Nem golpe, nem poderes supremos: entre Musk e Moraes, a democracia

Brasil de Fato

Os recentes embates entre Elon Musk, o bilionário dono da plataforma X, e as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) lançaram luz a uma série de questões. Como já trouxemos nos três textos que nos antecederam nesta série de artigos, é preciso estabelecer limites a Elon Musk para defender a democracia. Seus interesses econômicos e políticos não podem estar acima de tudo, desrespeitando as instituições democráticas, as legislações nacionais, os territórios e os direitos humanos. Além disso, está evidente que as ações de Musk, em especial, na Amazônia, hoje o colocam na posição de adversário das populações locais, dos territórios, da defesa da justiça socioambiental e da soberania tecnológica do Brasil.

Dentre as questões levantadas está a de que o país necessita de um conjunto de regras que deem conta de regular o papel das plataformas digitais, impedindo possíveis abusos. Além de fortalecer a democracia, a aprovação de leis regulatórias permitiria aplacar desconfianças sobre possíveis decisões discricionárias e retirar o foco do debate do ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Alexandre de Moraes vem protagonizando o enfrentamento à desinformação no Brasil, em especial, àquela desinformação que visa desestabilizar as instituições democráticas. Em 2019, tornou-se relator no Inquérito nº 4781 aberto pela presidência do STF, à época sob comando do ministro Dias Toffoli. A investigação, que ficou conhecida como “Inquérito das Fake News“, tinha por finalidade investigar os ataques contra membros do órgão e contra a instituição, mas foi sendo ampliada para investigar também as inúmeras notícias falsas que circularam sobre o processo eleitoral que ocorreu meses antes, em 2018. Outros inquéritos foram abertos com objetos semelhantes, como o Inquérito nº 4784, aberto em 2021, conhecido como “Inquérito das Milícias Digitais“.

Em 2022, ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes deu continuidade ao seu esforço em combater a desinformação. Em seu discurso de posse na corte, Moraes declarou que a Justiça Eleitoral seria “célere, firme e implacável no sentido de coibir práticas abusivas ou divulgações de notícias falsas ou fraudulentas. Principalmente aquelas escondidas no covarde anonimato das redes sociais, as famosas fake news”.

E não restam dúvidas de que a atuação do ministro ajudou a garantir o pleito. A proibição de que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) fizesse qualquer tipo de operação no dia das eleições que dificultasse a participação dos eleitores foi fundamental. É dele também o protagonismo em garantir a responsabilização dos envolvidos na Intentona Golpista de 8 de janeiro de 2023, logo após a posse do Presidente Lula.

Sua atuação, por outro lado, não está blindada a questionamentos em âmbito político e jurídico. O Inquérito nº 4781, por exemplo, é regado de controvérsias jurídicas, sendo alvo, inclusive, de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) produzida pela Rede Sustentabilidade. A ADPF questiona a legalidade do STF em determinar, de ofício, a abertura de inquérito, levando em conta que inquéritos deveriam ser abertos pelo Ministério Público Federal (MPF) e serem executados pela Polícia Judiciária, conforme prevê o Código Penal.

Por outro lado, a justificativa para a instauração do inquérito levou em conta o regimento interno do STF, que prevê essa possibilidade quando a “infração à lei penal [ocorrer] na sede ou dependência do Tribunal […] ou envolver autoridade ou pessoa sujeita à sua jurisdição”. E, nesse caso, tanto Moraes quanto a instituição que representa sofreram graves ataques.

A decisão do STF pelo bloqueio das contas de dezenas de usuários das redes sociais, a partir do inquérito em questão, algo que ocorreu em 2020, também é motivo de debates. O bloqueio foi estabelecido para contas de usuários que flagrante e reiteradamente propagavam desinformação contra as eleições, contra as instituições democráticas e contra o próprio STF. As decisões, assim como o inquérito citado, tiveram anuência do colegiado do STF.

O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), lei aprovada em 2014, que versa sobre os direitos dos usuários na internet, estabelece que conteúdos podem ser indisponibilizados por ordem judicial, mas não regulamenta a exclusão ou bloqueio de contas de usuários. E embora o bloqueio tenha sido feito para proteger a democracia, sob a prerrogativa do poder geral de cautela do juiz (Art. 301 do Código Civil), é recomendado que a sanção guarde paralelismo com as penas previstas na legislação civil e penal em vigor.

Isso quer dizer que o bloqueio de contas não pode ser por tempo indeterminado (nenhuma sanção penal no Brasil é por tempo indeterminado) e não poderia se amparar na premissa de que o usuário em questão pode difundir ilegalidades ou ofensas e sim, apenas, naquele conteúdo que o usuário já difundiu. Essa exclusão tem amparo, inclusive, em extenso arcabouço jurídico no Brasil, que inclui as leis contra racismo, lgbt+fobia, apologia ao nazismo e ao genocídio, além da própria Constituição. Além disso, ganha amparo nos padrões internacionais que versam sobre a liberdade de expressão e a reconhecem como direito fundamental, porém não absoluto, devendo, portanto, resguardar a integridade individual e coletiva.

