A bola e o fuzil: 20 anos da Minustah e o jogo infame da CBF no Haiti
Brasil de Fato
Esse texto emerge diante da “des” comemoração de um fato infame tão crucial quanto negligenciado pelo noticiário político, e ainda mais pelo noticiário esportivo: os 20 anos da intervenção militar (apesar do eufemismo de “missão de paz”) do Brasil no Haiti, e a partida amistosa da CBF por lá. Novamente, escrever na intersecção entre futebol e política implica exercer uma história a contrapelo dos fatos mais superficiais e oficialistas.
Sobre o futebol, é importante contextualizar não somente que a seleção brasileira vinha de uma grande euforia ao vencer a recente Copa do Mundo de 2002 (até hoje a última) e mais recente ainda por se inserir no ciclo pré-Copa do Mundo de 2006 marcado por ainda mais euforia de resultados e desempenhos dentro de campo. Vide a troca de treinadores de Felipão para Parreira junto da notória evolução (na seleção e principalmente no clube) de Ronaldinho Gaúcho com sua arte e carisma. O que fez aquele time ser apelidado de “quadrado mágico” por ele dividir as demais posições do meio e ataque com Kaká, Ronaldo e Adriano, e ainda um “reserva de luxo” como Robinho também em excelente evolução.
No entanto, em minha modesta rebeldia adolescente, aquela euforia do pentacampeonato de 2002 já havia se dissipado e alimentado um crescente distanciamento da seleção brasileira. Evidências haviam de sobra fora de campo quando, na prática, a seleção brasileira foi tão apropriada pela CBF e seu contrato comercial com a Nike que condicionaram que a imensa maioria de seus amistosos fossem no Atlântico Norte, movidos muito mais por interesses comerciais do que esportivos contra seleções de qualidade duvidosa, em sedes aleatórias distantes da torcida brasileira no Brasil e dentro de campo até mesmo com crescentes suspeitas em muitos torcedores de convocações e escalações movidas por “esquemas de empresários”.
Exceto nesse caso de agosto de 2004, ocorrido no Haiti, quando emergiu de forma ainda mais aleatória e excepcional o interesse “humanitário”. Penso que de lá para cá a revolta com a CBF se massificou em diversos outros torcedores e não preciso retomar os inúmeros motivos. Ao mencionar a baixa repercussão midiática, sequer pude encontrar algum texto que fosse além de típica reportagem esportiva de mídia comercial sobre a partida com a “fria” narração dos fatos dentro de campo (como se fosse apenas mais uma partida) com a goleada de 6 a 0 e fora de campo mencionando apenas a alegria da partida como oposta à guerra do contexto. Contudo, aqui o resultado é o que menos importa. Assim como novamente dentro de campo o reencontro das seleções de Brasil e Haiti pela Copa América de 2016 (com infame sede nos Estados Unidos) e nova goleada, dessa vez por 7 a 1. Novamente, aqui o resultado é o que menos importa.
Já sobre a política, o pentacampeonato foi conquistado em julho de 2002, no “apagar das luzes” do governo FHC (quem se eternizou pela declaração “esqueçam o que escrevi…”). Quem, aliás nunca teve uma imagem pessoal “futebolizada”, apesar da imagem icônica das cambalhotas do Vampeta na rampa do Planalto em que o “príncipe da sociologia” aparece como um constrangido coadjuvante diante do improviso tão icônico de brasilidade da seleção próxima aos braços do povo naquele momento. No final daquele ano foi eleito o novo presidente Lula de forma inédita, após outras 3 derrotas eleitorais anteriores, e junto de um mote de campanha que “a esperança venceu o medo”.
Nesse breve texto, sem espaço para analisar a política externa e a política esportiva do primeiro governo Lula, cabe apenas mencionar a intersecção entre ambas a partir de abril de 2004, com o início das operações militares no Haiti, que duraram até 2017. Com efeitos nefastos à população local tão dizimada por extermínios neocoloniais em seus dois séculos de independência política (pioneira na América Latina) e drasticamente reatualizados e rotinizados em uma dinâmica neoliberal.
Ainda assim, tanto ontem como hoje seu povo segue bravamente resistindo. Novamente com um breve apoio em minhas memórias pessoais, com o passar dos anos durante minha formação política marxista fui aos poucos somando a revolta movida por motivos do futebol (conforme comentado em parágrafo anterior) a outros aspectos tão mais complexos quanto mais revoltantes. E aqui menciono 3 interligados:
a) A diplomacia Sul-Sul (ou “ativa e altiva”) teve muita propaganda institucional, embora na prática bem menos integração regional e solidariedade entre os povos como seria de se esperar. Vide o início dessa operação militar ter sido interpretada como uma barganha para que se conquistasse uma cadeira no tão restrito Conselho de Segurança da ONU. O que se consumou como uma esperança frustrado até hoje.
b) A suspeita, alimentada desde 2013 pela crescente militarização dos conflitos nas principais cidades brasileiras, de que o treinamento adquirido nas favelas haitianas seria reaproveitado para aplicação por aqui. Sintomático que o comandante daquela intervenção militar, general Heleno, tenha sido por tantos anos um nome de confiança de Bolsonaro.
c) E principalmente a esperança inicial que foi aos poucos dissipando em ilusão com o PT e o governo Lula. Especialmente em seu segundo mandato, quando teve alta popularidade e crescimento econômico, e mesmo assim lhe faltou ousadia de mobilizar suas leais bases eleitorais para bancar enfrentamentos contra enclaves autoritários como os dirigentes esportivos e os militares, preferindo um instável equilíbrio de compromissos em uma aposta pela governabilidade sendo que, desde 2016, nos dois enclaves ficaram claras as evidências que abandonaram o governo e o partido ao apoiarem o golpe contra Dilma em favor de uma restauração neoliberal no Brasil. Principalmente com os segundos com notória adesão ao governo Bolsonaro eleito em 2018.
Por fim, após minha formação complementar em alguns estudos de Defesa e principalmente de Segurança, reforço a análise sobre uma infame e recorrente dinâmica da formação social brasileira pela qual “pacificação” emerge como eufemismo para o silenciamento dos oprimidos enquanto a “marcha do progresso” precisa “passar a boiada”.
E com mais ironia somada à revolta, se pelo futebol a imagem hegemônica do Brasil para o mundo é a de “país da alegria”, novamente por meio do futebol foi dada uma modesta contribuição para ser o “país da anistia”, como em inúmeras outras infames vezes.
*Fábio Perina é formado em Ciências Sociais e Educação Física (bacharel e licenciatura). Mestrado em Educação Física. Recém ingressante no Doutorado em Educação Física com ênfase em Sociologia do Esporte. Todos os cursos pela Universidade Estadual de Campinas
**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.