Por que o Recife não investe em assessoria técnica para melhorar casas de famílias pobres?

Brasil de Fato

O reconhecimento do Direito à Moradia é uma conquista social resguardada constitucionalmente pelo direito individual de acesso à moradia digna, que visa corrigir o déficit habitacional no Brasil. O déficit quantitativo abrange famílias que vivem em condições precárias e improvisadas, famílias que compartilham de uma mesma habitação com outro grupo familiar e também as famílias que pagam altas taxas de aluguel. Este indicador busca estimar a necessidade de substituição ou construção de novas habitações.

Associada a essa questão, há o problema da inadequação de domicílios (déficit qualitativo), que corresponde à insuficiência de serviços e infraestrutura urbana (energia elétrica, abastecimento de água, esgotamento sanitário e coleta de lixo), inadequação edilícia (ausência de banheiro, insuficiência de dormitórios e armazenamento de água, piso e cobertura inadequados) e fundiária urbana. Portanto, este índice aponta para a necessidade de melhorias na habitação.

Segundo a Fundação João Pinheiro, em 2022, a inadequação de domicílios (26,5 milhões de unidades) superou o déficit habitacional (6,2 milhões de moradias). Dessa forma, os investimentos em urbanização, regularização fundiária e melhoria das moradias mostram-se mais necessários do que investir em novas unidades.

Nesse sentido, a Lei Federal nº 11.888/2008, conhecida como Lei de Assistência Técnica para Habitação de Interesse Social (Athis), assegura que todo cidadão com renda familiar mensal de até três salários-mínimos (salários até R$4.236 em 2024) tenha acesso à assistência técnica pública e gratuita para elaboração do projeto e execução das obras de reforma, ampliação ou regularização fundiária necessárias à melhoria de suas condições de moradia. Entretanto, segundo o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/BR), após 16 anos de existência, a Lei de ATHIS só foi regulamentada por 20 dos 5.570 municípios brasileiros – nenhum deles em Pernambuco.

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No caso do Recife, em 2014, existiam 545 Comunidades de Interesse Social (CIS), denominação dada pelo poder público municipal para os assentamentos precários, as quais abrangiam 53% da população do município, ocupavam cerca de 30% de sua área construída e 20% do seu território (Atlas das Infraestruturas Públicas em CIS do Recife, 2014).

Isto significa que metade dos recifenses acessam à moradia por meio da autoconstrução, muitas vezes em locais sujeitos aos riscos de alagamento ou deslizamento, sem contar com a assessoria técnica de um arquiteto ou engenheiro. Esta situação aprofunda as condições de vulnerabilidade socioambiental deixando esta população muito mais suscetível aos desastres que vem se intensificando com o agravamento das emergências climáticas.


Verticalização de casas autoconstruídas; becos estreitos comprometem a iluminação interna; ambas no bairro da Várzea, Recife / ObservatórioPE

Então o que falta para a Athis ser implementada no Recife? Como utilizá-la para efetivar o Direito à Moradia

Historicamente, as políticas públicas habitacionais concebidas pelo Estado brasileiro buscam implantar programas com o objetivo de reduzir o déficit de moradias, dando ênfase às estratégias para o enfrentamento de questões econômicas por meio da provisão de novas residências, tais como o Programa Minha Casa Minha Vida. Por outro lado, o enfrentamento da inadequação habitacional, embora receba investimentos públicos, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC/UAP), ainda é um grande desafio, pelo alto nível de complexidade para alcançar a urbanização integrada.

A demanda por habitação é contínua, em consonância com a gravidade das condições socioeconômicas da maioria da população. Mas a questão se agrava por conta da omissão do poder público que assume maior compromisso com os setores empresariais da construção civil, na produção da “cidade formal”, do que com os moradores da “cidade informal”, na promoção do amplo acesso ao Direito à Moradia. 

Lei Municipal nº 18.863/2021 regulamenta a Política Municipal de Habitação de Interesse Social (PMHIS), como previsto no Plano Diretor do Recife (Lei nº2/2021, Art. 171) e institui os elementos para elaboração do Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS). Entre as diretrizes da política está a “oferta de serviços de assistência técnica, jurídica, social e urbanística gratuita à população com renda familiar de até três salários para Habitação de Interesse Social” (Art. 4º / XXIV).

A questão é a operacionalização do PLHIS por meio de uma gestão participativa. O Plano define metas, linhas e sublinhas programáticas quadrienais, previstas até o ano de 2037, aprovadas pelo Decreto nº 35.235/2021 que prevê que elas devem ser avaliadas anualmente e revisadas a cada quatro anos. Mas se algumas estão sendo realizadas, outras ainda não têm nem previsão, como a implantação de um programa de ATHIS.

