Acordo no STF prevê indenização para fazendeiros deixarem terras indígenas e é criticado: ‘perigoso precedente’
Brasil de Fato
Um acordo firmado na última quarta-feira (25) para encerrar a disputa que envolve a Terra Indígena (TI) Ñanderu Marangatu e fazendeiros da região de Antônio João (MS) vai custar R$ 146 milhões aos cofres públicos. A negociação foi realizada no Supremo Tribunal Federal (STF).
Cerca de R$ 28 milhões serão pagos em indenização pelas benfeitorias realizadas nos imóveis, indenização que é prevista na Constituição. Outros R$ 118 milhões se referem Valor de Terra Nua (VTN), um índice relativo às terras que, segundo os títulos de propriedade, fazem parte dos limites territoriais de um determinado imóvel rural.
O VTN é variável e calculado de acordo com uma avaliação sobre o terreno, indicando a capacidade produtiva, áreas de conservação e florestas preservadas, recursos hídricos presentes e outras características geofísicas relacionadas à terra.
O acordo foi celebrado pelos fazendeiros, indígenas e representantes do poder público, e encerrou uma disputa que já se arrastava por mais de duas décadas. Entretanto, a solução de indenizar os ruralistas pela terra nua é considerada inconstitucional pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), como consta em nota técnica da Assessoria Jurídica da organização, divulgada em agosto de 2023.
A nota cita voto do ministro Alexandre de Moraes contrário à indenização das terras de ocupação tradicional indígena, no julgamento das Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362/MT e 366/MT, em 2017, em que o magistrado afirma que “não é possível falar em terras devolutas ocupadas por silvícolas. Ou são ‘devolutas’, e aí seriam do estado. Ou são ‘indígenas’, e aí seriam da União”.
“Isso significa que, por serem as terras indígenas de propriedade da União, além de não ser possível a indenização pela terra nua, não seriam elas passíveis de desafetação para compensação, pois seguem a mesma regra do usufruto exclusivo, prevista no §2º do art. 231”, diz a nota, que pede respeito à vontade da Assembleia Constituinte que deu origem à Constituição de 1988.
“Não há nenhuma possibilidade de romper com a vontade do Constituinte de 1988 e permitir a indenização pela terra nua. A nossa Carta Política já tem um caminho aberto para possível reparação a terceiros em função das demarcações, caso exista boa-fé na ocupação. O que ela não permite é que a União pague, na forma de indenização, por um bem que já é de sua propriedade”, avalia o Cimi.
O secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas (MPI), Eloy Terena, esclarece que “apesar de haver decreto homologatório desde 2005, reconhecendo a terra como de ocupação tradicional indígena, existe ação judicial antecedente, questionando essa caracterização”. Dessa forma, segundo o secretário, “a pendência de ação judicial autoriza apreciação do dever indenizatório do Estado nas hipóteses de titulação indevida”.
Eloy Terena lembra que os recentes episódios de violência contra a comunidade dos Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul se somam a muitos outros que ocorrem desde a década de 1940, vitimando inúmeros indígenas, pelo que considerou o acordo como o caminho mais rápido para resolver a questão.
“O acordo, como via consensual, foi o caminho mais célere e efetivo para promover, de uma só vez, a devolução do território aos Guarani Kaiowá, o usufruto exclusivo das terras e o fim da histórica pressão social pela descaracterização do território como de ocupação tradicional desse povo”, declarou o jurista.
“Ademais, é pressuposto de todo e qualquer processo transacional que as partes avaliem a conveniência de, naquele caso concreto, se desapegarem de parcela de sua posição estabelecida, em nome de um bem maior. Assim que, após décadas de expropriação, de episódios sucessivos de violência – inclusive fatais –, de muita instabilidade aos povos e de profunda carga de preconceito sobre os Guarani Kaiowá, o governo federal, sem prejuízo da defesa das teses nos espaços a tanto adequados, avançou no exame da indenização a particulares para viabilizar a imediata desocupação do território indígena”, disse o secretário.
Segundo Terena, os demais processos precisam ser avaliados caso a caso e descartou que o caso possa abrir qualquer precedente que dificulte o processo demarcatório de outras TIs.
