‘A Substância’ e o terror da imagem
Brasil de Fato
[Contém spoilers]
Elisabeth Sparkle, a estrela midiática interpretada por Demi Moore, finalmente resolve aceitar o convite de sair com um admirador para jantar. Ela está diante do espelho, maquiando-se, num banheiro de azulejos muitos brancos. O olho da câmera guia nosso olhar para uma imagem estática. Vemos seu rosto, mas não o rosto real. Chega até nós o reflexo emoldurado e capturado pelo espelho do armário do banheiro. O espelho capturado pela projeção diante de nós. Uma dupla imagem. A foto de uma foto.
Os frames se encadeiam de modo lento, demorado. A iluminação da cena remete à clareza estéril de um ambiente hospitalar. Sentimos, concretamente, o tempo passar nessa lentidão proposital. Quando o relógio aparece, é para mostrar, como numa contagem regressiva, que o tempo está acabando.
E junto do olhar dessa atriz que interpreta uma atriz, temos a impressão de que a imagem do seu rosto vem de um ângulo mais cru. A câmera não quer embelezar seus traços, talvez até distorcê-los. Junto com Elisabeth, na cena que talvez seja sua única chance de escapar do pacto fáustico no qual se meteu, nossos olhos começam a duvidar daquilo que vemos no espelho. Alguma coisa não está bem.
Por duas vezes, ela sai até a porta. Coloca a chave na fechadura. Mas não se sente confiante e retorna até o espelho. Enfrenta mais uma vez a imagem que parece não obedecer seus olhos. Aumenta a carga de maquiagem, coloca um lenço estampado ao redor do pescoço e um par de luvas longas para cobrir os efeitos colaterais da substância em seu corpo. Nada parece ajudar. Solta um suspiro, apaga a luz. Ouvimos os passos angustiados de sua caminha com o casaco amarelo pelo corredor escuro.
No meio da sala do luxuoso apartamento com lâminas de vidro transparente que vão do chão ao teto, de onde a cidade é uma paisagem aos seus pés, há mais duas imagens. Imagens que estão em confronto entre si e oprimindo a outrora grande estrela da televisão. Um quadro da própria Elisabeth Sparkle, que lembra O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde (1854-1990) e um imenso outdoor de Sue, “a melhor versão de si mesmo”, que nasceu das próprias entranhas da atriz de 50 anos, demitida da TV, a despeito de sua gloriosa carreira de sucesso.
O romance filosófico-moralista de Wilde, que também tematiza as questões da beleza e juventude, coloca o desejo obsessivo de cristalizar esse estado como uma degeneração demoníaco. Aqui também a atriz faz um contrato com uma estranha entidade biotecnológica que promete não apenas manter a juventude, mas trazê-la de volta, através de um dopperlanger melhorado. Um duplo sombrio, como a empresa insiste em dizer, não é outro ser, mas um mesmo ser que vive agora numa dinâmica de interdependência.
Elisabeth enfia a chave na fechadura. Mas não tem coragem de sair. A câmera avança sobre os ombros da atriz e faz um zoom in, atraído pela monumental imagem publicitária de Sue no outdoor lá fora: um sorriso irônico, o maiô rosa-metálico e os olhos claros e a pele branca e lisa como uma folha de papel. O rosto de Elisabeth Sparkle aparece deformado e curvo e angustiado na superfície do olho mágico da porta. É derrotada ao mesmo tempo pela própria imagem e pela imagem inalcançável que a indústria vendeu para ela como solução. Uma imagem artificial, que longe de lhe trazer a felicidade, rouba tudo que ela tem.
Enquanto o jovem Dorian Gray, fazendo uso do poder de sua beleza, se deliciava em orgias e banquetes, vivendo a fantasia de fazer de cada momento a fruição de um prazer infinito, seu retrato envelhecia e sangrava escondido no sótão. No caso de A Substância, o quadro é a própria Elisabeth. Trancada em seu apartamento, à beira da loucura e da depressão, se empanturrando de comida, submetida à cruel e misógina indústria da beleza, onde as decisões são tomadas por homens asquerosos e sem escrúpulos. Um dos pontos mais altos do filme é a própria atuação de Demi Moore, encenando com primor a queda de uma atriz que poderia ser ela mesma.
Além dessa ótima passagem, o body horror da diretora Coralie Fargeat expõe de maneira crítica os poderes de objetificação e comercialização das imagens dos corpos das mulheres. O terceiro e monstruoso ato do filme, numa clara referência à Carrie, a Estranha (1976), vem nos sugerir que, nessa indústria, todos têm sangue nas mãos.
A jovem Margaret Qualley, nas coreografadas cenas de dança, nos lembra que essa ditadura da imagem irreal se desprendeu do olho onisciente da indústria da televisão e se fragmentou em bilhões de olhos de abelha dos perfis de Tiktok e Instagram. Não mais um sol radiante, mas uma constelação de estrelas, destruindo as fronteiras de emissor e receptor.
Enquanto coaches querem nos vender nossa melhor versão, filmes com Alien: Romulus e A Substância nos lembram que essas imagens do hiper trabalhador incansável, no caso do primeiro, e da beleza irreal e opressiva, no caso do segundo, produzem monstros terríveis, chocantes e insuportáveis. Corpos que, já na sua concepção, encarnam o terror da imagem.
*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e é autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com.
**Este é um artigo de opinião e não representa necessariamente a linha editorial do Brasil de Fato.