‘O fascismo não dorme’, diz primeira vereadora negra eleita em Lajeado (RS)

Brasil de Fato

“Durante toda a minha vida estive ligada aos livros, à escrita, à literatura. Com o passar do tempo, se tornou um modo de ganhar a vida. Ser professora e estar vinculada à formação de leitores é a minha história”, ressaltou a professora universitária Rosane Cardoso, ao ser homenageada em 2023, na 17ª Feira do Livro de Lajeado. 

Nas eleições deste ano, com 1.055 votos, Rosane, 62 anos, foi eleita a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Lajeado, pelo Partido dos Trabalhadores (PT). “Acho que a eleição significa que mais pessoas estão ansiosas por mudanças e, principalmente, por menos radicalismos e ideias pré-concebidas”, afirma em entrevista ao Brasil de Fato RS

Rosane, logo ao se formar, começou a trabalhar na Univates, na docência. Seu envolvimento político começou em movimentos sindicais, quando trabalhou como auxiliar de enfermagem. Sua filiação partidária acontece anos depois, com os eventos de ataque à democracia. “Comecei a achar que não bastava só falar. É preciso se envolver mais, buscar espaços onde podemos ser ouvidos por mais pessoas. A Câmara, espero, pode ser esse espaço”, pontua.

Com uma população de 93.646 pessoas, Lajeado, região do Vale do Taquari, foi fortemente atingida nas enchentes que atingiram o estado deste setembro do ano passado. De acordo com Rosane, a pauta trouxe uma grande responsabilidade para as proposições a serem debatidas na Câmara, o que, aliás, já deveria estar ocorrendo e não está, argumenta. “Este é um assunto ainda muito delicado na cidade e região. O trauma é coletivo”.

Entre as pautas que irá levar para o mandato estão as questões ligadas à educação, assim como inclusão e diversidade. 

Abaixo a entrevista completa

Brasil de Fato RS: Tu foste eleita a primeira mulher negra na Câmara de Vereadores de Lajeado, uma cidade que é tida como conservadora e até mesmo racista. Qual o significado e importância que a tua eleição traz? 

Rosane Cardoso:  Embora ainda se tenha muito o que conquistar, não se pode negar que o cenário tem mudado. Mais vozes têm sido ouvidas e mais as comunidades subalternizadas têm lutado por mudanças. Hoje, já se discute abertamente o racismo e outros preconceitos nesta cidade. Falar sobre essas questões têm sido uma constante na minha trajetória pessoal e acadêmica. Acho que a eleição significa que mais pessoas estão ansiosas por mudanças e, principalmente, por menos radicalismos e ideias pré-concebidas.

Queria que tu nos falasse um pouco da tua história e trajetória. Como nasceu o teu interesse pela política.

Eu nasci em Estrela, filha de operários. Sempre fui uma leitora voraz e passava todo o meu tempo livre lendo. Filha mais nova de três irmãos bem mais velhos, ficava bastante sozinha. Aprendi muito nos livros e tive sorte em encontrar professoras que sempre incentivaram e que, sobretudo, faziam questão que seus alunos e alunas tivessem leitura crítica sobre os textos. Fui auxiliar de enfermagem por 12 anos e entrei para faculdade aos 26 anos. Assim que me formei, comecei a trabalhar na Univates. O resto é história.

Sempre fui politizada, me envolvi em movimentos sindicais (na época de enfermagem) e sempre me envolvi com pautas sociais. Mas não tinha nenhuma filiação partidária, nem me interessava muito. Mas sempre votei na esquerda por convicção da necessidade de consciência de classe. Só bem recentemente, como os eventos contra a democracia, que comecei a achar que não bastava só falar. É preciso se envolver mais, buscar espaços onde podemos ser ouvidos por mais pessoas. A Câmara, espero, pode ser esse espaço.


“O fato de ser uma representatividade negra na Câmara de uma cidade com Lajeado já impõe uma responsabilidade” / Foto: Arquivo Pessoal

Tu comentastes que em Lajeado se discute abertamente o racismo, de que forma os debates acontecem? Nesse sentido a importância de uma educação antirracista

Talvez não seja tão abertamente quanto se gostaria, mas as escolas estão abrindo cada vez mais espaço para uma educação antirracista; a universidade tem vários projetos de inclusão racial, entre outras, grupos têm se mobilizado. Não estamos nem perto de resolver o problema, mas, pelo menos, já se tem claro que, sim, o problema existe.

Como foi a receptividade da campanha 

Foi ótima. A receptividade foi imensa, inclusive de pessoas de partidos opostos. Acho que, numa eleição municipal, as pessoas se voltam mais para a individualidade do que para a questão partidária. 

O Brasil terá, a partir de 2025, total de 26.789 vereadores que se declaram negros (pretos e pardos) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São 786 a mais em relação a 2020 quando foram eleitos 26.003 vereadores. Como tu analisas esse cenário e o que precisa ser feito para ampliar essa participação? Quais são os principais desafios?

O crescimento é bem significativo. Para ampliar, a educação, para mim, é o grande caminho. Isso envolve politização, conhecimento, acesso. São trajetos que levam à representatividade, à segurança de argumentar e poder dizer o que precisa ser dito. Também a violência política contra pessoas negras, trans, periféricas precisa se combatida com rigor. O fascismo não dorme e tenta, de todas as formas, seguir dominando o cenário que garante o seu poder.

A cidade de Lajeado foi fortemente impactada nas três enchentes que atingiram o estado desde o ano passado. Quais impactos essa pauta trouxe para a atual eleição?

Esta pauta trouxe uma grande responsabilidade para as proposições a serem debatidas na Câmara, o que, aliás, já deveria estar ocorrendo e não está. Não foi uma pauta que apareceu tanto nas propostas de candidatos e candidatas, pois existe uma questão maior a ser debatida e que cabe ao Executivo, isto é, estudo da situação para, ao menos, evitar catástrofes na mesma dimensão das duas últimas cheias. Este é um assunto ainda muito delicado na cidade e região. O trauma é coletivo.

Uma frase tua: “O fascismo não dorme e tenta, de todas as formas, seguir dominando o cenário que garante o seu poder”. Como combatê-lo?

Com educação. Educação para o social, contra o preconceito, com denúncia, com conscientização, não se calando ante as injustiças e os descalabros. Pode parecer utópico, mas é justamente este um dos objetivos do fascismo: fazer pensar que não adianta lutar, fomentar políticas do conformismo, uma educação acrítica e o esmagamento da consciência de classe.

Um mensagem final?

Estou ansiosa pelo novo desafio. Não tenho ilusões sobre ser fácil. Não teria como ser. Mas está jornada é algo que eu escolhi, em uma fase da vida em que quero fazer algo novo, em que quero transformar palavras em ações. Acho que posso. O fato de ser uma representatividade negra na Câmara de uma cidade com Lajeado já impõe uma responsabilidade. Ao mesmo tempo, espero que seja um incentivo. Precisamos de mais mulheres (brancas, indígenas, negras, quilombolas, trans, etc.) em espaços de poder.

Da Redação