STF inicia julgamento sobre manicômios judiciários; ‘Pessoas com transtornos mentais têm direito à cidadania’, diz representante da AGU
Brasil de Fato
O Supremo Tribunal Federal (STF) começou a julgar, nesta quinta-feira (10), a constitucionalidade da resolução 487 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que determina que a lei federal 10.216 de 2001, conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”, seja efetivada.
Isso significa o fechamento de manicômios judiciários e o atendimento dos pacientes com transtorno mental e em conflito com a lei nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do Sistema Único de Saúde (SUS). A resolução não descarta a possibilidade de internação, mas a restringe apenas a casos excepcionais, além de estabelecer parâmetros para procedimentos jurídicos que envolvam pessoas com transtorno mental.
A resolução não descarta a possibilidade de internação, mas a restringe apenas a casos excepcionais, além de estabelecer parâmetros para procedimentos jurídicos que envolvam pessoas com transtorno mental.
O julgamento avalia um conjunto de ações apresentadas pelos partidos Podemos e União Brasil, além da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), que questionam a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, instituída pelo em maio de 2023 a partir da resolução 487.
O CNJ elaborou a medida após o Estado brasileiro sofrer condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2006 pela morte de Damião Ximenes Lopes, em 1999, depois de sofrer maus-tratos nas dependências de uma clínica psiquiátrica.
Na sessão desta quinta, os ministros apenas ouviram as partes, sem apresentação dos votos. A votação ainda não tem data definida.
Contrários argumentam invasão de competências
A advogada Ana Paula Trento, que representou o partido Podemos, questionou a responsabilidade sobre os eventuais crimes cometidos por uma pessoa com transtornos mentais. “A responsabilidade por esses crimes será de quem?”, indagou Trento, embora na mesma fala tenha reconhecido “a realidade abusiva e violadora dos direitos humanos” nos chamados “manicômios judiciários”.
Já o representante da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), o advogado Marcel Chaves Ferreira, disse que “não é possível extinguir uma doença por resolução”, em referência à medida do CNJ. Ele avaliou que a norma invade competências de ministérios como Saúde e Justiça, além de revogar artigos do Código Penal e da Lei de Execução Penal.
“Me parece muito claro que o CNJ, a pretexto de regulamentar a lei, invadiu aí a seara do Congresso Nacional”, afirmou. “Ela [a Resolução 487] não é uma lei e o CNJ não é um órgão legislativo, portanto obviamente a resolução não pode se sobrepor à lei. Ela não pode se sobrepor ao Código Penal”, disse o advogado, que defendeu que o STF notificasse o Congresso Nacional e o Poder Executivo sobre a inconstitucionalidade da manutenção dos manicômios judiciários e estabelecesse um prazo para que o parlamento pudesse legislar sobre o assunto.
Favoráveis defendem tratamento em liberdade
O representante da Advocacia Geral da União (AGU), Lyvan Bispo dos Santos, advogou pela constitucionalidade da resolução do CNJ e disse tratar-se de “um marco na defesa e promoção dos direitos” das pessoas com transtornos mentais. Ele ainda defendeu a autonomia e competência do CNJ para adotar a medida.
“A leitura simples do artigo 103, parágrafo 4º, inciso 1º da Constituição nos diz que o CNJ tem a legitimidade para editar atos regulamentares que vão orientar atividade administrativa do Poder Judiciário”, defendeu. “Não há aqui para nós uma violação a separação dos Poderes. É preciso deixar claro que essa resolução que vem mais de 20 anos depois da Lei da Política Antimanicomial. Ela tão somente atualiza o nosso ordenamento jurídico e dá orientações aos membros do Poder Judiciário sobre algo que já é realidade lá fora, e do qual o Brasil é signatário de compromissos internacionais que trazem essa obrigação de tratar com mais dignidade e racionalidade as pessoas com transtornos mentais”, disse Bispo. “Cidadania não é um direito, é um privilégio de alguns apenas. Pessoas com transtornos mentais também têm direito à cidadania”, ressaltou membro da AGU.
A subprocuradora-geral da República aposentada Déborah Duprat falou em nome do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e lembrou a história da luta antimanicomial no Brasil, que tomou força em meio ao processo de redemocratização do país. Duprat defendeu que as pessoas com transtornos mentais em conflito com a lei sejam tratadas pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) vinculados ao SUS, e citou estudos da antropóloga Débora Diniz, que confirmou a existência de pessoas com mais de 30 anos de internação dessas instituições, tempo superior à pena prevista para a condenação sofrida, graças ao rompimento dos vínculos familiares e à incapacidade de ressocialização.
A advogada citou o artigo 14 da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, da qual o Brasil é signatário, que determina que a deficiência não pode ser invocada como justificativa para a prisão de uma pessoa com essa condição. E defendeu que essas pessoas, ainda que estejam em conflito com a lei, tenham tratamento digno e em liberdade.
“Foucault, em História da Loucura, lembra que os sistemas penais modernos depois do Iluminismo, não convivem com a ideia da loucura, ou seja, onde entra o transtorno mental, sai o crime, e onde entra o crime sai o transtorno mental. Então, se nós temos ainda normas penais que permitem a privação de liberdade de pessoas com transtorno mental, nós temos normas incompatíveis com a convenção e, portanto, com a Constituição, porque é uma norma incorporada com status de norma constitucional”, avaliou.