Breves notas sobre futebol e política em 2024 no Brasil
Brasil de Fato
Certamente o estimado leitor já se deparou inúmeras vezes com os infelizes clichês que “político é tudo igual”, “futebol e política não se misturam” ou ainda que “futebol, política e religião não se discutem no Brasil”. Repetitivo dizer como tais clichês são funcionais à visão conservadora (e até reacionária) de povo “passivo” ou povo “burro” sobre os brasileiros.
Assim como outros mais específicos e infelizmente também duradouros como “o esporte é saúde e tira as crianças das ruas e das drogas”. Contudo, na prática, futebol e política estão muito articulados no cotidiano com as constantes trocas (ou sobreposições) de papéis sociais entre políticos, dirigentes, empresários e (ex) jogadores. Embora apenas alguns elementos mais superficiais recebam maior repercussão midiática sobretudo em anos que coincidem Copa do Mundo com eleições presidenciais (como 2014, 2018 e 2022), quando inclusive emergem “análises” bem superficiais do tipo: “estão transformando a política em ‘fla x flu'”, como que na pretensão que algum consenso racional pudesse ocultar algum conflito latente.
Em menor medida, nos anos em que coincidem Jogos Olímpicos com eleições municipais também surgem alguns elementos férteis a esse debate que neste breve texto buscarei apenas mencionar sem espaço suficiente para analisar um a um de forma aprofundada.
A começar por uma breve síntese na qual o papel do futebol e do esporte como um todo na sociedade e na política em três décadas e meia da Nova República é de pouco alento. Apesar da garantia constitucional do esporte como direito universal, ele é um setor frágil nas disputas políticas, seja nas esferas municipal, estadual e federal e, por consequência, nas prioridades orçamentárias e programáticas. Não somente renegado em governos, como em partidos políticos e outras organizações da sociedade civil pouco parece haver articulação entre esportistas, intelectuais e lideranças populares para sequer discutir problemas sociais em comum como premissa para tentar escrever propostas eleitorais sólidas.
Uma visão tão superficial quanto enganosa seria afirmar que dos anos 90 para cá o esporte “influencia” a política por conta de Zico e Pelé terem passado pela Secretaria de Esporte no Governo Federal (antecedente do Ministério do Esporte) e diversos ex-jogadores de futebol daquela época terem disputado cargos eleitorais: Romário, Bebeto, Jardel, Marcelinho Carioca, goleiro Danrlei e até mesmo pelo mundo afora o mexicano Blanco, o paraguaio Chilavert ou o ucraniano Chevchenko.
Contudo, a dinâmica política que levanto como hipótese é que ex-jogadores, principalmente de futebol embora também notório em outras modalidades, desempenham um papel simultâneo de personalização/despolitização ao aportarem às candidaturas seu “capital” carismático, sobretudo quando associado a carreiras esportivas vencedoras, e raramente algo mais substancial além disso.
Usando outros termos mais típicos de análises políticas mais sólidas, as candidaturas eleitorais de esportistas parecem exercer uma lógica dual: ora anti-sistema (“contra tudo que está aí”), ora em reprodução do próprio sistema. Não sendo coincidência que tais candidaturas são cada vez mais raras na centro-esquerda e sobretudo na esquerda radical, e por contraste se concentram numericamente em partidos de centro, direita e extrema direita. Por isso a menção inicial sobre os discursos vagos a respeito de esporte e política são tão funcionais pragmaticamente e convergentes ideologicamente entre si.
Daqui para frente concentrarei nesse texto a menção de casos de como a prática e a ideologia da extrema direita vem disputando e conquistando posições no esporte. Ou seja, em última instância estou falando de hegemonia cultural e ideológica em âmbitos da sociedade civil como o futebol e o esporte. Não sou otimista com a hipótese que nesse âmbito micro houvesse um refluxo do bolsonarismo tal qual no âmbito macro desde o final de 2022 com sua derrota eleitoral.
Por falar nessas intensas disputas discursivas, acrescento como reflexão que com frequência eles mobilizam uma dupla moral de conveniências: legitimam o próprio apoio eleitoral como mera “liberdade de expressão” embora deslegitimam outros apoios sob o pretexto que “futebol e política não se misturam”.
Diante da introdução um pouco mais estável ao longo de décadas nos primeiros parágrafos, proponho a mencionar algumas notas mais específicas para o ano de 2024. Para isso, resgato um termo que parece estar sumindo das análises políticas: cabo eleitoral. O que sugere ser uma tática de uma personalidade emprestar “capital” carismático a um candidato e indiretamente lhe ajudar e depois poder lhe cobrar uma troca de favores. E aqui é preciso chamar as coisas pelo seu nome: o jogador Neymar Jr. é cabo eleitoral do bolsonarismo enquanto John Textor, CEO do Botafogo, é cabo eleitoral do trumpismo.
Sobre Neymar, é público seu apoio como eleitor da direita e depois da extrema-direita desde as eleições de 2014. O que já era convergente ideologicamente (vide compartilharem os lemas “deus, pátria e família” assim como diversos outros jogadores) também veio a público nos últimos meses como funcional pragmaticamente, diante da informação que Neymar se beneficiaria como investidor com uma PEC de privatização de praias de Flávio Bolsonaro. Uma nova iniciativa tão escandalosa quanto não-surpreendente pelo seu histórico de desrespeito à legislação ambiental e inúmeras atividades econômicas fora do contexto de sua carreira esportiva em declínio.