Para a deputada federal Célia Xakriabá (Psol-MG) é preciso reconhecer a força da mobilização indígena para a retomada de seus territórios. No entanto, diz ela, “é muito difícil comemorar decisões com a arma na cabeça”. “A decisão do Supremo foi dada após muitos episódios de violência dos fazendeiros contra os nossos parentes da TI Nhanderu Marangatu, após ferimentos graves em mulheres, crianças e, sobretudo depois do assassinato do jovem Neri Kaiowá”, lembrou a parlamentar.
Sobre o pagamento de altos valores em indenizações aos fazendeiros, a deputada defende cautela. “A demarcação é um direito e não deve ser tratado como uma concessão. Fico feliz pelos parentes que deixarão de perder suas vidas. Mas essa indenização pode ser um perigoso precedente. Não podemos comemorar de maneira acrítica”. “Se o objetivo for reproduzir a nível nacional para todas as demarcações que envolvem conflito fundiário, qual o custo político e financeiro para o país?”, questiona.
A deputada defende que o procedimento adotado no caso da TI Ñanderu Mangaratu seja “apartado” dos demais procedimentos de demarcação até que construa um entendimento definitivo sobre uma regulamentação para a solução de conflitos sobre indenizações, estabelecendo as balizas para os valores a serem pagos e a fonte dos recursos. “E que até sua definição isso não sirva de entrave para que sejam garantidos os direitos territoriais dos povos indígenas no Brasil”, conclui.
Marco Temporal: o problema continua
Em pouco tempo de vigência, a lei 14.701/2023, que instituiu o marco temporal para a demarcação de terras indígenas no Brasil, já produziu efeitos perversos para as comunidades indígenas, fundamentalmente àquelas onde há processos de disputas territoriais com particulares. A lei foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2023, apenas três meses após o Supremo Tribunal Federal determinar a inconstitucionalidade da tese. O marco temporal estabelece a data de promulgação da Constituição Federal como limite para a demarcação de terras indígenas, ou seja, somente seriam demarcadas as comunidades que já estavam no território em 5 de outubro de 1988.
Célia Xakriabá destaca que os efeitos da medida já são sentidos pelos povos indígenas, e vão desde “a viabilidade da exploração comercial dos territórios por terceiros, a autorização para que os latifundiários avancem [sobre os territórios tradicionais], até a legitimação dos ataques violentos realizados em todo o país em resposta às retomadas dos territórios indígenas”.
“Não à toa ela foi apelidada de Lei do Genocídio, porque coloca em xeque todas as normativas que existiam sobre demarcação das terras indígenas e derruba uma conquista histórica da luta cristalizada na Constituição Federal”, comentou a parlamentar, que ainda listou uma série de ataques contra os povos indígenas ocorridos após a aprovação da lei.
“No Rio Grande do Sul, na aldeia Kaingang Fág Nor, na aldeia Pekuruty, do povo Guarani Mbya, no Paraná, os Tekohas Arapoty, Arakoé e Tatury, da TI Guasu Guavira, no Ceará, em Parnamirim, do povo Anacé, e no Mato Grosso do Sul, que atraiu mais atenção e notoriedade, contra o povo Guarani Kaiowá na Tekoha Kunumi Vera, TI Panambi – Lagoa Rica e Nhanderu Marangatu”.
A parlamentar fez um apelo ao Judiciário. “Pedimos a suspensão da vigência da lei para que a Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] possa retomar todos seus estudos e para que não exista nenhuma legitimação dos Poderes sobre a violação dos direitos indígenas.”
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) publicou nota em que pede ao ministro Gilmar Mendes, relator das ações que questionam a constitucionalidade da lei do marco temporal, suspenda a vigência da lei, em obediência ao entendimento firmado pelo Supremo a respeito do tema em setembro de 2023. “Reforçamos o pedido ao ministro Gilmar Mendes, relator das ações que tratam da legislação no Supremo: Suspenda a lei 14.701/2023 imediatamente! Essa lei incentiva e legaliza a violência contra os territórios e corpos indígenas, que são os verdadeiros guardiões dos biomas brasileiros!”, escreveu a entidade.
Em 28 de agosto, a Apib decidiu se retirar da mesa de conciliação sobre o marco temporal, também coordenada pelo gabinete de Mendes. Na ocasião, os indígenas denunciaram que se tratava de uma tentativa de “conciliação forçada e compulsória”.