‘A única coisa que não podemos perder é a sensibilidade humana’, diz a filha de Che Guevara
Brasil de Fato
Localizada no bairro de Nuevo Vedado, em Havana, Aleida Guevara March chega ao Centro de Estudos Che Guevara dirigindo seu Lada, um velho carro modelo soviético da década de 1980. Ao sair do carro, na semana em que a morte de seu pai completa 57 anos, ela leva na mão um Kufiya, lenço da cultura árabe que se tornou um símbolo das lutas palestinas.
Aleida é uma renomada pediatra cubana de 63 anos. Seu intenso ativismo social lhe valeu vários prêmios internacionais ao longo da vida. É a mais velha entre os quatro filhos do casamento de Aleida March e do lendário líder revolucionário Ernesto “Che” Guevara.
O Centro de Estudos Che Guevara, onde Aleida recebe ao Brasil de Fato, é um lugar repleto de história e memórias familiares. Foi nessa casa que Aleida passou sua infância, junto com sua mãe e irmãos, e onde Che passou seus últimos anos em Cuba até sua partida para o Congo em 1965. Foi nessa casa emblemática que sua mãe decidiu criar o Arquivo Pessoal do Che em 1983, plantando as raízes do que hoje é o Centro de Estudos, um espaço dedicado a preservar e divulgar o pensamento e a obra do lendário líder revolucionário.
Aleida se senta na sala ao lado de um busto de Che. A primeira coisa que destaca é que, neste ano, as várias atividades planejadas em comemoração ao assassinato de seu pai coincidem com o aniversário da escalada genocida contra o povo palestino.
“A causa palestina sempre foi uma causa que defendemos com grande determinação em Cuba. Mas há pouco mais de um ano recebi o título de embaixadora para o retorno à Palestina, então você pode imaginar, sinto uma enorme responsabilidade. Nesse momento pelo qual essas pessoas estão passando, minha função social é, acima de tudo, acompanhá-las e apoiá-las no que for possível”, explica Aleida ao Brasil de Fato.
A indicação foi feita poucos meses antes de começar o atual genocídio contra o povo palestino, quando em maio de 2023 foi realizado o primeiro Fórum Internacional dos Embaixadores do Retorno à Palestina, em Beirute, capital do Líbano. A reunião comemorou o 75º aniversário da Nakba, uma palavra que no mundo árabe significa “catástrofe” e relembra o deslocamento de 750 mil palestinos na criação do Estado de Israel em 1948.
Com o objetivo de lançar uma campanha internacional pelo direito do povo palestino à autodeterminação e pelo fim da ocupação, nessa reunião, oito personalidades receberam a distinção de embaixadores do retorno da Palestina. Entre eles estavam o escritor indiano Tushar Gandhi, bisneto de Mahamat Gandhi, e o advogado sul-africano Mandla Mandela, neto de Nelson Mandela.
A única latino-americana e mulher a receber essa nomeação foi Aleida Guevara, questão que ela vê como uma dupla responsabilidade.
“Nos encontramos com vários companheiros que estão realmente fazendo um trabalho muito importante em diferentes áreas, como cultura e comunicação. Entre todos eles, a única mulher sou eu, portanto, durante o evento, pedi que me permitissem levar a voz das mulheres e crianças palestinas, que estão sofrendo especialmente com a crueldade do genocídio. Portanto, como podem imaginar, sinto uma grande responsabilidade em meu papel, de lutar pela Palestina até o fim”.
Um ano após o início da escalada genocida contra o povo palestino, todos os relatórios oficiais sobre o horror a que milhões de pessoas estão sujeitas são apenas relatórios provisórios de um inferno que se renova a cada dia. Mais de 41.870 pessoas foram assassinadas em Gaza, enquanto outras 740 foram assassinadas na Cisjordânia – um território que não está formalmente “em guerra”. Dessas pessoas, estima-se que mais de 16.900 são crianças. Pelo menos 1.000 crianças foram amputadas. cifras ainda provisórias, pois cerca de 21.000 jovens estão desaparecidos.
