‘O campesinato virou uma simbologia de resistência’, diz pesquisadora

Brasil de Fato

Com um pé na academia e outro na militância, Letícia Chimini está lançando seu livro A questão agrária no capitalismo dependente: elementos da questão social e a resistência do campesinato brasileiro. A obra é resultado da sua tese de doutorado em Serviço Social.

No Papo de Sábado, feito pelo Brasil de Fato RS no último dia 20 de julho, ela atenta para a diferença entre agricultura familiar e campesinato, critica a ação do capitalismo no campo brasileiro, destaca a intenção do agronegócio de se apresentar como representante de todas as formas de vivência no meio rural e adverte que o coronelismo ainda vigora em muitos rincões do Brasil.  

Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato RS – Há uma peculiaridade no teu livro, onde a autora tem um pé na academia e outro na militância. Como foi produzir o livro lidando com essa dualidade?

Letícia Chimini – São coisas que se complementam. Não conseguiria fazer de outra forma. Até pouco tempo atrás eu ainda tinha o pé na roça também. Era uma forma de vivenciar isso. Quando saí da universidade formada em Serviço Social, fui atuar no movimento das pequenas e dos pequenos agricultores, o que me levou a estudar mais sobre a questão agrária. É a teoria que fomenta uma prática que acaba sendo refletida novamente numa teoria. E esse processo é contínuo.

Então, não sei nem como seria um livro somente teórico, que não olhasse para a realidade. Não consigo separar. Toda a pesquisa empírica se dá na luta. E as teorias embasam isso. Não vejo como uma dualidade mas como algo que se complementa. É a práxis, de fato, que a própria teoria social de [Karl] Marx referencia enquanto método. E isso foi uma consequência, creio que não tenha sido… Claro que hoje é uma escolha política fazer isso.

Essa escolha tem influência da família Ou aconteceu a partir da universidade? Em que momento, percebeste que esse mundo era mais desigual do que a propaganda que esse mesmo mundo espalha

Não foi da família. Da família sempre veio, principalmente de meu pai, um “não desista, siga”. Mas hoje minha família é quase toda bolsonarista… Mas isso não nos segregou.
 
É uma família de pequenos agricultores?

Não, a minha avó era agricultora. Lembro dela, quando chegou à cidade plantando em qualquer cantinho. Na ânsia de vivenciar o que ela deixou para trás. Minha avó chegou à Porto Alegre com oito filhos pequenos. Meu pai conta: “aqui, com oito anos, eu engraxava sapato. Aqui, nesse hospital, com sete anos, a gente vendia frutas”. Eles vieram de Iraí nos anos 1960, início dos 1970.

A militância social me salvou da ignorância

O êxodo rural…

Exatamente.

Coincide com a mecanização da agricultura também, com o avanço da grande propriedade.

É o que a gente chama de Revolução Verde, o que também é abordado no livro. Voltando àquela questão da influência, acho que tem a ver com a entrada, de fato, no Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Eu me formei em 2005. Então, quando eu entrei, realmente, foi um movimento que eu comecei a ver.

Foi em que ano?

2006. E consegui vivenciar, inclusive, o março de 2006 e tudo o que veio desde então. Então, acredito que a consciência política, no sentido de aliar as expressões da questão social com a questão agrária, veio com o movimento. Digo que a militância social me salvou da ignorância mesmo, no sentido de consciência de classe. Que muito nos falta, não é?

Durante o período de escrita, você vivenciou a pandemia, o período Bolsonaro e também houve um momento em que estava no Norte do Brasil, região que tem muita violência contra os militantes dos movimentos sociais do campo. Como isso tudo influenciou na sua tese, no teu livro?

Vou começar de trás para a frente com uma boa dialética. Hoje atuo no Programa Federal de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos. E uma das regiões [onde atuo] é o Norte. Acabou realmente levando a escrita para onde está hoje. Estava realizando a parte da pesquisa no Pará quando estourou a pandemia. Andava de assentamento em assentamento com os companheiros do Pará.

Vendo o panorama no campo do Rio Grande do Sul e o do Pará, o que distingue um do outro?

Letícia Chimini – Primeiro vou te falar do que une os dois, que é a luta pela terra. Olhando para a agricultura familiar e camponesa, aqui falta estrutura, falta política pública, falta incentivo para a agroecologia. E no Norte, ainda a luta é por ter a terra – e o Pará é o estado onde mais se assassinam militantes ambientais e sociais. A luta pela terra movimenta mais a região Norte, não somente pelos agricultores e agricultoras, mas também pelos quilombolas.

