Obras de Ana Primavesi previram desastres e dão norte para recuperação de ecossistemas
Brasil de Fato
O solo, sempre o solo, foi o protagonista na existência de Ana Primavesi. Hoje, uma nova geração é fascinada pelo estudo dos solos graças a ela e também a outras pessoas que perceberam que “o solo é a base de toda a vida”.
Ana sentia tamanha paixão por estudar o solo que seu primeiro manuscrito em terras brasileiras, O Solo e sua Vida, embrião de seu mais importante livro (Manejo Ecológico do Solo) foi o presente pelo 32º aniversário de seu marido, Artur. Ambos chegaram ao Brasil com o filho Odo, de 8 meses, nos braços e com a expectativa (e perspectiva) de recomeço após o fim da Segunda Guerra. Sem dinheiro para presentear o marido, ela sentou-se à máquina de escrever e datilografou o trabalho, tendo ainda o capricho de ilustrá-lo com pinturas em aquarela. Um trabalho** escrito com amor, expressando seu amor à sua profissão, ao amor de sua vida.
Esta moça, que estudou a vida do solo a vida inteira, morreu com quase 100 anos. Moça ainda, estudou e perseverou, desbravou um universo que até hoje é um mistério: afinal, o que há, o que acontece sob nossos pés? Ela sabia. Dizia não saber tudo, mas era quase tudo.
Annemarie Baronesa Conrad era seu nome de solteira. Filha de barão, baronesa por registro, tradição e direito, nunca mencionou tal adorno, justamente por ser o que essa palavra mesmo significava. Uma baronesa que viveu a vida como camponesa, em gestos, atitudes, palavras. Seus livros eram escritos exatamente assim, palavras simples, num jeitinho descomplicado, terno e amoroso de falar sobre o objeto de sua paixão. A ciência, toda pomposa, reagiu. Aquilo não era científico. Por quê? Era sim. Vá para o campo e aplique o que está escrito, que tudo vai dar certo. Se a ciência não favorece a natureza, para que, afinal, ela serve?
Mais velha, passou a ser mais reconhecida por seu trabalho. Era uma sumidade em biologia, química, bioquímica. Da sala de aula ao laboratório, da casa ao campo, unia saberes científicos aos ancestrais, estes aprendidos ao longo da vida, aqui no Brasil. Um exemplo foi quando, em 1952, houve um surto de febre amarela em Passos (MG), onde o casal Primavesi morava. Artur foi infectado, e, levado para o hospital, mostraram uma lista de remédios que deveriam ser ministrados. “E isso cura”, Ana quis saber. “Não, febre amarela não tem cura.” “E para que os remédios?” Por fim, ante a cara do homem, que não tinha nem a solução nem a resposta para suas perguntas, ela resolveu: “Vou pedir que meu marido fique em casa mesmo. Pelo menos ele poderá morrer em meio à sua família.”
Ana saiu à procura de ervas que pudessem curar febre amarela. Foi para o mato, procurou os indígenas mas quando dizia “febre amarela”, todos abanavam a cabeça: “Para isso não tem remédio, não tem cura.” Ela percebeu que a pergunta tinha que ser diferente: “O que vocês fazem para problemas de fígado e bílis?” Ninguém tinha dito que o fígado era atacado, mas era evidente que por causa disso o doente ficava com aquela cor amarelada. E as receitas apareceram: xarope de agrião; chá de raiz de jurubeba e pariparoba; quebra-pedra, raiz de mentrasto e erva- tostão; raiz de picão-preto e frutinhas de jurubeba; chá de cabelos de milho; chá de folhas de alcachofra; suco de limão e de laranja doce; sementes de veludinho colocados em vinho do Porto; levedura de cerveja.
Ana não distinguia a maioria das ervas, mas contava com a ajuda de Perciliana, que trabalhava em sua casa desde o nascimento de sua filha Carin, que tinha dois anos à época. Perciliana não era uma pessoa comum: ela tinha o dom de ver além das paredes, a longas “distâncias”, e foi ela que coletou as plantas. Ana fez de tudo e deu de tudo, e o milagre aconteceu. Artur sarou! O único, entre todos os que tinham sido infectados. Foi uma sensação, e o feito se espalhou. Vieram pessoas da Universidade de São Paulo e de Belo Horizonte para saber como tinha conseguido, mas ela não sabia responder. Podia ter sido uma das receitas, ou a combinação de todas elas, ou de algumas delas, ou a ordem em que foram dadas. Artur estava curado.
