Projeto de lei sobre regularização de terras públicas no Distrito Federal pode incentivar grilagem, apontam especialistas
Brasil de Fato
O projeto de lei (PL) nº. 1.258/2024 propõe alterar a Lei nº 5.803, que institui a Política de Regularização de Terras Públicas Rurais pertencentes ao Distrito Federal ou à Agência de Desenvolvimento do Distrito Federal (Terracap). Para o dirigente estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no DF e Entorno, Marco Baratto, esse PL tem como centralidade modificar o Programas de Assentamento de Trabalhadores Rurais do DF (PRAT). Especialistas ainda destacam que o projeto também pode dar brecha para a grilagem de terra no DF.
O PL foi enviado, em regime de urgência, pelo poder Executivo à Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF). No dia 17 de setembro, ele foi aprovado em dois turnos durante sessão deliberativa na Casa. A votação não foi unânime pelos deputados, uma vez que parlamentares da oposição ao governo Ibaneis defenderam que a CLDF deveria ouvir a população diretamente envolvida, como ocupantes de assentamentos, antes de submeter a matéria ao plenário.
O projeto trata sobre a lei de regularização de terras, n.º 5.803, que foi instituída no dia 11 de janeiro de 2017. Com isso, o documento da proposta estabelece que as mudanças não se aplicam às ocupações instaladas até a data da publicação da lei em áreas destinadas ao PRAT, entre os anos de 2013 e 2016, e que não foram implantadas, podendo tais áreas serem submetidas ao rito da regularização nos termos da norma, desde que cumpram os demais requisitos previstos.
Logo depois, no texto do projeto, é proposto uma regra de exceção para o marco temporal exclusivamente para ser utilizado nas ocupações que iniciaram como acampamento e assentamento, mas que, por diversos motivos, não foi possível seguir com o projeto e sua efetiva implantação. “Algumas dessas áreas não foram implantadas à luz da legislação do PRAT, dada a constatação de inviabilidade técnica da área proposta para o assentamento, resultando assim em famílias acampadas sem qualquer segurança jurídica”, mostra o documento.
Segundo Patrícia Silva, advogada e assessora em políticas públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), quando o PL permite que áreas ocupadas após 2016, dentro de áreas destinadas a projetos de assentamento, ele acaba ampliando o marco temporal para ocupação. “Isso vai criando sempre a ideia do fato consumado, ou seja, vai ocupando, que o governo vai mudando o prazo para regularizar”, destaca.
A advogada ainda explica que há dois problemas, em tese, no PL. Segundo Patrícia, legislar sobre reforma agrária é competência da União e, depois, conforme a Constituição Federal, as terras públicas devem ser destinadas prioritariamente à reforma agrária.
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Lúcia Mendes, presidente da Associação Preserva Serrinha e membro da coordenação do Fórum de Defesa das Águas do DF, também destaca que o problema do projeto é que, quando se inclui terras destinadas à reforma agrária na possibilidade de regularização, surgem várias condicionantes, como tempo de ocupação, características da terra, regularização, além da individualização da terra, o que quebra o sentido coletivo da reforma agrária. “As terras passam a ter um valor”, diz. “Isso vai prejudicar principalmente os pequenos produtores, que têm poucos recursos e não vão conseguir pagar.”
Na justificativa do PL, é apresentado que a ideia da alteração é permitir que mais áreas sejam regularizadas, o que de certa forma trará também retorno financeiro para ente público, permitindo que esta Empresa de Regularização de Terras Rurais cumpra o seu objetivo. “A proposta tem como pano de fundo a necessidade urgente de apresenta uma solução para aqueles ocupantes, já que hoje o arcabouço jurídico não permite a regularização”, mostra documento.
Na avaliação do Governo do Distrito Federal (GDF), a alteração na Lei nº 5.803/2017 será “positiva, pois visa proporcionar ao trabalhador rural de baixa renda a possibilidade de acesso à propriedade rural para moradia e utilização, por meio da exploração agropecuária, para fins de sustento à família e o cumprimento da função social das propriedades rurais”. A incumbência da medida será da Empresa de Regularização de Terras Rurais, subsidiária da Terracap.
Desmonte no PRAT
O Programa de Assentamento de Trabalhadores Rurais (PRAT), foi criado 22 de julho de 1997, através da Lei n° 1.572. O programa tem como objetivo proporcionar ao trabalhador rural de baixa renda a possibilidade de acesso à propriedade rural para moradia e utilização, por meio da exploração agropecuária, para os fins de sustento à família e o cumprimento da função social das propriedades rurais.
Em texto, o documento do PL traz uma nota técnica da Empresa de Regularização de Terras Rurais (ETR) que informa que diversas áreas foram destinadas pela Terracap, para fins de assentamento de trabalhadores rurais, conforme disposições da lei. Entretanto, muitas dessas áreas não se tornaram assentamentos por falta de viabilidade técnica ou que, mesmo após a criação do assentamento, a Administração Pública encontrou barreiras técnicas para prosseguir com o Programa.
Com isso, a alteração na norma de regularização de terras, de 2017, traria justiça social ao ocupante que cumpre a função social da propriedade, como utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, preservação do meio ambiente e exercício de atividade rural.
Já, para Marco Baratto, na realidade, a ideia do projeto de lei é que, se a área, por consenso, não puder ou não quiser mais ser um assentamento, ela deve ser devolvida à Terracap, que a repassará para a empresa de terras rurais, para organizar o processo de regularização fundiária desse território, com base nos valores e preços de terras estipulados pela política fundiária do DF.
