‘Haverá muitas provocações, mas estou preparada’, diz Amanda Paschoal, única mulher trans eleita na Câmara de SP
Brasil de Fato
Entre os 55 vereadores eleitos para a Câmara de São Paulo em 6 de outubro, apenas uma mulher trans foi eleita: Amanda Paschoal (Psol), com 108.654 votos. Defensora de propostas mais progressistas, a psolista prevê embates intensos com os parlamentares contrários às suas pautas.
“Vai dar bastante trabalho para implementar justamente por conta da direita identitária, que estará mais forte na Câmara a partir da próxima legislatura”, avalia a vereadora em entrevista ao Brasil de Fato. Paschoal diz que tentará dialogar com os colegas de forma cordial, mas se houver embates, “vai ser na força do ódio mesmo”.
Um de seus projetos é a criação do programa Respeito Desde a Escola, que prevê uma formação para toda a comunidade escolar para garantir o combate a preconceitos dentro das escolas, como a transfobia.
“É uma construção de pautas de identidade de gênero dentro das escolas, que hoje não existe. São crianças vitimadas pela falta de saúde mental e pela violência que se perpetua na nossa sociedade, independentemente da faixa etária”, afirmou Paschoal.
A proposta deve enfrentar resistência de alguns dos 37 vereadores ligados à direita e centro direita. Lucas Pavanato (PL), alinhado a pautas mais reacionárias, por exemplo, defende a proibição de mulheres trans em banheiros femininos e da cirurgia de redesignação sexual, a cirurgia para mudar de sexo conforme a identidade de gênero.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: A próxima legislatura tende a ser mais reacionária. Foram eleitos nomes que representam esse setor como Lucas Pavanato e Amanda Vettorazzo. Como que você está se preparando para entrar no embate com essas figuras?
Amanda Paschoal: Estou adquirindo conhecimento, conhecendo os meus adversários e fortalecendo as pautas e a construção do projeto que eu quero colocar em jogo. Os meus saberes, sendo uma travesti que sobreviveu até hoje, que conseguiu se inserir no mercado e retomar os estudos… acredito que essa já seja uma boa base para eu conseguir desenvolver as relações de cordialidade dentro do que for possível.
Agora, com quem tiver que embater, eu acho que vai ser mais na força do ódio mesmo. E aí vai ser a partir de primeiro de fevereiro que eu vou saber como eu vou conseguir elaborar sobre os embates que eu vou ter que travar com essas pessoas, principalmente.
O que você acha dessas figuras?
Eu acho essa direita mais barulhenta mesmo, que consegue mobilizar muito a juventude. Não à toa, o Lucas [Pavanato] foi o mais bem votado [com 161.386 votos], com propostas única e exclusivamente contra trans e LGBTQIAPN+, contra pautas mais progressistas. São pautas inconstitucionais ou que não são de competência municipal. A gente percebe como as pessoas conseguem ser cooptadas por um discurso de ódio, um discurso barulhento. Vai haver muitas provocações, mas eu estou preparada.
Você acha que a comunicação da esquerda tem sido suficiente para competir com essa direita mais radical?
Eu acho que não existe uma paridade com relação à comunicação. Mesmo porque a direita usa do ódio e do medo para conseguir aproximar as pessoas do projeto político. Também consegue cooptar as pessoas que estão desacreditadas da política com a criação dessa imagem do que seria a renovação na política. Foi assim com Bolsonaro.
Infelizmente a gente também tem um déficit educacional e de desenvolvimento do senso crítico de muitas parcelas da nossa sociedade. A gente não consegue acompanhar o processo político, como funciona dentro dos cargos, como foi a avaliação do governo Bolsonaro e como é a avaliação desses parlamentares da extrema direita que se elegeram.
Nesse ponto, a esquerda pode se elaborar um pouco mais sobre a comunicação para conseguir explorar as redes sociais e garantir que as pessoas tenham mais acesso ao que representa a mudança de fato e não mais do mesmo.
A comunicação da campanha do Boulos tem sido suficiente para garantir isso?
Acho que a comunicação da campanha está muito boa. Mas é uma luta desigual. Nunes está com a máquina na mão, ele tem muito mais dinheiro para investir, tinha mais tempo de TV, tem mais pontos com material espalhados, consegue mobilizar também mais equipes para fazer o trabalho ao longo da cidade.
A missão que a gente tem é não deixar que o resultado da pesquisa diminua a energia e a esperança. Os dias que faltam são os dias que a gente precisa para conseguir virar esse jogo e fazer a mudança que São Paulo tanto precisa. E aí eu acho que a gente precisa reaproximar a política das pessoas que não querem votar, que se abstêm de votar. Vai ser difícil, mas possível.
Você foi a quinta vereadora mais votada, com pouco mais de 108 mil votos. Como avalia esse resultado? E como surgiu a ideia de se candidatar?
