60 anos do golpe: ao não enfrentar a memória, Brasil abre espaço para apropriação da direita, diz ativista

Brasil de Fato

Os 60 anos do golpe empresarial-militar no Brasil, completos neste 1º de abril, chegam em um “momento histórico muito delicado” na avaliação da historiadora Carla Teixeira. Enquanto Lula dá entrevistas dizendo que não vai “remoer o passado” e mantém na gaveta a recriação da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (desfeita na gestão de Bolsonaro), generais quatro estrelas são chamados a depor à Polícia Federal (PF) sobre os atos golpistas de 8 de janeiro

Paralelamente, o Ministério dos Direitos Humanos planejava fazer um evento com o nome “sem memória não há futuro”. Com ar ironicamente premonitório, o título parecia alertar sobre consequências daquilo que a sua proibição, justamente, pode significar. O evento institucional foi vetado pelo presidente Lula (PT). Assim como qualquer outro que faça alusão à ditadura.  

No Senado, parlamentares têm recebido visitas do ministro da Defesa, José Múcio, que tenta costurar acordos para fazer avançar a chamada “PEC dos Militares”. A Proposta de Emenda Constitucional do governo federal, que precisa de três quintos dos votos para ser aprovada, estabelece regras para a entrada de militares na política institucional.  

Ainda em negociação, o texto deve impedir que integrantes das Forças Armadas voltem à carreira militar depois de se tornarem candidatos. No entanto, poderiam seguir sendo remunerados pela instituição.  

“Essa PEC não necessariamente vai garantir a diminuição da participação dos militares na política, porque isso pode se dar de maneira mais sutil”, avalia Teixeira, doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Eles têm armas. O que os coloca numa posição de muita superioridade em relação às lideranças políticas da classe civil”, salienta. 

“Por isso eles [os militares] deram um golpe, por isso se mantiveram no poder por 21 anos, por isso tutelaram a transição democrática e garantiram seus privilégios na Nova República. Por isso que, em 2014, quando a Comissão Nacional da Verdade revelou uma parte dos crimes cometidos pela ditadura militar houve tanta grita. Por isso os militares apoiaram o golpe contra a presidenta Dilma, apoiaram a prisão de Lula e não hesitaram em embarcar no governo Bolsonaro (PL)”, elenca Teixeira.  

“O que precisamos é do aprofundamento dos valores democráticos para que a corporação militar esteja subordinada aos interesses da sociedade civil”, opina Teixeira, coautora do livro Ilegais e Imorais: autoritarismo, interferência política e corrupção dos militares na história do Brasil.  


Manifestação estudantil contra o regime militar na Praça da República / Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Governo Lula e os militares

A resistência da classe militar ao governo Lula 3, logo no seu início, teve como episódio sintomático a recusa do ex-comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, a comparecer na posse de seu sucessor para não bater continência ao novo presidente. Santos, depois, seria alvo de busca pela PF por suposto envolvimento no 8 de janeiro.  

“A gente vê, portanto, uma situação em que o governo Lula já começa tendo de conciliar com as Forças Armadas”, descreve Teixeira, para quem atualmente os militares “retomaram um protagonismo que haviam perdido na década de 1980, quando deixaram o poder”.  

Assim, delineia a historiadora, “enquanto o governo Lula concilia, é o judiciário que assume a postura de responsabilização”. O governo, na visão da historiadora, “erra e se acovarda”. Os atos de 8 de janeiro de 2023 são, justamente, “a volta dos que não foram”, caracteriza. “Por não terem sido responsabilizados pelos crimes cometidos durante a ditadura é que há a desenvoltura para que ações como essa aconteçam”, opina.  

Para Teixeira, a posição de Lula “do ponto de vista político é ruim, do ponto de vista histórico é péssima e da construção de uma memória que procure firmar a democracia é absolutamente contraproducente. Reafirma a nossa tradição de uma cultura política de conciliação, acomodação, que visa escamotear os conflitos a fim de estabelecer uma organização social profundamente desigual”.  

Débora Silva é fundadora do Movimento Independente Mães de Maio, nascido em reação aos chamados crimes de maio, quando em 2006 a polícia matou ao menos 429 pessoas em apenas 11 dias. Para ela, que luta contra a violência de Estado dos tempos democráticos, “não se trata de remoer o passado”: “Precisamos ver que o passado está sendo presente. Essa é a diferença. Um país que não tem memória caminha, a passos lentos, dando marcha ré”.   


Mães de vítimas da brutalidade policial em regime democrático protestam durante desfile do Cordão da Mentira, quando golpe militar brasileiro completou 59 anos / Gabriela Moncau

Citando a letalidade da Operação Escudo e Verão, implementada pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) na Baixada Santista desde julho de 2023 e sem data para terminar, Silva salienta que “a polícia de São Paulo aplica, cotidianamente, o AI-5 nas periferias”.  

Desde o seu surgimento, a função das Forças Armadas e dos agentes de segurança do Estado, aponta Teixeira, que é também docente substituta de História do Brasil Republicano na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), “foi garantir a ordem e a manutenção da propriedade privada”.  

“E segue sendo. Se engana quem acha que ela serve para proteger os interesses da população brasileira. Infelizmente, as Forças Armadas brasileiras servem para atender aos interesses do grande capital, da grande propriedade e da própria corporação”, resume.  

A pouca importância dada ao tema no Brasil

Em setembro de 2023 Flávio Dino, então ministro da Justiça, declarou que o governo criaria um Museu da Memória e dos Direitos Humanos. O anúncio aconteceu no Chile, quando eventos e manifestações marcavam os 50 anos do golpe militar encabeçado por Pinochet contra o governo de Allende.  

Meses depois, na efeméride de 60 anos do caso brasileiro, com um debate público morno a respeito do tema e eventos institucionais vetados, o projeto do tal museu foi abortado. 

Thiago Mendonça, um dos organizadores do Cordão da Mentira — bloco que sai às ruas de São Paulo todo 1º de abril em denúncia à violência estatal dos tempos ditatoriais e democráticos — elenca fatores que explicam a pouca importância dada ao debate da ditadura no Brasil, em comparação a países como Chile e Argentina

“Por um lado, acho que a gente perdeu simbolicamente essa luta ao não conseguir explicitar para sociedade o quão nefasta foi a ditadura. Em grande parte, isso se dá porque a gente não colocou na pauta os crimes contra a população civil que não era privilegiada. Como a população periférica morria a rodo nas mãos dos esquadrões da morte, que eram os mesmos agentes em São Paulo que torturavam como ‘polícia política’, a gente não conseguiu mostrar essa relação”, reflete Mendonça.  

“Em paralelo, enquanto a gente não enfrenta essa memória — e somos aconselhados, inclusive, pela esquerda hegemônica hoje no governo a deixar isso de lado —, a direita se apropria dessa memória como algo positivo”, descreve Thiago Mendonça.   


Pixações do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) durante a ditadura empresarial-militar / Arquivo Nacional/Correio da Manhã

Em sua visão, trata-se de uma disputa simbólica da qual o Brasil se retirou desde os anos 1980. “Isso vale para as artes, para a discussão acadêmica, mas vale principalmente para a luta dentro dos movimentos sociais, os movimentos de base”, diz o militante.  

“A gente não colocou isso como um foco central. E o preço que a gente paga é que essa memória é apagada e reapropriada pela extrema direita. E aí o buraco em que a gente está se enfiando”, diz Mendonça, ao defender a urgência de “recuperar essa memória como um processo de entendimento coletivo do país e uma prioridade para os movimentos sociais”. 

Da Redação