“O problema, do ponto de vista geral, é que essa empresa subsidiária da Terracap foi criada exatamente com o intuito de vender as terras públicas do DF. Eles visam a regularização fundiária por meio da venda, ou seja, gerar recursos, pecúnia e retorno financeiro, livrando-se das terras públicas por meio dessa venda e permitindo que as pessoas se regularizem”, diz o membro da direção do MST DF e Entorno.
Ele ainda destaca que não se estabelece uma análise criteriosa do público-alvo no projeto de lei. Com isso, não incentiva, de fato, a regularização daqueles que são da agricultura familiar, que produzem alimentos, cuidam da natureza e têm um objetivo econômico, produtivo e social, porque não há critérios claros.
“Deixando isso em aberto, tanto as pessoas de boa-fé podem ser regularizadas, quanto as de má-fé também. Ou seja, abre-se uma brecha para que a grilagem de terras e especulação aconteçam, permitindo que grileiros sejam agraciados e premiados com essa lei, já que não há diferenciação.”
Lúcia Mendes explica que o que acontece com os assentados, em prática, é que, como são pequenos produtores de agricultura familiar, eles não terão recursos para pagar um determinado valor por hectares. “Eles sofrem pressão da vizinhança, que inclui muitos projetos de grilagem e parcelamentos irregulares. Essa vizinhança pressiona os pequenos produtores a venderem suas terras. Eles compram da Terracap e revendem. Parcelam tudo. Está subentendida uma forte pressão pela grilagem”, destaca.
Grilagem de terras
Segundo texto do projeto de lei, o valor por hectare para efeito de Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e alienação do imóvel rural deve corresponder ao limite inferior do valor da terra nua na tipologia de uso indefinido, conforme estabelecido na Planilha de Preços Referenciais da Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária no Distrito Federal (Incra).
Ele também revoga o artigo 16, que prevê descontos no valor da terra pública rural em casos de alienação, considerando o tempo de ocupação e a preservação ambiental. Ocupações antigas podem gerar um desconto de 1,5% por ano, com limite de 50%, desde que o período seja de pelo menos 12 meses e reconhecido pela administração pública.
Além disso, propriedades que preservam áreas como Reservas Legais ou Áreas de Preservação Permanente podem obter um desconto de até 40%, se essas áreas estiverem registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e homologadas pelo Instituto Brasília Ambiental (Ibram-DF).
Marco acredita que hoje, para o GDF, criar assentamentos, é gerar custo. “Eles pensam que isso é ruim, porque não consideram que, na verdade, não estão gerando custo, mas investindo. Isso porque, ao criar assentamentos, você incentiva a produção, melhora a agricultura familiar e a produção de alimentos. Com isso, todos ganham, pois há mais alimentos saudáveis, as famílias cuidam dos territórios, evitando a especulação, e o território se mantém na natureza agrária rural, com uma linha agroecológica”, explica.
A presidente da Associação Preserva Serrinha também aponta que o governo ainda trata a regularizações como uma questão imobiliária, não como uma política pública. “De um lado, a Terracap age com mentalidade de empresário, querendo lucrar, e abandona a perspectiva de ser uma empresa pública que deveria promover políticas, e não tentar ganhar dinheiro para depois distribuir bônus aos seus diretores pela venda de patrimônio público”, reitera Lúcia.
Tramitação na CLDF
Durante votação, em setembro, o deputado distrital Gabriel Magno (PT) afirmou que há vários territórios hoje ocupados por acampamentos e, na ocasião, demonstrou preocupação com a garantia dos direitos das pessoas que vivem em terras já destinadas à reforma agrária. “Nós estamos alertando que a votação e o Governo do Distrito Federal – Seagri, ETR, Polícia Civil – possa garantir o direito desses acampados que tem decisão de terras destinadas ao programa de reforma agraria”, destaca o deputado. “
Os deputados governistas consideraram que a proposição já estava pronta para ser apreciada. Roosevelt Vilela (PL), Iolando (MDB) e o Pastor Daniel de Castro (PP) observaram que o conteúdo havia sido alvo de reuniões entre a CLDF e as áreas envolvidas na proposta. “Todos conhecem bem o projeto e a realidade dos ocupantes das terras públicas rurais”, opinou Daniel de Castro. Ele ainda disse que, se fosse o caso, seria favorável a concessão de um desconto maior para quem, comprovadamente, cuida da terra, do ponto de vista ambiental.
Os deputados Chico Vigilante (PT), Dayse Amarilio (PSB), Fábio Felix (Psol) e Ricardo Vale (PT) também votaram contra. Na ocasião, Felix avaliou que muitas pessoas não terão recursos suficientes para pagar pelas áreas que ocupam, “o que pode favorecer a especulação”.
Já Max Maciel (Psol), durante audiência pública para debater sobre o plano de adaptação à emergência climática do DF, reforçou o debate ao afirmar que a venda poderia acontecer, desde que se respeite o tempo da pessoa está lá, além de ser possível um desconto para as pessoas que fizeram o processo de proteção ambiental. “Precisamos respeitar também aquelas ocupações de terra dos movimentos sociais, como Frente de Luta por Moradia (FNL), MST e tantos outros que lutam pela agricultura familiar e que não vão ter dinheiro para pagar essa terra, porque eles aprovaram esse PL sem esse tipo de desconto”, diz Maciel.
“Vamos fortalecer aquele grileiro que comprou a terra de uma pessoa fragilizada, que vai comprar barato porque tem dinheiro até para pagar os estudos ambientais. E, logo, vai chegar o PDOT [Plano Diretor de Ordenamento Territorial] nessa casa e essas pessoas vão fazer o lobby para mudar destinação de rural para urbano e lucrar com essa terra”, afirma.
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