“O que está acontecendo não é uma guerra”, diz Aleida. “Como se pode falar em guerra quando o bombardeio constante é contra a população civil? Como se pode falar em guerra quando mais da metade dos palestinos mortos são mulheres e crianças?”, pergunta com uma indignação difícil de esconder.
“É preciso chamar as coisas pelo nome: o que está acontecendo é genocídio, e o que está acontecendo não começou há um ano. A Palestina está sob a ocupação sangrenta de Israel há 76 anos. Um regime de ocupação que impôs um apartheid contra o povo palestino”.
Em qualquer lugar, em qualquer continente
Ao falar, Aleida ressalta repetidas vezes que “a sensibilidade humana é a única coisa que não podemos perder”. A herança humanista que permeia suas palavras é clara. Uma concepção que durante décadas esteve no centro da Revolução Cubana e que se mantém até hoje, em um momento em que a ilha está passando por situações muito difíceis.
“Não estou falando de ideologia, estou falando de sensibilidade como seres humanos. Vejam a diferença. E isso faz com que a pessoa que é capaz de sentir indignação quando uma criança, uma mulher, um idoso é assassinado em qualquer lugar do mundo, levante a voz. Porque o que está acontecendo lá também está acontecendo hoje no Líbano, ou com os iemenitas, ou com os iraquianos. Em outras palavras, isso vai crescer. Isso é algo que eles não podem parar, eles não podem parar”.
Suas palavras são direcionadas para a hipocrisia internacional. Ao mesmo tempo em que Netanyahu fazia seu discurso na Assembleia Geral da ONU, ordenava bombardeios em Beirute, a capital do Líbano, que já mataram mais de 2 mil pessoas.
“Ninguém diz ao governo israelense “ei, pare com isso, você não pode continuar fazendo essas coisas”. E os sancionam. Cuba é sancionada pelos Estados Unidos, a Venezuela é sancionada pelos Estados Unidos, e Israel não. Nunca fizemos nada parecido com isto, nem em sonho. Somos sancionados porque eles dizem que não respeitamos os direitos humanos. E Israel respeita algum direito humano? Vamos, alguém me diga!”, exclama.
Che na Palestina
Apenas seis meses após o triunfo da Revolução Cubana, o Che Guevara liderou uma missão oficial que fez uma extensa viagem pela Ásia, norte da África e Iugoslávia entre junho e setembro de 1959.
O objetivo da viagem era estabelecer uma aproximação política com os países que haviam participado da Conferência de Bandung em 1955. Promovida pelos então presidentes do Egito e da Índia, Gamal Abdel Nasser e Jawaharlal Nehru, a Conferência de Bandung havia reunido delegações de 29 países da África e da Ásia que tinham conquistado recentemente a independência ou lutavam contra o colonialismo.
O primeiro país ao qual a delegação cubana chegou foi o Egito, que na época era governado pelo presidente Nasser, no poder após liderar um movimento que, em 1952, derrubou o regime monárquico e buscou romper com a dependência britânica.
Sob uma ideologia anti-imperialista, ele acreditava que as fronteiras que dividiam os países da região eram, na verdade, um produto da intervenção imperialista que contava com a cumplicidade das monarquias locais. Essa posição levou Nasser a ser visto como um dos principais expoentes do “pan-arabismo” e do “socialismo árabe”.
“Meu pai conta que aqueles dias no Egito foram muito intensos. Che e Fidel estavam sempre conspirando, vendo como poderiam ajudar outros povos, tentando ajudar outros movimentos revolucionários”, diz Aleida.
“Parece que essa viagem causou uma grande impressão no Che, apesar de ele não ter deixado muita coisa escrita. Embora todo o trabalho que Cuba realizou posteriormente com o Movimento dos Não Alinhados mostre uma relação muito próxima.”
Foi nessa viagem que Nasser levou Che para visitar os campos palestinos na Faixa de Gaza. A “questão palestina” era vista como um dos “problemas centrais da questão árabe”. Os países da região haviam se oposto à divisão da Palestina histórica e à criação do Estado de Israel em 1948.