Fico pensando nos indígenas com um celular tirando fotos de um drone derramando veneno em cima deles

Está numa etapa anterior ainda em relação ao Rio Grande do Sul. E os latifúndios são maiores no Norte também…

Não sei se seria uma etapa. A gente não gosta muito dessa ideia de etapismo… Vejo a luta campesina como tentáculos. Lá (no Norte) ainda tem essa luta por ter a terra para poder trabalhar. Aqui o próprio MPA nasce da solicitação por políticas públicas. Os latifúndios no Norte são enormes. A gente tem que fazê-los de helicóptero.

Cheguei anteontem do Tocantins onde a gente vê que também não há água. As águas são cercadas. O conflito aumenta porque, para acessar a água, é preciso passar por territórios conflituosos.

Falar que não tem água no Norte é uma coisa, né? Não dá para imaginar isso.

Não tem. Voltamos com uma série de denúncias. Os rios estão muito contaminados por agrotóxicos. Visitamos aldeias que estão isoladas por plantações de soja. Sou do tempo em que a gente lutava contra jogar agrotóxico de avião. Hoje eles estão usando drones. Fico pensando nos indígenas com um celular tirando fotos de um drone que está derramando veneno em cima deles. É a barbárie pra onde vamos.

O que podes falar sobre essas denúncias que citaste?

As denúncias são muitas. É algo que também escrevi no livro, que é a intencionalidade do Estado para com o capital. É um absurdo chegar na Secretaria do Meio Ambiente (do Tocantins) para dizer “Olha, tá faltando água aqui, essa água aqui tá contaminada” e eles dizerem “Pessoal, vocês vão se surpreender da forma como a gente trata bem o nosso campesinato, enfim, os povos indígenas e quilombolas”…

Essa patrulha rural está a serviço dos latifundiários

Quem diz isso?

Ah, o Estado. Uma denúncia que vou deixar aqui é a questão das chamadas patrulhas rurais. Durante muito tempo, denunciamos a falta de segurança no rural brasileiro. Falta de iluminação, falta de policiamento, falta de segurança pública. E hoje, em alguns estados, existe uma patrulha rural. Eles enchem a boca para falar da patrulha rural.

Mas o que é essa patrulha rural?

Letícia Chimini – A patrulha rural é a segurança pública que atua no meio rural.  

É uma estrutura do Estado?

É, do governo estadual.

Militar?

Da Polícia Militar, exatamente. E aí eles chamam de patrulha rural: “Olha, que bom. Finalmente temos a segurança pública atuando”. Mas não. Essa patrulha rural está a serviço dos latifundiários.

Por exemplo: Um assentamento chama a patrulha rural por alguma violência. Eles não vão. Agora, experimenta fazer uma ocupação. A patrulha rural tá lá para tirar o povo, coisa que não é serviço da patrulha rural.

Obviamente, a patrulha rural atende aos interesses do governador do estado que, no Norte, é quase sempre conservador.

Exato. A polícia militar aqui é descaradamente contra quem luta por terra e território.

Como foi trabalhar a relação entre a teoria da dependência e o campesinato?

O campesinato é muito diverso. Precisamos olhar para esse campo, embora o agronegócio tente colocar tudo dentro dele. Estes povos do campo são, de alguma forma, todos atravessados e condenados também pelo capitalismo.

Quando comecei a estudar vi que havia particularidades no Brasil. Nem pensava em nível de América Latina. Busquei leituras que pudessem contribuir. Aí, a teoria marxista da dependência, que não é uma outra teoria de Marx. É a teoria social de Marx atenta às particularidades da América Latina, que tem em comum as suas colônias, o acesso desigual à terra e aos recursos naturais, o histórico horroroso de escravização e de genocídio. E isso até hoje reflete nas formas como o capitalismo avança. Que não tem problema nenhum com ditadura, genocídio ou patrulhas rurais construídas por milicianos e com toda uma gama de criminosos. A teoria marxista da dependência ajuda a botar uma lente em cima disso e nos dizer por onde ir.

O que é o campesinato hoje no Brasil e como se distingue o campesinato da agricultura familiar?

Essa é uma das perguntas mais feitas pelos alunos e alunas da graduação. “Profe, tu fala em campesinato e tu fala em agricultura familiar, que raio é isso?” Temos, historicamente, um processo de invisibilização do campesinato. Durante a ditadura, falar em campesinato era proibido, porque a gente tem…

Todo camponês é um agricultor familiar. Mas nem todo agricultor familiar é um camponês

É uma palavra perigosa.

É, e nós temos as Ligas Camponesas, uma das principais resistências nesse país e foram dizimadas.