Em relação à suspensão e ao bloqueio do X no Brasil já está mais do que justificada a decisão do STF. Especialmente porque ela visa proteger os direitos dos cidadãos ao responsabilizar a plataforma digital. Os desmandos de Musk e as violações promovidas pelo X não são compatíveis com a democracia e atentam contra a soberania nacional brasileira. Ainda assim, a aplicação de multa de R$ 50 mil reais para os usuários que usassem VPN (da sigla em inglês, Rede Virtual Privada) para burlar o bloqueio do X e assim acessarem suas contas foi um tanto desmedida e considerada desproporcional, abrindo um precedente perigoso.

Precisamos de Heróis?

A crescente polarização política, o crescimento do fundamentalismo religioso e da extrema direita no Brasil nos levaram a uma posição extremamente desconfortável e bastante prejudicial à democracia. Fazemos dos debates públicos uma espécie de jogo de futebol, onde existem apenas vencedores e perdedores ou como uma graphic novel mal escrita, em que apenas existem heróis e vilões, sem camadas, sem profundidade. A análise apressada das redes sociais, inclusive, é origem e resultado desse processo.

Enquanto Elon Musk é colocado no pedestal da extrema direita como o paladino da liberdade de expressão e a figura do bilionário vai sendo esculpida como a de um mártir, expoente das liberdades individuais e de mercado, Alexandre de Moraes vai sendo alçado à categoria de herói nacional por defender a democracia e as instituições – o que deveria ser pressuposto – em tempos de ataques ferozes da extrema direita. Nesse sentido, a emergência de supostos heróis nacionais, no entanto, deve ser vista com cautela.

Indicado ao STF em 2017, quando um acidente fatal tirou a vida do ministro Teori Zavascki, Alexandre de Moraes foi alçado à posição de ministro durante o governo golpista de Michel Temer (MDB), com indicação do então presidente, a pedido da cúpula do PSDB de São Paulo. E como vimos anteriormente, de 2017 para cá vem se tornando um grande expoente da República, alternando decisões ora consideradas sensatas, ora consideradas polêmicas.

Vale lembrar ainda que, antes de assumir o posto, ele foi secretário estadual de Justiça do Estado de São Paulo (2002-2005) e secretário estadual de Segurança Pública do Estado de São Paulo (2015-2016), período de explosão no número de pessoas mortas por policiais militares e civis em serviço (foram 607 em 2015 e 590 em 2016, dados da SSP-SP). Também atuou como advogado, defendendo o então presidente da Câmara e deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB), atualmente preso pela Operação Lava Jato.

A atuação de Moraes tem sido muitas vezes qualificada como estando entre a defesa do Estado Democrático de Direito e o acúmulo de poderes, sendo o ministro algumas vezes acusado de cometer abusos constitucionais. Há ainda quem critique a sobreposição do STF em assuntos que deveriam ser legislativos, o que, de certa forma, estaria impactando diretamente a autonomia dos Três Poderes.

O fato é que o STF tem muitas vezes atuado nas lacunas deixadas por um Congresso Nacional cujos parlamentares estão interessados apenas em garantir as emendas impositivas que beneficiam suas bases eleitorais. O fato de o PL 2630/2020, que regula as plataformas digitais, promovendo liberdade, transparência e responsabilização na internet, ter sido engavetado pelo presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), mesmo após quatro anos de debates com a sociedade civil, é a prova de que não há urgência em combater a desinformação.

Já vivemos experiências recentes sobre como o uso desproporcional do Sistema de Justiça pode muitas vezes provocar desequilíbrios. Há atualmente toda uma literatura problematizando como o lawfare pode deslocar a arena da disputa política. Depois de termos vivido a experiência da Operação Lava Jato e a ascensão política do juiz Sérgio Moro, atualmente senador da República, seria inteligente e precavido olhar com maior atenção às nossas fragilidades institucionais e a forma como tais fragilidades possibilitam a emergência de supostos “salvadores da pátria”.

*Ana Mielke é jornalista, professora, mestre em Ciências da Comunicação e coordenadora executiva no Intervozes; Maryellen Crisóstomo é quilombola, jornalista, mestranda em Letras pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e associada do Intervozes; e Patrícia Paixão é jornalista, pesquisadora e associada do Intervozes.

** Este texto faz parte da série “O X da Questão: big techs e soberania tecnológica”, parceria entre Brasil de Fato e Intervozes

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente reflete a linha editorial do Brasil de Fato.

Da Redação