Eu fiquei muito feliz e realizada com a quantidade de votos que a gente conseguiu. Isso reflete não só construção política e a organização da campanha, mas o apoio da Erika [Hilton] que foi constante. Ela foi a minha mentora, a minha professora desde o começo da vereança até agora em Brasília, enquanto estive na assessoria. A gente tem essa construção conjunta.
A gente já tinha dialogado sobre a possibilidade de eu me candidatar no ano passado. Mas a decisão mesmo veio entre dezembro e janeiro. E aí eu comecei a me preparar para a campanha com base nos saberes que a Erika coloca e executa dentro do projeto dela, tanto juridicamente como a comunicação, a construção da mobilização.
Mas de quem partiu a decisão pela sua candidatura
Eu já tinha dialogado com a Erika sobre. Mas o convite mesmo em si veio dela. Mas já tinha uma vontade logo quando eu comecei a trabalhar com política. Tinha esse interesse, essa possibilidade, esse sonho distante de concorrer a um cargo público. Ao longo do trabalho de assessoria, que é bem exaustivo, eu deixei isso de lado, não era uma coisa que eu considerava muito. No ano passado a gente retomou essa possibilidade.
Decidimos que seria eu mesma. Estou muito satisfeita e acho que vai dar tudo certo da maneira que já tem dado. Agora, vai começar a ficar mais difícil a partir dos enfrentamentos que eu vou ter que travar ali dentro da Câmara, dada a atual legislatura que se elegeu.
Como o seu perfil e a sua atuação junto à Érika vão refletir nas suas pautas dentro da Câmara Quais serão as suas pautas prioritárias?
Como eu tenho esse interesse em dar continuidade ao projeto político que a Erika começou, eu vou continuar com as pautas principais que ela já defendia, que é o combate à fome; a defesa dos direitos humanos; a defesa da população LGBTQIAPN+, que também se intercala com a minha realidade; a educação popular, que foi um marcador grande na minha vida, e o investimento na cultura e no meio ambiente.
Acho que são pautas muito importantes para o desenvolvimento da cidade, para que a gente consiga construir uma São Paulo mais possível, para que as pessoas tenham a possibilidade de se desenvolver tanto na educação quanto na cultura
Você já tem algum projeto em mente?
Tenho vários projetos. Um deles é o programa Respeito Desde a Escola, que vai dar bastante trabalho para implementar justamente por conta da direita identitária, que estará mais forte na Câmara a partir da próxima legislatura. Mas é um programa de formação para toda a comunidade escolar, para garantir o combate ao bullying, ao machismo, à LGBTfobia e ao racismo dentro das escolas.
É uma construção de pautas de identidade de gênero dentro das escolas, que hoje não existe. São crianças vitimadas pela falta de saúde mental e pela violência que se perpetua na nossa sociedade, independentemente da faixa etária.
Como que você está se preparando psicologicamente para o mandato?
Acho que a melhor maneira de me preparar psicologicamente é fortalecer as minhas redes de afeto. Tenho redes de afeto muito potentes, que eu construo tanto com a minha família consanguínea quanto com a própria Erika, com as pessoas que me acompanharam na campanha e com as pessoas que vão me acompanhar dentro da Câmara a partir do ano que vem.
Essa é a minha principal base, além da construção de uma equipe bem preparada para me dar o suporte necessário. Isso vai ser fundamental para construir um projeto e manter o mínimo de saúde, porque eu sei que vou perder um pouco. Mas isso já é parte da sobrevivência de qualquer pessoa que é de um grupo marginalizado.
Não tem como, não tem outro caminho para se seguir senão ter a consciência da importância do que uma pessoa trans, uma pessoa travesti ocupar um cargo tão disputado na maior casa legislativa da América Latina. Vai ser importante também para que as pessoas possam me conhecer e mudar o que é o imagético do que é ser travesti e transexual no nosso país.
Me fale mais um pouco sobre a importância de você estar lá dentro. Você foi a única mulher trans eleita.
Eu gostaria que tivessem outras pessoas, principalmente do meu partido, também eleitas para garantir mais possibilidades de transformação dentro da Casa e fortalecer a bancada de resistência ao ódio que será posto em pauta pela extrema direita que se elegeu.
Mas acho que estar lá dentro justamente humaniza pela visibilidade que a gente tem, pela nossa capacidade de empatia, de construção de diálogo com os movimentos sociais, de entender que não é só a minha dor que está ali, não é sobre uma dor individual, é uma dor coletiva. Quando a gente fala em transfobia, em LGBTfobia, a gente também fala de combate à fome, ao racismo, à gordofobia.
Esse é o começo da sua carreira política. Você tem a pretensão de alcançar outros lugares nos próximos anos?
Eu quero cumprir o mandato inteiro, ver como as coisas vão acontecer, se eu vou ter uma boa receptividade do público, se as pessoas vão gostar do trabalho que eu vou desenvolver. Depois de um mandato inteiro concluído, eu tento a reeleição. A partir daí, se as minhas pautas e a minha potência expandirem para outros lugares, eu posso, sim, concorrer a outros cargos.