E no Rio Grande do Sul havia o Master, o Movimento dos Agricultores Sem Terra. Havia as Ligas Camponesas do Nordeste e no Rio Grande do Sul, pré-ditadura, havia o Master, um antepassado do MST, misturando um pessoal do antigo PCB e do trabalhismo.

Exato. Então, o campesinato acabou virando uma simbologia de resistência. Tanto que se dizer camponês e camponesa era proibido. Até trago isso no livro. Olhando para os documentos, vemos, inclusive, as palavras “latifúndio” e “minifúndio” sendo retiradas. Então, no lugar disso, a gente precisa criar outra coisa. A agricultura familiar, ela dá essa visão de “agronegocinho” inclusive nos financiamentos.

O agronegócio está até fazendo propaganda disso, né?

Usar “campesinato” novamente é uma questão muito de reforçar esse papel de resistência dentro desse processo todo em que tentaram colocar a agricultura familiar. É muito tênue a diferença. Todo camponês é um agricultor familiar. Mas nem todo agricultor familiar é um camponês. Hoje, a gente reforça (o termo) “agricultura familiar camponesa”. Daqui a pouco, tiramos o “familiar” e vai ficar só “agricultura camponesa”.

Hoje, o campesinato é uma identidade. Reforçar a agricultura camponesa é falar de uma utilização da terra de forma que não agrida. E não se está falando somente de sustentabilidade ambiental. Estamos falando de sustentabilidade social, estamos falando de um feminismo camponês e popular, onde a gente não reproduz a exploração e a expropriação.

No prefácio do livro, o professor Mathias Luce, da UFRJ, observa que, quando Karl Marx escreveu O 18 Brumário de Luiz Bonaparte, tinha uma visão do campesinato como uma categoria atrasada, uma vez que se submeteu ao imperador. Ao mesmo tempo, repara que existe outro Marx em O Capital com uma visão diferente do papel dessa classe social. O que você poderia falar sobre esses dois Marx?

No 18 Brumário, Marx se referia a um campesinato que não queria romper com o sistema, um campesinato conservador. Naquele tempo histórico e na realidade a que se referia, era o contato que ele (Marx) tinha. Depois, ele vai escrevendo sobre isso e elabora melhor. Marx teve a capacidade de fazer esses vários olhares e entender que, naquela realidade, era assim.

Não era uma classe revolucionária, portanto. Então, naquele momento, ele não ia exatamente gostar do campesinato francês… Existem revoluções campesinas…

Umas foram dando sustentação e inspiração para as outras. Se olharmos para as várias revoluções na América Latina no México, no Haiti, vamos ver o braço e a alma do campesinato revolucionário.

Em média, comemos todos nós 7,2 litros de veneno por ano

Peru, Bolívia…

Exatamente. E se hoje, no Brasil, ainda falamos de reforma agrária popular é porque temos uma Via Campesina forte que nos lembra todos os dias que é necessária.

Tem um outro debate que trazes e que trata da importância da alimentação saudável, sem agrotóxico, mas acessível a todo mundo. A questão do preço dessa alimentação. A necessidade de políticas públicas que garantam que os alimentos sem agrotóxicos não sejam o alimento da burguesia somente.

Assim como existe essa diferença entre a agricultura familiar e o campesinato. Ou os “agronegocinhos” que o capitalismo quer que olhemos para ele assim, também existe a discussão entre agricultura orgânica e agricultura agroecológica.

O que é a agroecologia defendida pelos movimentos sociais? É que todo mundo tem direito a comer saudável, sem acesso aos venenos. Em média, comemos todos nós 7,2 litros de veneno por ano, sem querer, sem desejar. Ninguém em sã consciência vai fazer isso. E no Paraná são 10 litros…

Paraná é o estado que mais usa veneno?

Pelo menos é o que demonstraram as pesquisas. E defender a agricultura agroecológica é afirmar que todos temos direito de comer saudável. Hoje, o miserável vai morrer de fome, o pobre vai comer mal e o rico vai comer bem. A  classe trabalhadora não tem R$ 15 para dar por um quilo de tomate sem veneno.

E o rico que vai comer bem, não raro, será quem está produzindo os alimentos que não vai comer mas exportar…

Exatamente. Primeiro, que a terra não é mercadoria, logo, os alimentos também não são mercadoria. Ou não deveriam ser. A comida sem veneno pode ser um nicho de mercado. Posso ter 10 hectares só de brócolis sem veneno. Mas não é essa a lógica.

A agroecologia fala de uma natureza que se autoprotege na diversidade. Você imagina, a gente tem 30% das terras. Imagina esse povo com só metade das terras, com 50%. Assim, não se sustenta aquele senso comum que diz que para tu alimentares o povo, precisas ter grandes extensões de terra, precisa ter monocultura e precisa ter veneno.

