Comissão de Anistia do governo opera com dinheiro ‘emprestado’ e não tem verbas para próximos meses

Brasil de Fato

Criada no país em 2002 e com fôlego político renovado no início de 2023, com a volta do presidente Lula (PT) ao poder, a Comissão de Anistia não tem mais verbas para operar nos próximos meses. De acordo com a presidenta do órgão, Eneá Almeida, os recursos que haviam sido disponibilizados para o colegiado em 2024 acabaram no meio do ano. O Portal da Transparência não informa o montante que havia sido destinado ao órgão para este exercício financeiro. A comissão, que é responsável pela análise de requerimentos de anistia de pessoas perseguidas pela ditadura militar (1964-1985), tem uma demanda represada de cerca de 7 mil processos para serem examinados e julgados.

“Nós tivemos dinheiro para funcionar até julho. Não temos dinheiro para funcionar daqui pra frente. Então, fizemos uma sessão de julgamento agora em agosto, mas, para essa realização, nós já precisamos contar com dinheiro emprestado dentro do próprio gabinete do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania”, resume Eneá, acrescentando que, quando tiver acesso a novas verbas, a comissão precisará devolver o dinheiro à rubrica orçamentária de onde ele foi retirado.

Segundo a dirigente, o órgão recebeu este ano uma única emenda parlamentar, encaminhada pelo deputado Tião Medeiros (PP-PR), mas o valor ainda não chegou. A rubrica destinada pelo pepista é de R$ 1 milhão. “Esse valor já deveria ter chegado para a comissão, inclusive para a realização da sessão do mês de agosto. Só que, por razões burocráticas internas do próprio ministério – e eu ainda não entendi exatamente o que foi que aconteceu – o dinheiro não chegou. E agora, com a decisão do Supremo em relação às emendas, nós estamos tendo que esperar para liberarem esse valor.” 


Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo, em 1979 / Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo via Agência Senado

Em virtude desse cenário, a comissão ainda não sabe se conseguirá realizar as três sessões que estão agendadas para o final de setembro. O órgão é composto por 21 conselheiros, todos eles voluntários e que, portanto, não recebem nenhum tipo de remuneração pelo trabalho de avaliação e julgamento dos processos. Para que as sessões possam ocorrer, o governo precisa, no entanto, financiar passagens e hospedagens para o grupo. Foram realizadas 12 sessões pela Comissão de Anistia entre janeiro e agosto deste ano. Eneá Almeida afirma que cada vinda do grupo para Brasília (DF) custa uma média de R$ 50 mil a R$ 60 mil para os cofres públicos. A presidenta do órgão calcula que seriam necessários pelo menos R$ 300 mil para as sessões até o final do ano.

O órgão tinha como meta para 2024 o julgamento de todos os processos protocolados até 2010. Conseguiu, até o momento, apreciar aqueles cujo trâmite se iniciou até 2005. “O nosso compromisso seria para agora, em setembro, julgar os de 2006, 2007 e 2008 e, em novembro, os de 2009 e 2010. Temos sessões marcadas para o final de setembro, que, por enquanto, não sabemos se vamos realizar ou não porque não tem dinheiro hoje para trazermos os conselheiros e conselheiros para virem aqui”, diz Eneá, ao afirmar que a maior parte do grupo mora fora do Distrito Federal.

Estrutura

A situação da Comissão de Anistia é desafiadora também em outra frente, aquela que se refere aos trabalhos administrativos necessários ao andamento dos processos. Segundo Eneá Almeida, o grupo que cuida desse tipo de tarefa atualmente tem 20 pessoas. No passado, já chegou a ter 80. “Somente de pessoas que preparavam as minutas [dos processos] para que os conselheiros aprimorassem essas minutas para o julgamento nós já tivemos 10, 15 pessoas. Hoje nós temos uma única pessoa para apreciar e aprontar os processos, por isso o valor da emenda parlamentar que estamos aguardando também servirá para a contratação de bolsistas que vão reforçar a equipe administrativa justamente para fazerem as minutas, ou seja, para fazerem os processos chegarem no momento de serem julgados”, explica a presidente.


Evento sobre Lei da Anistia / Clarice Castro – Ascom/MDHC

A comissão carece ainda de uma pessoa que atue como coordenadora de processos do órgão, função que precisa ser ocupada por servidor de carreira, segundo as normas. “Encontrei um servidor que pode e quer fazer esse trabalho, mas ele é de outro órgão, por isso precisa ser cedido. Para isso, precisa ter um pedido via gabinete do MDHC. Ele está na Abin [Agência Brasileira de Inteligência], que está na Casa Civil, e esse pedido já foi formulado por nós, mas o gabinete ainda não mandou. Estamos aguardando porque ele está esperando pra chegar pra trabalhar. Preciso muito que ele chegue, nós estamos ansiosos pela chegada dele, ele está ansioso para chegar, mas o processo não anda. Às vezes a gente lida com certos entraves burocráticos. Não sei explicar o motivo”, lamenta.