Enquanto sobre Textor, é notório para quem acompanha o noticiário esportivo cotidiano, sua iniciativa nos últimos meses de “enfrentar o sistema” arcaico do futebol brasileiro sob alegação que o clube que comprou é impedido de alcançar títulos esportivos expressivos. Já para quem não acompanha, é preciso ressaltar que, apesar do viés profissional que o termo “CEO” remete, para ocupar tal protagonismo é preciso uma condição privilegiada de ser um empresário bilionário, ou seja, sendo no mínimo irônico e suspeito que alguém que tanto se beneficiou do “sistema” (econômico, político e/ou esportivo) quisesse de fato uma melhoria geral ao invés de favorecimento em particular. Inclusive pela condição privilegiada de um homem branco rico (sobretudo se for “gringo”) puder levantar acusações impunemente sem provas e sem ter a devida cobrança que lhe caberia pelo campo midiático e pelo campo político.
Para isso, contratou uma consultoria “independente” para tentar provar através de Inteligência Artificial que houve manipulação de resultados (aproveitando um tema com bastante repercussão midiática de um ano para cá) sob alegação de fraude deliberada no VAR e por sua vez na CBF. Pouco depois de analisar o caso Textor em meu texto anterior já citado, encontrei outro texto mais profundo sobre as notórias semelhanças entre Textor e Elon Musk (sobretudo em sua ofensiva contra Alexandre de Moraes do STF) o qual destaco um fragmento fundamental a seguir:
“É possível que o objetivo maior seja potencializar suas atividades econômicas, mas ambos perceberam que o ataque à soberania nacional (Musk) e a implosão do arranjo institucional nacional vigente e a desconfiança a um elemento da cultura popular (Textor) facilita a realização desses interesses, sobretudo pela obtenção de apoio na opinião pública. Musk, como “guardião da liberdade”, e Textor, como “defensor da moralização da maior paixão nacional”, recorrem à desinformação (mistura acusações diferentes em um mesmo discurso) e contam com o viés de confirmação de pessoas que acreditam que: (i) o politicamente correto e os limites da liberdade de expressão favorecem a destruição dos seus valores comunitários em favor de uma agenda globalista/multicultural deletérios ao senso de pertencimento; (ii) que seus clubes e, portanto, eles mesmo estejam sendo deixado para trás em função de uma conspiração (privação relativa).”
Articulando os dois casos anteriores sobre Neymar e Textor, acrescento que eles convergem com o governo de Milei na Argentina ao usar o futebol para vários “fronts” da sua “guerra cultural” diária: para instalar o projeto de clube-empresa naquele país e coesionar um patriotismo de novo tipo reacionário. Vide ele também reivindicar que o projeto de clube-empresa ser supostamente positivo pela liberdade dos sócios de decidirem uma transição e a liberdade de investimentos como forma de restaurar a competitividade dos clubes argentinos em torneios continentais prejudicada pela prolongada crise econômica. Como ao buscar apoios de ex-jogadores (como Aguero, Tevez e Verón) que emergem como cabos eleitorais desse projeto.
Assim como também persegue os dirigentes esportivos como um tipo específico de “casta” tal qual faz com sindicalistas e outras lideranças populares. Vide também se aproximar do atual “capital” esportivo vencedor da seleção argentina (embora fica como hipótese intuitiva que se a situação dentro de campo fosse negativa a narrativa seria oposta de “maldita herança kirchnerista” como se houvesse determinação direta do futebol pela política). Na medida que cobra de seus eleitores terem o mesmo sacrifício diante da crise econômica do que os jogadores. Enquanto na recente Copa América atuou em dois momentos e com dois recursos. Antes, viralizou uma postagem na qual todos os jogadores titulares seriam vencedores por jogarem em clubes-empresas europeus legitimando esse modelo como o mais vencedor. E com isso oculta a verdade que a formação esportiva de todos foi em clubes associativos pela sua profunda função social além de esportiva.
E depois, se aproveitou do canto discriminatório do volante Enzo Fernández contra jogadores franceses para ao mesmo tempo atacar as pautas identitárias progressistas (como gênero e raça) e exercer sua diplomacia agressiva contra o governo Macron.
Mesmo sem ser uma liderança que “futebolizou” ativamente sua candidatura ou seu governo, Milei parece estar atento a cooptar para si o protagonismo dessas e outras disputas tão cotidianas e acirradas que partem do futebol nas redes sociais ciente da recente “rivalidade” virtual entre argentinos e franceses após a final da Copa do Mundo de 2022 e sobretudo diante da frequente rivalidade entre argentinos e brasileiros e deploráveis atos racistas e xenofóbicos.
Por fim, bolsonaristas, trumpistas e mileístas certamente convergem ideologias messiânicas ao levantarem acusações sem provas e mobilizarem soluções simplistas e destrutivas. Nisso, obscurantismo, negacionismo e terraplanismo se assemelham por partir de um elemento pitoresco como “isca”, através de uma prolongada resiliência a atraírem céticos ou curiosos ou revoltados para se tornarem apoiadores cada vez mais extremados para demandas primeiro anti-ciência e depois anti-política (ou mais precisamente anti-Estado com suas políticas sociais).
A resiliência está em que esse elemento pitoresco ao não ser prontamente rechaçado como absurdo pelo campo midiático ou pelo campo político, ganha tempo na expectativa de ganhar novas adesões pontuais de coadjuvantes que trabalham ativamente para normalizá-los e assim tal demanda ganha capilaridade. Em outros termos, não basta uma conclusão superficial que isso seja apenas “loucura”, pois mesmo nessa loucura há um método de apostarem em cooptar para seu próprio campo político-ideológico um vago sentimento “anti-sistema” de eleitores e torcedores que inviabilizasse outras formas de organização popular emancipatória.
* Fábio Perina é formado em Ciências Sociais e Educação Física (bacharel e licenciatura). Mestrado em Educação Física. Recém ingressante no Doutorado em Educação Física com ênfase em Sociologia do Esporte. Todos os cursos pela Universidade Estadual de Campinas
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.