ARTIGO | A longa continuidade do poder previsível

Brasil de Fato

Mas o que é que você esperava Eu estava sentado na varanda da casa de Nêgo Bispo, a quem eu sempre recorri, desde 2017, em meus momentos de desespero. Fui procurá-lo em outubro de 2020 para compartilhar meu adoecimento. Minhas últimas semanas na Universidade Federal do Vale do São Francisco tinham sido particularmente desgastantes após eu confrontar, tão abertamente quanto possível, a então pró-reitora de extensão. A ocasião era o I Fórum Regional de Sustentabilidade, Inovação e Desenvolvimento na Mineração, organizado por ela, que abusou do bordão mineração sustentável, conceito contraditório em si mesmo e sustentado pela principal parceira do evento, a empresa Mineração Caraíba S/A¹.

Fui até a casa de Nêgo Bispo, no quilombo Saco/Curtume, para conversar sobre tudo o que eu pude fazer com relação à péssima condução da instituição. Também relatei em pormenores toda nossa mobilização, minha e do professor Adalton Marques (Ciências Sociais/UNIVASF), para incluir movimentos de atingidos por barragens e mineradoras no evento. Contei como a participação dessas pessoas, condição que eu dei para participar do mesmo evento, tinha sido garantida. Contei também como a presença tanto de representantes de movimentos de atingidos quanto a minha própria presença foram silenciosamente barradas, coisa que descobrimos somente na publicação do programa do seminário. Contei também como outras pessoas, também convidadas a participarem, ao manifestarem seu desconforto com a organização do evento, também foram cortadas minutos antes da atividade. Contei tudo isso e mais um pouco. Bispo foi, como sempre, um ouvinte ao mesmo tempo acolhedor e impaciente. Isso porque ele tinha na ponta da língua o que precisava me dizer. Após me apoiar, dizer que eu tinha feito tudo certo, me perguntou: mas o que é que você esperava Afinal, quem é que forma todos os agentes colonialistas desde sempre?

Laroiê, Nêgo Bispo.

Foi com o espírito de que de onde não se espera é de onde não sai nada mesmo que participei, no último 18 de abril, da etapa preparatória para V Conferência Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável conduzido pela SEMARH (Secretaria de Meio Ambiente, Mineração e Recursos Renováveis). E não adianta a SEMARH corrigir esta informação para dizer que o RH é de Recursos Hídricos. Sabemos, todos, quais são os assuntos da SEMARH, de fato e de direito.

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Fui provocado por Roseli Pires para mobilizar gente e garantir que estaríamos atentos ao que fosse discutido na etapa regional da V Conferência de Estadual de Meio Ambiente. Nessa provocação, Roseli me enviou o Projeto de Lei Nº 76, de 08 de novembro de 2023, que eu ainda não tinha lido, ainda que já a conhecesse pela fama ruim. Li. Lentamente. E quero afirmar desde já que a mensagem 164, de 08 de novembro de 2023, assinada pelo governador Rafael Tajra Fonteles, é uma fonte preciosa para a interpretação do texto do Projeto de Lei. Afinal, o objetivo dele é renovar a legislação estadual relativa ao meio ambiente e adequá-la à realidade fática de nosso estado. Com isso o gabinete do governador está dizendo uma coisa só: é preciso adequar legislação ambiental do Piauí àquilo que ele realmente é. E o que o estado do Piauí é?

Antes de mais nada, é um estado colonialista. É tão colonialista que leva a sério uma política de anexação da região da Serra da Ibiapaba como política de desenvolvimento econômico. O desprezo destinado aos Povos da Caatinga também é digno de nota, uma vez que tudo o que as políticas de meio ambiente parecem querer fazer é gastar recursos com a educação ambiental de quem menos impacta e, principalmente, as únicas pessoas capazes de conviver com os biomas que ainda perseveram nessa relação de desejo, amor e respeito. Vale dizer que o desprezo aos povos da caatinga é, também, o desprezo eleitoral, de uma população demograficamente menos impactante na vida político-partidária e que, por isso, seguirá ignorada enquanto for possível. Veremos que isso acontece de forma flagrante e que o Projeto de Lei do governo Rafael Fonteles confessa. O estado colonial do Piauí, que promove uma nova campanha de colonização interna aguda nos últimos 20 anos, é orientado por políticas de domínio e desrespeito, e compactua, se não todo o governo, ao menos por todas as pastas e superintendências que tenham orçamento robusto, com a política de inculcação do medo em populações quilombolas, indígenas e ciganas que seguem temorosas com relação ao mais simples gesto de virem à público. Por quê? Por causa da terra. Mais terras para extrair, para acumular, no fluxo concentracionário inaugurado pelo absolutismo. Sim, a proposta de nova legislação ambiental corresponde à realidade fática do estado do Piauí.

