Corte de gastos contraria agenda política que elegeu Lula, diz integrante do Inesc
Brasil de Fato
A proposta do governo de cortar parte dos seus gastos para sustentar as metas do arcabouço fiscal contraria a agenda política que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2022. É o que diz Nathalie Beghin, economista e integrante do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), em entrevista ao Brasil de Fato.
Beghin é contra a revisão de gastos aventada pela pela equipe econômica principalmente porque, até agora, a maior parte das medidas em estudo prejudicará a camada mais pobre da população.
Lula tem em seu discurso a promessa de “colocar os pobres no Orçamento e os ricos no Imposto de Renda”. Seu governo, no entanto, adiou a reforma tributária dos tributos sobre rendimentos justamente para revisar seus gastos.
Para Beghin, ele optou por um caminho mais fácil ante à encruzilhada criada por ele mesmo com a sanção do novo arcabouço fiscal.
“Mirar os gastos é a solução mais fácil, porque a imensa maioria da população, que é profundamente afetada pelos cortes orçamentários, não tem ‘representante’ que possa pressionar o Congresso Nacional e o Executivo”, afirmou ela. “Penso que a maioria das pessoas que votou no atual presidente não o elegeu para diminuir os recursos destinados às áreas de saúde, educação e assistência social.”
Confira abaixo a entrevista completa de Beghin sobre a proposta de revisão de gastos.
As mesmas perguntas foram encaminhadas pelo BdF a David Deccache, economista e assessor econômico da liderança do Psol na Câmara dos Deputados. A entrevista com Deccache está disponível aqui.
Brasil de Fato: Existe conciliação entre arcabouço e gastos obrigatórios do governo?
Nathalie Beghin: Dificilmente. O país tem uma enorme dívida social, ambiental, racial e com as mulheres, que se agrava com os efeitos devastadores das mudanças climáticas, pois as pessoas que mais sofrem com os efeitos do aquecimento global são as negras, as mulheres, as periféricas e os povos indígenas e as comunidades tradicionais. O Estado precisa ser capaz de enfrentar esse déficit e avançar promovendo a realização de direitos, como acordado na nossa Constituição.
Vale manter o arcabouço a qualquer custo?
Depende quem vai pagar a conta. Se forem as mulheres, as pessoas negras e periféricas, os povos indígenas, os e as trabalhadoras, ou seja, a absoluta maioria da população brasileira, não há arcabouço que se justifique. Mas, se o custo a ser pago for para quem tem muito, aí faz sentido. Se alguns setores deixassem de ser agraciados com generosas benesses – como não pagar impostos ou pagar muito pouco, receber vultosos incentivos fiscais que sabidamente são ineficientes, não pagar as dívidas tributárias e previdenciárias, não pagar multas – haveria bilhões de recursos disponíveis para a realização de direitos da maior parte da população.
Mirar nos gastos é mesmo a solução? Talvez seja a solução contábil para o arcabouço fiscal, mas é a melhor solução para o país?
Mirar os gastos é a solução mais fácil, porque a imensa maioria da população, que é profundamente afetada pelos cortes orçamentários, não tem “representante” que possa pressionar o Congresso Nacional e o Executivo. Não há um dirigente das maiorias empobrecidas que possa ir a Brasília chantagear as autoridades, como fazem os representantes dos bancos e do setor empresarial
O que acha das medidas aventadas pelo governo?
Penso que a maioria das pessoas que votou no atual presidente não o elegeu para diminuir os recursos destinados a saúde, educação e assistência social; também não para diminuir seus rendimentos oriundos de transferências de renda, de aumento do salário-mínimo e de benefícios trabalhistas como o seguro-desemprego. Essa era a agenda do governo anterior.
O que acha de o governo adiar a reforma do imposto de renda para revisar seus gastos?
Entendo que não é compatível com os anseios das maiorias. Essa é uma demanda das minorias brancas ricas e masculinas que capturam o espaço público e os meios de comunicação de massa na defesa exclusiva de seus interesses. E convencem grande parte da população de que trata-se de verdade universal.
Nos últimos anos, no Brasil, os muito ricos ficaram mais ricos, enquanto mais de 90% da população viu sua renda estagnar em termos reais. Ainda assim, espera-se que sejam essas pessoas as que paguem a conta do ajuste. Isso é profundamente injusto e não há argumento que justifique tal situação.
Assim, ao contrário do que é proposto, é preciso aumentar o gasto para dinamizar a economia. Além disso, urge promover maior solidariedade, isto é, fazer com que as elites abastadas paguem sua parte, recolhendo impostos cada vez mais progressivos, pagando as dívidas devidas, deixando de receber incentivos.