Candidatos dos EUA não falam sobre América Latina e país deve manter política de disputa com a China na região
Brasil de Fato
A eleição dos Estados Unidos vai opor a democrata Kamala Harris e o republicano Donald Trump em projetos diferentes de governo para o país. Se internamente os estadunidenses vêem programas antagônicos, analistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que, para a América Latina, a política dos EUA não muda tanto de um governo para o outro.
Nenhum dos dois candidatos que disputam o pleito em 5 de novembro têm falado sobre política exterior voltada para a América do Sul e Central. O principal tema tratado por eles é a migração. Nos debates transmitidos e nos discursos de campanha, tanto Kamala como Trump focam no combate à entrada de latino-americanos como meta para reduzir a migração aos EUA. A diferença entre eles se dá na forma como isso será feito.
Segundo o censo estadunidense, mais de 65 milhões de latinos vivem em território dos EUA, cerca de 20% da população do país. A atual vice-presidente e candidata do Partido Democrata afirmou em entrevista à CNN que as pessoas que quiserem ter uma cidadania estadunidense “têm que merecer”. De acordo com ela, é preciso fortalecer a segurança na fronteira.
Kamala propõe também expulsar quem cruza a fronteira de maneira irregular e aumentar a patrulha. Ela disse também que ações sozinhas do Poder Executivo não adiantam e que é preciso um acordo bipartidário para estabelecer políticas que sejam eficazes contra a entrada de migrantes.
Apesar do número elevado de migrantes que vivem nos EUA, a maioria do eleitorado é contrário à entrada de pessoas vindas de outros países. A pesquisa Gallup realizada em junho de 2024 mostra que 55% dos estadunidenses querem que a imigração diminua, enquanto 25% acreditam que é preciso manter o número de entradas atual e 16% acham que é necessário aumentar a entrada de pessoas.
Esse é o maior percentual de pessoas que querem uma redução da entrada de migrantes desde 2001. Por isso, o foco dos candidatos neste tema. Trump foi presidente de 2017 a 2021. Durante sua gestão, a média de deportações aumentou para 500 mil por ano. Ele pressionou os países da América Central a frear a saída de pessoas e ameaçou Honduras, El Salvador e Guatemala com o corte de apoio nas áreas de segurança e controle aduaneiro.
Contra a chegada de mais latinos
Ele também colocou fim ao Status de Proteção Temporal (TPS, na sigla em inglês), programa que facilitava a documentação de migrantes que queriam trabalhar nos EUA e proibiam a expulsão dessas pessoas dos EUA.
Durante a gestão de Joe Biden e da vice Kamala Harris o número de migrantes que entraram nos EUA aumentaram e cerca de 2 milhões de migrantes entraram pelo México, de acordo com levantamento do governo estadunidense. No entanto, os EUA também deportaram cerca de 1,1 milhão de migrantes nos primeiros três anos.
Sua vice, Kamala, foi responsável por tratar a questão migratória da América Central de perto. Ela chegou a ir ao México e à Guatemala onde disse a frase que ficou marcado na sua trajetória: “não venham”.
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Goulart Menezes, essa tem sido uma forma “monotemática” de os Estados Unidos tratarem a América Latina durante a campanha.
“O tema da migração ocupa o centro da discussão eleitoral. O triângulo Honduras, Guatemala e El Salvador, e agora Nicarágua e Venezuela, gera muita preocupação para os dois e para o eleitorado. Tem uma série de questões que eles trabalham para tentar ganhar votos. Para tirar um visto, por exemplo, é preciso comprovar uma renda de 100 dólares, e muitos latinos não têm como provar isso. Então é um tema complicado que os EUA dificultam muito a questão da migração”, afirmou.
Política externa igual? Pode ser pior…
Se o tema migratório tem ocupado o centro do debate, o analista político venezuelano David Gomes Rodriguez afirma que a política exterior dos EUA é definida como sendo de Estado e não de governo. De acordo com ele, não há uma diferença na forma que o país vai lidar com as nações da América Latina.
“A posição dos EUA para a América Latina tem uma pauta marcada de ingerência, dominação. Não é um assunto de caráter conjuntural, é um plano de Estado de como usar os recursos da América Latina. A visão imperialista que têm os estadunidenses em relação a América Latina não muda em relação às presidências. O que pode ter uma mudança é a estratégia e as táticas”, afirmou.
Para ele, Trump tem um discurso “mais agressivo e hostil”, já que fortaleceu as medidas coercitivas unilaterais, as chamadas sanções, contra países que tinham projetos políticos diferentes dos princípios fundamentais liberais e que têm como objetivo a integração latino-americana, política que choca com os interesses estadunidenses.
O professor de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela Reinaldo Tamaris concorda com essa posição. Para ele, há pouca diferença entre a política externa entre Kamala Harris e Donald Trump. Para ele, o republicano já reconheceu a ineficiência das sanções e pode adotar outro tipo de medida para manter os países latinoamericanos sob controle.
Eles mudam só de acordo com o potencial econômico e com o alinhamento. O Brasil é um exemplo de uma potência econômica que eles tratam com mais cautela e a Argentina, exemplo de país que já está alinhado. Quem não está alinhado sempre será assediado. O que muda é a estratégia. Trump demonstrou que as sanções perderam um pouco de sentido e que isso tem um custo. Ele pode usar outro tipo de estratégia para manter sob controle. Kamala deve manter essa política”, afirmou.
A volta de Donald Trump, no entanto, tem um efeito simbólico para Menezes. Como um representante da extrema direita global, o professor afirma que o retorno de Trump tem como resultado o fortalecimento desse bloco em nível global.
“Uma das principais diferenças é o diálogo institucional e a democracia. Os EUA têm um histórico de interferência na América Latina, mas um dos candidatos é da extrema direita e uma vitória do Trump fortalece a extrema direita. Esse grupo na Argentina, Brasil e Chile se fortaleceu desde o Trump. Na Venezuela também ganhou expressão. No México não é expressivo hoje, mas não sabemos o resultado com uma volta do Trump”, disse.
Rivalidade com China
O protecionismo comercial também foi uma marca dos governos republicanos e democratas. Tanto Biden como Trump colocaram mais taxas para produtos importados. O ex-presidente promete aumentar os impostos sobre importações para “níveis nunca vistos desde a Grande Depressão”.
Já o atual mandatário anunciou em setembro que iria ampliar barreiras comerciais contra sites de e-commerce chineses, que vendem produtos mais baratos na internet. Hoje, esses produtos não são taxados.
Para Menezes, essa é uma disputa clara com a influência chinesa na região, mas há uma diferença clara: a falta de projetos. Enquanto a China apresenta como proposta o programa de infraestrutura Nova Rota da Seda e pretende ampliar o bloco Brics com integrantes da região, os Estados Unidos não discutem novas cooperações ou a renovação de blocos que já existiam, principalmente com países do Pacífico.
“Um ponto fundamental é o desenvolvimento na região. A política externa dos EUA, tanto do Biden como da Kamala, é de evitar a entrada cada vez maior da China na América Latina. Nisso eles convergem, de que a China tem que ser enfrentada. Mas eles não dizem o que vão colocar no lugar. A China tem a iniciativa do Cinturão e da Rota. O que os EUA têm? Eles não apresentam nada, só programas de dolarização de economias e blocos de livre comércio, que já se esgotaram”, afirma.