Ao ler o Projeto de Lei, tendo em mente minha participação na etapa preparatória da V Conferência Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, pude fazer meus destaques. Sei que colegas e companheiros já fizeram algo semelhante e não quero simplesmente repeti-los. Tudo o que quero fazer é mostrar como o Projeto de Lei confessa tudo o que já sabíamos, mostrando que não poderíamos esperar coisa diferente. E não demora. Já no Art.3º vemos como o gabinete do governo do estado compreende a noção participação comunitária na formulação das ações implementadas pela lei. Desde 1988 a legislação brasileira é explícita em informar que para fins de justiça fundiária e ambiental, a população brasileira não é homogênea. E para demarcar isso, nomeia povos indígenas e quilombolas na Constituição (Art. 231, Art, 215 e Art. 68 dos ADCT, respectivamente). Se você não nomeia quilombolas, indígenas, ribeirinhos, ciganos, terras de conjunto, fundos de pasto, você esconde a sociodiversidade e os desafios ambientais de populações que não vivem achando que Teresina é grande coisa. Há quem prefira viver e conviver da terra à ser fotografado ao lado da bola da vez no Palácio do Karnak.

Ao ignorar essa distinção em todo o Projeto de Lei, o estado do Piauí segue no esforço em fingir que o Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, ou seja, é o mesmo estado de sempre. É um estado que reconhece (Lei de Terras de 2019) sem reconhecer suas implicações legais. De que vale o exercício de legislações parciais? Enfim, o Projeto de Lei advoga em favor de uma Política Estadual do Meio Ambiente que não reconhece as diferenças entre povos e seus jeitos de ser, nem de fato, nem de direito. Essa invisibilidade é própria de quem quer reduzir o impacto ambiental global sem assumir compromissos locais com pessoas reais. Dito de outra forma, quando o governo do estado fala em quilombos, indígenas, ciganos, é só propaganda para manter crédito nos órgãos de fomento. Mas enfim, vocês esperavam o quê?

O Projeto de Lei também aponta para a existência de zoneamento econômico e ecológico (Art. 4º,§ V) Mas esse zoneamento é só para produzir mapinhas de power point para fazer uma apresentação para o FIDA, e outra para o BID? Será feito pra mostrar que o Piauí está reduzindo o impacto ambiental global sendo que o Piauí não consegue sequer praticar fiscalização ambiental de verdade? Essa seria uma acusação muito séria não fossem duas coisas: quem acompanha licenciamento ambiental com a legislação debaixo do braço sabe que é exatamente isso e, como eu já afirmei anteriormente, o Projeto de Lei confessa isso. Até porque o zoneamento econômico e ecológico, nos termos do Projeto de Lei, cumpre ser um termo de gerenciamento de informações que não tem, em nenhum aspecto, o caráter de um plano diretor com efeito legal. É muito parecido com o Piauí que eu já conheço, no qual a SEMARH finge permanentemente desconhecer a diferença entre Consulta Prévia e Informada e uma Audiência Pública, exatamente porque sabe que as Audiências Públicas são ritos de humilhação das comunidades rurais, indígenas e quilombolas estado adentro.

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Caso existisse alguma preocupação em desenvolver metodologias de trabalho com Consulta Prévia, o conteúdo dos art. 10 e 11 seriam alterados, alterando completamente a forma de compreender os ritos jurídico-políticos de consulta, promovendo, ao menos, uma mudança de etiqueta na relação entre capital e colônia. Caso o Projeto de Lei nomeasse sua sociodiversidade, teria redigido o art. 13 de outra forma, na medida em que reconheceria uma diversidade de modos de uso tradicional da terra que constituem a própria vida econômica de regiões inteiras, como acontece com o Território do Desenvolvimento Sustentável Serra da Capivara. Isso implicaria uma versão muito mais sofisticada de gestão e uso do solo do que a praticada pelo Projeto de Lei. Quem sabe se a sabotagem aos modos e criatividades populares  seguirem seu curso não dá pra botar cerca em tudo e converter indígenas e quilombolas às formas monetizadas de pobreza definitivamente?

