais.

Isso incluiria tanto criptomoedas como as digitais de Bancos Centrais. “Agora o Parlamento Russo está aprovando algumas leis para a regulação de uma moeda digital do Banco Central, o mesmo processo está acontecendo na China”. 

Ele defende que essa pode ser a opção mais próxima: uma cesta de moedas digitais dos países membros do Brics e outros países do Sul Global. 

“Poderia ser útil para não ficarmos presos ao dólar ou ao euro, para não ficar preso ao sistema Swift de transações financeiras, e ao mesmo tempo, para manter o controle soberano sobre as moedas”,

Assim como vários outros países, o governo brasileiro está desenvolvendo sua moeda digital, o Drex, que entrou em sua segunda fase de testes recentemente. 

*Com informações da agência Tass e Xinhua.  
 

Da Redação