Em Porto Alegre, propostas na Câmara tentam barrar proibição de carrinheiros na cidade

Brasil de Fato

José Carlos Kegler é carrinheiro entre os bairros Humaitá, Floresta, Auxiliadora, São Geraldo, São João e outros, quando resolve variar de roteiro na capital gaúcha, Porto Alegre (RS). Tem zeladores e amigos pelo caminho que guardam papelões, caixas, garrafas de plástico e tantas outras quinquilharias de plástico ou ferro que podem ser vendidas e lhe garantir algum trocado para sobreviver. Se considera “um cara vitorioso”.

Arrecada uns 100 quilos por dia que acabam lhe rendendo uns R$ 40 ou 50 diariamente. Bom, ruim, mais ou menos?  Para ele é “tudo de bom”, dá para comer e ainda sobrar algum para os fins de semana ou ajudar seus “irmãos de rua” e fazer “umas farras por aí, também tenho direito, né?”, garante ele. 

Ele sabe que estão para tirar das ruas os carrinheiros. Já ouviu falar, mas não deu muita importância e não tem tanta certeza se isso vai acontecer um dia. Não está preocupado com isso. “Meu negócio é ir vivendo, um dia atrás do outro, sem me ligar nessas coisas”, diz, com convicção de que não atrapalha carros e nem pessoas que andam por aí. Nunca ficou sabendo de queixas contra ele e nem foi xingado por andar puxando um carrinho, fazendo força. 

A lei municipal 10.531, de 10 de setembro de 2023 proibiu a circulação dos Veículos de Tração Humana (VTHs), prorrogável por mais seis meses, prazo vencido em 30 de junho de 2024. Não se viu ninguém recolhendo os carrinhos. A fiscalização, porém, não agiu.

Duas propostas

Dois vereadores progressistas resolveram sair em defesa destes trabalhadores: Jonas Reis e Adeli Sell, ambos do PT. Jonas propôs que os carrinheiros circulem pela cidade até 31 de dezembro de 2025, prorrogável por mais seis meses. A Câmara da Capital já está debatendo o projeto de lei. Ele é o oitavo da lista de prioridades para ser discutido e votado.

O vereador argumenta que as enchentes afetaram os catadores de material reciclável que utilizam os veículos, e que o Quarto Distrito – uma das regiões mais atingidas – tem grande concentração de catadores. “Estes trabalhadores sofreram grandes perdas em suas residências, em muitos casos perdendo tudo o que tinham. Essa situação, aliada ao alagamento prolongado, afetou gravemente a renda e a vida dos catadores”, afirma.

O outro projeto, de Adeli Sell, foi apresentado, mas ainda não tem prazos definidos para análises. O vereador pretende tornar definitiva a circulação dos carrinhos. Estabelece programa de redução gradativa do número de veículos de tração animal, e dispõe sobre o cadastro social e ações inclusivas dos condutores de veículos de tração humana.

Na exposição de motivos, Adeli salienta que a redução gradativa dos veículos de tração humana, prevista pela lei 10.531, já sofreu prorrogações, visto que as políticas públicas municipais para a transposição dos condutores destes veículos para outros mercados de trabalho não têm conseguido abranger a totalidade de pessoas. De acordo com a justificativa, as famílias que ainda dependem desse trabalho estão sob a pressão de que em breve perderão esta fonte de renda, vivendo um dia de cada vez, com o risco de não haver nova prorrogação na lei para que suspenda essa proibição.

Para o autor da proposta, os catadores e coletores de materiais reutilizáveis e recicláveis são importantes auxiliares na manutenção da limpeza e higiene do município. “Esse pessoal promove um meio ambiente mais sustentável ao retirar e separar os resíduos do meio urbano, impedindo que estes acabem indo parar em locais impróprios, como bocas de lobo e bueiros ou até na natureza, causando uma série de problemas ambientais”, garante. 

Andanças

O carrinheiro José Carlos Kegler, que citamos no início da reportagem, é uma das pessoas que depende exclusivamente deste trabalho para sobreviver. Até uns três anos atrás, ele dormia numa barraca na rua Xavier Ferreira, bairro Auxiliadora, e ali guardava o seu material de trabalho. Higiene pessoal fazia quando conseguia algum lugar. Ele tem 40 anos, nasceu em 12 de outubro de 1983 em Arroio do Tigre, a 246 km de Porto Alegre, na região Centro-Oeste do RS. José ou Zé, como o chamam na rua, não sabe há quanto tempo saiu de casa. Peço para soletrar seu nome e ele me conta que é analfabeto e não sabe soletrar as letras. Tem documentos, “mas não estão comigo, deixo em casa para não perder”. Conta que não pôde ir para a escola e que não tinha também muita vontade.

Vive como dá. Há uns dois anos conseguiu da prefeitura aluguel social e hoje mora em um pequeno apartamento no bairro Humaitá. “Dá para ter umas coisinhas, fogão, cama, tevê, ventilador, e mais nada”, relata. Fome não passa. Sempre consegue comprar feijão, arroz e, às vezes, um pedaço de carne com o dinheiro que ganhou com recicláveis. Recebeu auxílio reconstrução porque a sua região ficou alagada e não conseguia chegar em casa, e nem pôde trabalhar. “Com o dinheiro comprei um celular, mas vendi. Não consegui manipular o bicho e nem tinha como me comunicar”, conta.


Carrinheiro José Carlos Kegler junto do seu inseparável amigo Sheik, um cachorrinho que o acompanha nas andanças pela cidade / Eugênio Bortolon / Brasil de Fato

Parou em um abrigo durante a enchente, mas sempre junto do seu inseparável amigo Sheik (“Alguém deu este nome e ficou assim”, lembra), um cachorrinho que o acompanha nas andanças pela cidade e está gordinho de tanta comida que ganha pelo caminho. Sheik está sempre limpo. “Dou banho todos os dias, não gosto de cachorro fedido. Ele é meu único companheiro”.

Kegler é torcedor fanático do Inter. Vive usando camisas do seu time. Ele diz que tem algumas que foi ganhando das pessoas pelas ruas. Nos últimos anos, só foi a um jogo do Inter. “E foi há poucos dias, quando o colorado ganhou do Fortaleza por 2 a 1. Um amigo conseguiu uma carteirinha emprestada e lá me fui todo feliz da vida. Dei sorte”.

Ele comprou há uns dois anos o carrinho do seu trabalho por R$ 800. “Já me roubaram uma vez, mas recuperei”. Também gosta de viajar, mas não consegue muito. Vai visitar eventualmente familiares em Arroio do Tigre ou em Londrina (PR). “Só vou se posso levar o Sheik. Há pouco tempo consegui um trabalho em um estacionamento em Florianópolis. O dono do lugar deixou levar o meu amigo.” E assim segue a sua vida. “Ah, também vou a igreja aos domingos. É preciso ter fé e acreditar na vida. Tenho boa saúde.”

Da Redação