Fica evidente que estou propondo um caminho alternativo que necessariamente caotiza a formulação do Projeto de Lei colonialista. É por isso que eu me coloco na posição de imaginar. Imagino, por exemplo, o que seria fazer do zoneamento econômico ecológico um plano direto com 1) gestão participativa e 2) calendário próprio amplo, operado com a 3) captação de recursos para a utilização de equipes externas, mobilizando redes de populações tradicionais com experiência em cada demanda. Sem essa atividade preventiva, o art.18, sobre licenciamento, mostrasse desprovido de confiança, porque tudo o que a SEMARH nunca preservou foram as fases de licenciamento. Imagine se terá instrumentos para viabilizar o zoneamento econômico e ecológico como orientação de ações e fiscalização…

Sabendo que a distância de Teresina até a Serra da Capivara é maior do que o caminho contrário, convém lembrar que foram diversas as vezes em que empresas como a Galvani/Yara e a SRN Holding foram notificadas por fazerem modificações massivas de paisagem antes da emissão da licença ambiental, sem nunca sofrerem qualquer notificação com relação a isso. Imagino então que seria essa lentidão em fiscalizar, notificar e cassar licenças ambientais produzidas com evidente má-fé aquilo que o Projeto de Lei chama de morosidade? Ora, gente. Claro que não. A única demora registrada pelo Projeto de Lei diz respeito à celeridade absolutamente necessária em atender empreendimentos de escala. O que é que vocês esperavam?

A questão fundamental relativa à economia interna da lei estaria em definir instrumentos como a nomeação da sociodiversidade como fundamento do zoneamento econômico e ecológico para a elaboração de um plano diretor com estatuto de lei. Mas a única coisa que o Projeto de Lei define é emissão de licenciamento ambiental cautelar contra a morosidade de seu próprio órgão regulador. A morosidade não é definida por nenhum critério técnico. É uma regulamentação que não estabelece quanto tempo demora algo moroso, não tem dimensão. É um termo vazio de significado e de orientação para a aplicação da legislação relativa ao licenciamento inconstitucional. Dá a impressão de que um gerente de operações pode reclamar de tédio que ele será atendido. Mas vocês esperavam o quê? Queriam que o governo do estado assumisse publicamente que a SEMARH não tem condição de fiscalizar a agenda de desenvolvimento econômico do estado? Bom, o Projeto de Lei já o fez. A própria SEMARH parece já ter feito diversas vezes quando se negou em participar de quase uma década do Grito do Semiárido. Desde que eu vivo na caatinga, a SEMARH não consegue participar de atividades para acolher denúncias feitas de forma qualificada, com evidências, laudos e debates públicos. Afinal, na época entre 2015 e 2018 a Associação Territorial do Quilombo Lagoas já tinha identificado a invasão do seu território pela SRN Holding. A única vez que tivemos notícia de que a SEMARH viajou de Teresina para São Raimundo Nonato para realizar o que o órgão chama de fiscalização, foi a convite do empreendimento e do município de São Raimundo Nonato. Na hora de viajar grandes distâncias, é óbvio que damos preferência para visitar os amigos.

Se o tema da morosidade fosse assim tão importante, a primeira coisa a ser resolvida seria, no §2 do art.19, estabelecer um coeficiente de investimento em pessoal e estrutura que qualifique o tempo ótimo de apreciação das licenças, até para ver se o empreendimento é irresponsável do ponto de vista técnico, coisa que a SEMARH não avalia. Uma SEMARH sub-orçada e totalmente capturada pelo sistema de investimento partidário está reduzida uma segunda secretaria de meio ambiente de Teresina, feita para acolher empreendimentos de colonização do interior do estado. Com isso, ao invés de qualificar a pasta, inovando a gestão, promove o esbulho ambiental, fazendo do órgão um mero satélite de interesses privados. Tal como redigido pelo Projeto de Lei, basta uma reunião de gabinete com empreendimentos cujo licenciamento ambiental esteja travado para que, a partir de uma deliberação privada, se é que vocês me entendem, saia o licenciamento cautelar. Eu só me pergunto como é que isso não é legitimação do abuso de poder econômico. Porque é.