Silenciamento

Presidenta da Comissão de Mortos e Desaparecidos, órgão que foi retomado pelo Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania nesta sexta (30) e atua dentro do mesmo campo temático, Eugênia Gonzaga também lamenta a falta de orçamento para o colegiado que trata dos anistiados. Ela afirma que a falta de estrutura dificulta a luta por justiça para os atingidos pela ditadura militar. “Dificulta porque você vai silenciando o tema, você cada vez menos coloca as questões no jornal, etc. No tempo em que havia as caravanas de anistia no Brasil, por exemplo, elas eram noticiadas, as pessoas compareciam, alunos vinham. E até hoje, depois disso, não aconteceu mais nada. Então, é preciso que essas comissões estejam funcionando pra se garantir isso.”

Ela corrobora o discurso de que o voluntariado somente não é capaz de dar conta de todas as tarefas previstas para esse tipo de colegiado. “É impossível uma comissão funcionar apenas com a contribuição voluntária dos seus membros analisando centenas de processos a cada reunião que tem. São processos difíceis, complexos, que têm que ser analisados com muita calma, e é preciso que exista uma assessoria pra se fazer tudo isso. E o papel da Comissão de Anistia, assim como da Comissão de Mortos, não é apenas analisar processos, mas sim também incidir em políticas de memória e verdade, fazer caravanas, fazer as reparações de caráter não pecuniário, reinstalar, com já houve no passado, as clínicas de testemunho. Tudo isso precisa de orçamento e de estrutura”.

Frustração

Anistiada política desde décadas passadas e liderança política destacada no segmento dos que buscam anistia, a servidora pública Rosa Cimiana se diz frustrada com a forma como o governo Lula vem tratando as demandas ligadas ao tema da ditadura militar. “Pessoalmente, eu não tenho mais nada pra resolver na Comissão de Anistia, mas política e ideologicamente eu vou ficar até morrer [lutando], pelo visto, porque o governo é bem lerdo nessa história. Ele não dá importância nenhuma. E olha que estou com 64 anos e sou praticamente uma caçula nessa história”, desabafa Cimiana, ao ressaltar que diversas outras pessoas violentadas pelo regime eram de gerações anteriores e por isso não chegaram a ter sua anistia contemplada pelo Estado.


Ditadura militar gerou série de protestos populares nas décadas em que regime dos generais vigorou no Brasil / Wikimedia Commons

Legislativo

O problema da falta de orçamento do órgão foi levado à Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados na última quarta (28), quando o colegiado realizou evento alusivo aos 45 anos da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979). Em conversa com o Brasil de Fato, o presidente da CLP, deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), disse que o assunto será um dos pontos da agenda que a comissão pretende levar para o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, com o qual a CLP vai tentar uma reunião.

“Temos também que batalhar por recursos pra comissão no orçamento de 2025, que já tem que ser discutido agora porque em outubro é que se faz a indicação de recursos. Além disso, vale ressaltar que, se se mantiver essa política de liberação de bilhões de reais pra orçamento secreto e pra ações sem transparência, não sobra recursos exatamente pros ministérios e pra ações fundamentais como essa. Evidentemente, vamos cobrar [a demanda das verbas] ao ministério, mas essa cobrança precisa ser feita também à falta de transparência do Congresso na execução orçamentária, o que é gravíssimo.”

Outro lado

O Brasil de Fato procurou ouvir o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania a respeito das queixas feitas pelas fontes ouvidas nesta matéria sobre a falta de estrutura para a Comissão de Anistia e o ritmo de despachos da pasta que dizem respeito ao órgão. Em nota enviada à reportagem nesta sexta (30), o ministério respondeu que, em relação à emenda parlamentar destinada ao colegiado, ela “deverá ser executada assim que for desbloqueada [pela Justiça]”.

“Importante esclarecer que, uma vez que haverá empenho dessa emenda impositiva, a comissão tem a obrigação de utilizar esse recurso antes de solicitar mais ao ministério. Contudo, por causa do cenário, o ministério se comprometeu em garantir orçamento para a realização das reuniões até que a situação se resolva.” A pasta disse que “tem atuado arduamente para assegurar os trabalhos com a recomposição de orçamento” e informou que, no ano passado, o valor aprovado pela Lei Orçamentária Anual (LOA) havia sido de R$ 158.817,00.

“Suplementamos, conforme solicitação da própria comissão, para R$ 280.962,00. Em 2024, solicitamos na PLOA [projeto de LOA] R$ 299.869,00, foram aprovados na LOA R$ 274.215,00 e, após os bloqueios iniciais da SOF [Secretaria de Orçamento Federal], restou um orçamento disponível a ser utilizado no ano de 2024 de R$ 269.387,00, que já foi todo executado”, acrescenta a nota.

Por fim, o ministério de Sílvio Almeida negou que esteja demorando para despachar demandas como a que trata de cessão do servidor que atuaria como coordenador de processos na Comissão de Anistia. “As informações não condizem com a verdade. Após demora na tramitação da cessão do servidor da Abin, optou-se pela nomeação de outra pessoa para o lugar”, alega.

Da Redação