Desde 2015, a Lei nº 18.189/2015 (complementada pela Lei nº 19.081/2023) cria o Programa de Melhoria Habitacional para execução de benfeitorias pelo poder público nas residências de famílias de baixa renda do Recife. Entre essas, cita: revestimento de parede, banheiro, contrapiso e revestimento cerâmico do piso, telhados, retirada/colocação de portas e/ou janelas e instalações elétricas (Art. 3º). E autoriza a contratação de serviços de melhoria habitacional, de fiscalização e supervisão desses serviços (Art. 4º). Entretanto, essas ações têm sido implementadas de forma pontual, em geral, em áreas impactadas por intervenções na infraestrutura urbana.

O município também criou outro Programa vultoso, com recursos captados junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), batizado como ProMorar. Tem o objetivo de garantir acesso a serviços, infraestrutura e habitação para áreas pré-selecionadas. Uma iniciativa importante da Prefeitura em direção a ampliação da urbanização integrada de assentamentos precários, mas ainda desarticulada de instâncias participativas.

Promover a urbanização integral de ZEIS tipo I (assentamentos consolidados) ao invés de priorizar a provisão habitacional por meio da construção de novos conjuntos é, sem dúvida, o caminho mais acertado. Além de garantir o acesso das famílias às oportunidades de trabalho, possibilitam a sua permanência onde ocuparam e construíram os vínculos identitários com o lugar e laços de solidariedade.

Neste sentido, a promoção de programas relacionados à melhoria habitacional, cuja ênfase recai sobre a inadequação domiciliar, pode ser um caminho para complementar os investimentos em infraestrutura e conquista da moradia digna evitando os reassentamentos.

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Melhoria habitacional como componente do acesso ao direito à moradia

Geralmente as intervenções públicas promovem a oferta de serviços e infraestruturas, mas deixam a habitação propriamente dita a cargo de cada morador.

É evidente que o foco no sistema de mobilidade, equipamentos comunitários e praças, abastecimento de água, energia, iluminação pública, drenagem, esgotamento sanitário, coleta e destinação de lixo são fundamentais para melhorar as condições de habitabilidade das famílias. Entretanto, a melhoria habitacional “da porta para dentro”, por meio de intervenções construtivas, em geral de baixa complexidade e de rápida execução, contribui enormemente para as famílias, sobretudo as de menor renda, terem a sua moradia digna.


Reforma de banheiro em imóvel localizado em Nova Descoberta, zona norte do Recife / Dona Obra Impacto Social/divulgação

Tais intervenções promovem a redução da insalubridade dos ambientes com serviços de reboco, pintura, execução de piso, aplicação de revestimento cerâmico, instalações elétricas e hidrossanitárias, abertura de vãos para instalação de janelas, melhorando a ventilação e iluminação do ambiente, revisão de telhados e organização de layout interno da habitação. 

Como o poder público não tem ofertado esses serviços, a promoção de ações de melhoria habitacional tem sido alvo dos próprios profissionais de arquitetura e urbanismo que tem interesse em atuar no campo da arquitetura social entendendo que há espaço para este campo contribuir como ferramenta de transformação social.

Para suprir a omissão do poder público, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), tanto em nível nacional, quanto de cada estado da federação, tem dado uma importante contribuição para ampliar a atuação de arquitetos na promoção de ATHIS. Desde 2015, o CAU BR tem destinado 2% do seu orçamento para ações de ATHIS, por meio de editais de fomento que ultrapassou os R$ 23 milhões (CAU-BR, 2023).

Em termos de escala, não se alcança os resultados necessários, mas promove o debate e estimula o interesse dos arquitetos e urbanistas neste campo de atuação. Também nas universidades, sobretudo as públicas e as confessionais (como as católicas), os projetos de extensão universitária têm ampliado as possibilidades de aprendizagem em construção coletiva com as comunidades de assentamentos precários, de forma interdisciplinar. Eles buscam articular os diferentes saberes, envolvendo docentes e discentes da graduação e da pós-graduação.

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É relevante destacar a experiência de algumas universidades brasileiras que implantaram cursos de especialização em ATHIS, com inspiração nas residências médicas, quando profissionais experimentam a vida profissional ainda sob a orientação de professores, antes de atuarem autonomamente como médicos especializados.

Esses projetos de extensão e os cursos de especialização em ATHIS têm fortalecido a pressão pela regulamentação da Lei de ATHIS pelos estados e municípios para ampliar a possibilidade de atendimento à população pobre que precisa da contribuição dos arquitetos e engenheiros para alcançarem sua moradia digna. 