Os coronéis tem a arma, o braço armado do Estado, as milícias, a patrulha rural…

Talvez a mais cara da história da propaganda brasileira e a mais longa é a do “Agro é pop”. Que não está só nos intervalos comerciais. Está nas novelas, no jornalismo. O núcleo duro do agro, na verdade, produz commodities. Produz para exportar. Quem põe a comida na mesa é a agricultura familiar. No entanto, a propaganda coloca tudo sob a mesma redoma. Parece que deseja se beneficiar dessa ideia de alimentar o país. Quando ele não alimenta. Faz outra coisa.

Eu tinha um professor que dizia que o capital não cria nada, mas se apropria de tudo. Dou a cadeira de Questão Agrária e, em qualquer sala de aula que entro, pergunto “O agro é?” E eles respondem. Na última aula, eu disse “Oh, gente, agora vocês não podem errar: o agro é?”

Após um semestre de reflexões, a gente consegue ver que o agro, de fato, é morte. É veneno na mesa, é fome. Escrevo também sobre isso: a fome como consequência e causa do sistema capitalista. Quem conta a história É o lado hegemônico da história. Quem venceu do ponto de vista do capitalismo. Mas se existe toda uma força política para tornar o agro mais verde é porque ele está tentando, realmente, botar para debaixo do tapete todo o vermelho. Que é forjado pelo sangue derramado dos povos. Então, o agro não é pop. Milhões, foram gastos nessa propaganda premiada mundialmente. Precisamos contar a história do ponto de vista dos vencidos.

Visitamos um assentamento que o coronel local fechou com cinco cancelas

Com a hegemonia do agronegócio, conseguiu-se acabar com o princípio constitucional da função social da terra. Tanto que hoje aprovam leis que criminalizam as ocupações. No sentido de que a luta social é crime. E não o que eles fazem de grilagem. É o avesso. Acho que o brasileiro, urbano ou rural, não entende o termo “função social da terra”. Está na Constituição que a terra deve ter uma função social. Se ela não for bem usada, se for improdutiva, sem dar um retorno à sociedade, o governo pode desapropriá-la e distribuí-la…

A gente fala “Ocupar é um direito”. Está estruturado em cima do desigual acesso à terra. Quando a gente fala, por exemplo, em uma reforma agrária popular, não dizemos que queremos agricultura familiar e camponesa de Norte a Sul, de Leste a Oeste, desse país. É preciso partir do princípio de que terra não é mercadoria. Mas a terra cercada é.

Parece que a ideia de possuir terra no Brasil está profundamente ligada a status e a poder. Muitos presidentes foram ou são proprietários de terras, casos de Getúlio Vargas, João Goulart, José Sarney, Fernando Collor e até Fernando Henrique Cardoso. O imaginário da terra é ainda imenso na sociedade brasileira. O que se pode dizer a respeito dessa necessidade de possuir terras para obter reconhecimento social?

Terra é poder. Por isso, aliamos a discussão de terra ao território. Quando se ocupa um território, você determina a forma que você vai utilizar esse território. E, por isso, lutamos para que cada vez mais o campesinato ocupe territórios. Para poder colocar ali o seu projeto em que acredita. A gente ainda vê muito viva essa ideia do coronelismo. De pedir a benção para o “coroné”… Esses coronéis tem a arma, o braço armado do Estado, as milícias, a patrulha rural…

A gente não está falando de terra comprada. Ainda que se olhasse para a meritocracia capitalista burguesa, não estamos falando de território comprado. Estamos falando de terra grilada, de terra roubada e de genocídio em cima dessa terra. Não há nada de bonito.

E tudo vem da posse da terra…

Existem lugares em que a gente, enquanto equipe federal, não pode ir sem a escolta da Polícia Federal. Somos ameaçados. Se, para nós que vamos com a PF, já é difícil, imagina fazer a luta no cotidiano nesse fundão de terra onde não tem visibilidade, não tem linha de celular ainda, não tem luz. O povo fica lá na resistência mesmo. E se a gente pergunta “Por que tu não sai? Vai para outra terra”. Então, eles respondem “Mas essa terra é minha, tenho o direito. Tenho que fazer o Estado chegar aqui. Não tenho que sair”.

É isso o que eles querem. Visitamos um assentamento que o coronel local foi fechando com cancelas. Para chegar lá é preciso passar por cinco cancelas. São várias formas de poder.

Esta é uma versão resumida da entrevista do podcast De Fato. Assista ao programa completo abaixo:


Da Redação