Comunidades indígenas sofrem com incêndios e seca no Pantanal: ‘Tudo que você planta, morre’
Brasil de Fato
Em 2020, quando um incêndio queimou mais de 2,5 milhões de hectares no Pantanal, o cacique Negré, do povo Guató, viu o fogo chegar até a sua aldeia, a Barra do São Lourenço, em Corumbá (MS) e consumir a casa de uma moradora. “Foi bem destruidor, foi assustador”, lembra. Em outra casa, onde vivia a mãe do cacique, a fumaça tomou conta e os bombeiros precisaram retirar a moradora. “Quase queimou. O bombeiro chegou na hora, conseguiu salvar”, lembra.
Agora, em 2024, de janeiro a setembro, as chamas já consumiram 1,5 milhões de hectares no bioma e os moradores da aldeia temem viver novamente os dias de agonia. “Tá vindo esse fogo da região da Serra do Amolar e tem um fogo também que brotou lá no rio Cuiabá, perto de uma fazenda”, conta. A Serra do Amolar é uma formação rochosa na fronteira do Brasil com a Bolívia, entre Corumbá e Cáceres, dois municípios do Mato Grosso cuja principal atividade econômica é a pecuária.
Com 741 mil hectares incendiados, Corumbá é o segundo município mais devastado pelo fogo em 2024, ficando atrás apenas de São Félix do Xingu (PA), onde as chamas consumiram 1 milhão de hectares de janeiro a setembro. Os dados são do Monitor do Fogo, da plataforma Mapbiomas.
De acordo com a análise histórica do Mapbiomas, antes de 2020, o último incêndio de grandes proporções na região havia sido registrado em 1999. Naquele ano, as áreas de pastagem em Corumbá eram de 228 mil hectares. Expandindo ano a ano, essas áreas ultrapassaram os 619 mil hectares em 2023. Enquanto as pastagens avançam, o Pantanal seca.
Em 2023, Corumbá alcançou outro marco preocupante: foi o município que mais perdeu superfície de água. A seca, em um bioma tipicamente alagável, resulta no terreno ideal para o alastramento do fogo. Isso porque as planícies alagáveis produzem biomassa, que é altamente combustível, como explica Ane Alencar, diretora de Ciências do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e coordenadora do Mapbiomas Fogo.
“Essas planícies alagáveis têm um solo mais orgânico. Quando ficam secas, esse solo orgânico tem um material super inflamável”, diz. Os dados sobre a seca no Pantanal podem ser acessados neste link.
Na comunidade da Barra do São Lourenço, os moradores convivem com o medo das chamas e os impactos da seca. São 30 famílias, com casas espalhadas pela margem do Rio Paraguai. A comunidade fica a 210 quilômetros da área urbana de Corumbá. O trajeto, feito pelo rio, pode variar de dez a 20 horas, a depender do tipo de embarcação e do nível das águas. Se o rio está cheio, o transporte é mais rápido.
Os moradores vivem da pesca e da agricultura, mas têm necessitado de cestas básicas para garantir o sustento. “A gente não consegue produzir nada na aldeia, porque tá seco. Tudo que você planta, morre”, lamenta o cacique Negré. “Nós somos os maiores guardiões do Pantanal. A gente sobrevive daquilo que tem da natureza, a gente não taca fogo”, conta.
Enquanto a plantação da aldeia mingua, o espaço da pecuária aumenta. Com 1,9 milhão de cabeças de gado, Corumbá tem o segundo maior rebanho bovino do país.
O cacique percebeu o avanço da atividade e as consequências. “O que a gente percebe é que a maioria desses incêndios é causado por mão humana. Não dos indígenas, mas do branco”, diz. Desde 2020, a comunidade convive com a escassez dos frutos, antes abundantes. “Não tá matando só natureza, tá matando nós, povos indígenas. Parece que não consegue nos matar de outra forma, tá matando nós devagarinho”.