“Há entrevistas com os antigos líderes da resistência palestina na época. Eles dizem que quando meu pai chegou a Gaza, eles queriam mostrar a ele o quanto as pessoas estão sofrendo. Milhares de famílias haviam sido deslocadas e viviam em condições miseráveis. E dizem que meu pai respondeu: “Não, não preciso ver isso, quero ver o lugar onde as pessoas estão se preparando para a resistência: as fábricas de armas e os locais de treinamento”.
Aleida diz que é difícil saber se a anedota conta exatamente o que aconteceu. No entanto, afirma que uma coisa é indiscutível: no imaginário coletivo, Che sempre foi uma figura associada à resistência do povo e ao anti-imperialismo.
“O que posso dizer com certeza é que meu pai foi um dos primeiros líderes revolucionários que falaram sobre a Palestina em todo o mundo. Até mesmo na ONU. Essa é uma das razões pelas quais Che é tão conhecido em todo o mundo árabe. Hoje, Che faz parte dos símbolos da resistência ao sionismo e ao imperialismo em toda a região. Porque Che também é um homem de outro país que vai defender outra terra e morre defendendo seus ideais em outras terras do mundo.
Revolução é nunca mentir
Em tempos tão dramáticos como os que a humanidade atravessa atualmente, Aleida afirma que é cada vez mais urgente resgatar os exemplos de Che. Alguém que nunca foi motivado pelo que lhe era conveniente fazer ou dizer, mas que agia de acordo com o que considerava justo e ético. Com um riso impossível de não associar ao do Che, ela relembra a definição precisa que o escritor uruguaio deu ao pai como “um homem que tinha essa característica particular de dizer o que pensava e fazer o que dizia”.
“Ele tinha uma ética revolucionária extraordinária. Isso é muito importante para que você possa dar o tom, para que possa dizer “sigam-me, temos que fazer isso e vamos fazer”. Mas o primeiro a fazer isso é você e o primeiro a seguir esse caminho é você. De certa forma, meu pai tem alguns escritos muito bonitos, mas eu os torno mais, digamos, sintéticos. Há uma expressão dele que eu adoro. E mais ou menos assim, ele diz que é mais fácil fazer você seguir do que ter de empurrar. Viu? Você não precisa dizer a eles que têm de fazer isso. Não. Faça isso porque eu estou fazendo. E faça isso porque é assim que vamos fazer. E isso convence as pessoas. As pessoas seguem esse exemplo. Porque elas estão vendo, elas estão chegando a ele. Talvez seja por isso que ele é um dos líderes que romperam fronteiras em diferentes partes do mundo.”
Entre as várias anedotas de Che, há uma que ele diz lembrar com especial carinho. Em uma conversa com Fidel, Aleida insistentemente lhe pediu que lhe contasse sobre uma discussão ocorrida entre os dois. Depois de muita insistência, Fidel lhe contou sobre um episódio ocorrido no México enquanto preparava o lendário grupo que mais tarde desembarcaria do Granma (o jornal oficial do partido comunista cubano).
Naquela época, uma batida policial os havia feito prisioneiros. Todo o plano estava em risco. Fidel deu a ordem para que ninguém falasse de política.
“O que você acha que seu pai fez?” Fidel lhe perguntou sorrindo. “Ele não só falou o que pensava, como também entrou em uma discussão com o capanga da prisão sobre a personalidade de Stalin. Como resultado, todos nós fomos libertados, exceto seu pai, que era comunista. E quando fui à prisão para discutir com ele sobre o motivo de ele não ter cumprido uma ordem direta, percebi que seu pai não era um bom mentiroso, minha filha. Ele não conseguiria, mesmo que sua vida dependesse disso, ele não conseguiria”.
E eu perguntei: “Então o que você fez?” “Tirá-lo da cadeia, o que eu vou fazer? Não tem outro jeito, não é?”