Também vale mencionar o número de coletivos, grupos que se organizam em cooperativas e ações de Organizações Não Governamentais, bem como os Negócios de Impacto Social em ATHIS. A abrangência do modo de atuação varia, desde a assistência para construção de espaços comunitários coletivos (praças, hortas, bibliotecas etc.) aos projetos arquitetônicos de reforma e/ou ampliação e até a execução de obras.


Reforma de banheiro em imóvel localizado em Nova Descoberta, zona norte do Recife / Dona Obra Impacto Social/divulgação

As intervenções de melhoria habitacional têm sido realizadas por essas organizações, que atuam de forma independente, diretamente dentro dos territórios vulneráveis, estabelecendo vínculos com instituições locais e com os moradores.  A execução do serviço de assessoria técnica é personalizada e, em geral, são viabilizadas através de duas frentes independentes e complementares: por parcerias com outras instituições e empresas privadas que subsidiam as reformas para famílias incluídas na faixa de extrema pobreza ou a partir da venda direta das reformas, com crédito social para famílias que querem promover benfeitorias mediante contratação acessível do profissional técnico.

No cenário atual, mais de 70 grupos e organizações espalhadas pelo Brasil compõem a articulação Colabora Habitação, que tem como principal objetivo criar um espaço de discussão e compartilhamento de ações para desenvolver o tema da habitação social. Além de proporcionar o serviço técnico qualificado, essas organizações buscam contribuir para o desenvolvimento local, a partir da capacitação e contratação de mão de obra executiva e da compra dos materiais nos comerciantes locais. 
            
Ainda que essa seja uma alternativa de atuação importante, essa frente de trabalho apresenta algumas limitações. Podemos citar as dificuldades no que se refere à provisão de recursos para elaboração do projeto e execução das obras, o que acaba por limitar o número de famílias atendidas ou a realização da melhoria completa dos imóveis selecionados. Além da necessidade de atuação interdisciplinar, envolvendo profissionais especializados para atender questões técnicas e estruturais que acabam extrapolando o orçamento previsto. 

Vale ressaltar a importância de se buscar uma maior articulação entre as necessidades da habitação com as demandas que envolvem os serviços e as infraestruturas urbanas. 

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O crescente interesse de arquitetos no campo da arquitetura social e o expressivo número de famílias que precisam e deveriam ter acesso aos serviços de adequação da moradia sinalizam um caminho para contribuir com as políticas públicas. Embora as organizações sociais possam exercer um importante papel na execução de melhorias habitacionais, o amplo acesso a esse direito deve ser pensado em articulação com as políticas públicas para se ter resultado em escala.  Uma habitação adequada perpassa todos os demais direitos. 

Faz-se indispensável, portanto, a atuação do Estado como coordenador da Política Habitacional. É necessário operacionalizar a implantação da metas do PLHIS e os outros instrumentos previstos na Política de HIS, garantir a estrutura institucional, fortalecer a participação popular direta e por meio das instâncias existentes, regulamentar e implantar no município a Lei federal de ATHIS.

Urge promover um Programa de Assistência Técnica, amplo e permanente, como ocorre com a assistência judiciária. Este precisa incluir a assistência técnica gratuita, de arquitetos e engenheiros, atendendo a demanda da população de baixa renda. Associada à elaboração de projetos é importante a oferta de crédito, as parcerias com empresas da construção civil e o financiamento das benfeitorias das famílias de menor renda.

Promover o Direito à Moradia é um desafio que exige ação integrada, considerando os agentes que já tem uma atuação nos territórios. Todos nós temos o dever de cobrar da gestão municipal a assistência técnica para os moradores de baixa renda melhorarem suas casas. Assim, eles poderão exercitar sua cidadania para terem maior qualidade de vida e, sobretudo, terão minimizadas as vulnerabilidades aos riscos socioambientais.

Só assim teremos cidades mais justas, resilientes e sustentáveis.

 

*Danielle de Melo Rocha é professora adjunta do Depto de Arquitetura e Urbanismo da UFPE e do Programa de pós-graduação em Desenvolvimento Urbano; representante da UFPE no Conselho da Cidade do Recife e no Fórum do PREZEIS; pesquisadora do Observatório das Metrópoles – núcleo Pernambuco.

**Giuliana Feitosa Fernandes Lobo Nogueira é arquiteta e urbanista, estudante de Pós-Graduação em Urbanismo Social; integra o Observatório das Metrópoles – Pernambuco; cofundadora da Dona Obra – Negócio de Impacto Social.

***Mariana Pessoa de Oliveira Amorim é estudante de Arquitetura e Urbanismo (UFPE), integra a CIAPA/UFPE e o Observatório.

****Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Da Redação