Mulher de poucas palavras, mas significativas quando pronunciadas, lia muito. Sua inteligência extrapolava a ciência, porque sabia tirar da vida o que lhe era possível, não se atendo às perdas, olhando para frente, sem amarguras.
Ana sabia das dificuldades que a agricultura enfrentava. Sabia que desmantelar um sistema que opera pela lógica do lucro, não da natureza, era difícil, não porque não se pudesse fazer isso ecologicamente, mas porque a ganância do homem sobressairia. Ela sabia (e nós não percebemos isso ainda) que se o solo perdesse sua vida, não poderíamos comer dinheiro. E é incrível como todas as questões ambientais pelas quais passamos estão descritas em sua obra, sejam secas, enchentes, alagamentos, tempestades de terra, dentre outras.
Num dos contos de seu livro A Convenção dos Ventos – Agroecologia em Contos*** ela descreve a saga de três gotinhas de chuva: quando caem em solo vivo, coberto pela mata, as gotinhas escorregam até as portinhas do solo, seus poros. Uma gotinha vai direto para a raiz porque entra num túnel mais estreito, e a raiz a manda para a folha carregando o cálcio. A raiz a adverte: “cuidado com a turbulência!”. As outras duas seguem para o lençol freático, e evaporam. É o ciclo da água. Mas depois de um tempo, quando retornam, não há mais “escorregadores” verdes, não há mais portinhas para penetrar. O solo está nu, compactado, a monocultura impera. A terra aquecida não deixa a nuvem descer. E quando elas finalmente caem, escorrem e causam erosão, enchentes. O ciclo se rompeu. Palavras proféticas de uma pessoa que enxergava além de nosso tempo.
Nosso país arde e ela não está mais aqui para nos acudir com sua fala clara, precisa. Mas ela escreveu, escreveu muito, e sobre seus livros devemos nos debruçar, arregaçar as mangas e reflorestar o que se foi. Ana dizia: “A terra não é fábrica de alimentos e não produz ilimitadamente. Amemos nossa terra e procuremos saber o que ela é capaz de produzir quando a tratamos carinhosamente. Tudo corre melhor quando feito com amor.” Imbuídos por esse amor à terra, ao solo, que esta data seja sempre o chamamento para a ação ecológica consciente, um tipo de aterramento, uma reconexão, que passa por ações simples, sinceras, humildes.
Em seu aniversário, costumava ganhar presentes, mas o que mais gostava de ganhar mesmo eram as cestas de frutas. Presentes efêmeros, simples e deliciosos, que ela desfrutava – com a licença poética da palavra. Hoje, 104 anos após seu nascimento neste planeta, se ela estivesse presente, estaria entristecida com as queimadas, com os rios secos, com os animais chamuscados, mas acredito que teria uma palavra amiga e construtiva, de muita força, que nos levantaria e nos faria reagir.
Assim ela escreveu: “Peguemos nossa pá, perguntemos à nossa terra o que lhe está faltando e tratemo-la depois convenientemente dentro dos limites que a natureza nos impõe, e a antiga exuberância voltará aos nossos campos e a prosperidade aos nossos lares.”
Vamos reflorestar nosso Brasil, vamos praticar agroecologia. Esse é o único caminho para que possamos continuar a habitar essa terra. Esta Terra.
*Virgínia Mendonça Knabben é geógrafa e autora do livro Ana Maria Primavesi: Histórias de Vida e Agroecologia, da editora Expressão Popular.
**Esse manuscrito foi incorporado ao final do livro “Cartilha da terra”, primeiro livro póstumo de Ana Primavesi, publicado pela editora Expressão Popular em 2020.
***Esse conto foi recém-publicado pela editora Expressão Popular como livro infanto-juvenil ilustrado em 2024.
****Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.