Mas o Projeto de Lei ao menos estabelece critérios de multas, não? Bom, o que é que vocês esperam de um governo do estado que não tem sequer a publicação da memória dos Estudos de Impacto Ambiental que ele mesmo aprova Por exemplo, onde está a avaliação governamental dos documentos que indicavam que mineração de diamante seria o principal promotor de desertificação de Gilbués? Onde está a avaliação técnica de Estudos de Impacto Ambiental que negavam a existência de territórios quilombolas constituídos? E o que a SEMARH tem a dizer a respeito das diversas áreas apontadas como pontos de lavra de extração de minério e ferro dentro do Território Quilombo Lagoas que coincidem com ilhas de calor? Se a discussão sobre licenciamento ambiental no estado fosse amadora e irresponsável promoveria uma biblioteca virtual dos estudos de impacto para que qualquer pessoa pudesse investigar o rigor desse material, e se os mesmos tinham condições de ser aprovados. Fazer isso seria fazer aquele carinho atrás das orelhas da universidade, de forma que ficássemos quietinhos lendo enquanto a bagaceira continuasse. Mas nem isso. A discussão ambiental é francamente colonialista. E há um motor econômico que move isso, obviamente.

Desde os anos 1990 que grassa no Brasil uma guerra fiscal entre estados com o objetivo de produzir atração de investimentos. Vale dizer que essa é a única função inquestionável do Estado, sendo prevenir fome e outras ameaças uma variável histórica muito imprecisa. A ênfase em combater a morosidade do licenciamento ambiental no estado do Piauí, da parte do Projeto de Lei, é mais um capítulo da guerra fiscal de antanho. Mas é a desregulamentação da legislação ambiental quem, nas últimas décadas, vem promovendo barateamento do custo operacional. Assim, respeitando a ordem dos fatos para o estado do Piauí, uma política ambiental só deve acontecer se ela for bem baratinha, fazendo com que, mesmo multado, o empreendimento seja viável por meio da infração. E se tiver uma cerejinha no bolo, tanto melhor. E tem.

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O §4 do art.24 prevê a conversão de parte do valor das multas em projetos socioambientais custeados pelo infrator. Dito de outra forma, penalizar com a oferta de um espaço institucional para fazer propaganda do empreendimento. Assim, não se interessa se o Território Quilombo Lagoas foi invadido mais de uma vez, sem ter conduzido nenhuma investigação consistente a título de informação. O que importa é que empreendimentos gastem um percentual invisível do seu orçamento na promoção de práticas de educação ambiental que pede que a criança jogue lixo no lixo, mesmo que seja vizinha de um lago destruído por um empreendimento minerário. Essa condição é própria de diversas comunidades, como aquelas que, no norte da Bahia, sofrem pesadamente com extração de fosfato em uma área de Fundo de Pasto. A mera presença dessas empresas oportunizam o acirramento de conflitos armados na região, ocasionando a grilagem de terras. Atividades de mineração são alérgicas à regularização fundiária e à organização popular, sem as quais nenhuma política ambiental é possível, e sua mera presença, quando não é por meio da participação ativa, visam conduzir os vizinhos do empreendimento à alienação da vida em seu bioma.

Acho que fica claro que o estado do Piauí está formalizando aquilo que deveras é. Dá o benefício para o infrator. Entrega uma licença ambiental cautelar para formalizar as práticas já presentes no estado desde há muito tempo, sem que nenhum órgão da justiça tenha devidamente processado ou mesmo denunciado formas não fiscalizadas de abuso e destruição. Ao mesmo tempo, não caracteriza os que, desde que existe colonização, seguem vítimas de abuso de poder financeiro, invasão de terras e desrespeito público. Inexistentes na lei ambiental seguem, assim, sujeitos ausentes da desinformação da decisão judicial sendo, por decisão e persistência do governo do estado, a encarnação da vida matável sem que sua morte seja crime. É assim que uma legislação mata a própria população sem que essa população seja declarada existente, o que é, também, mais uma forma pela qual esse Projeto de Lei adéqua a legislação ambiental à realidade fática do nosso estado. Mas enfim, vocês esperavam o quê? Seguramente que essas orientações críticas ao governo do estado do Piauí, não fossem as teses da delegação de São Raimundo Nonato para a V Conferência Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, a acontecer o dia 05 de junho de 2024, seriam somente palavras ao vento. Mas são. Estaremos em Teresina, a não ser que, como a instituição onde eu trabalho, eu venha a ser desconvidado na última hora, mesmo tendo sido eleito para dizer que NÃO.
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¹ A transmissão ao vivo do evento encontra-se disponível no canal da UNIVASF, na chamada do I

https://www.youtube.com/live/If_Dh-8eLtE?si=N4KtFLzPxwsaG3Gb

https://www.youtube.com/live/F_4mMbNKr6M?si=kWaOTP6qqB9q67Td

Bernardo Curvelano Freire é coordenador do Observatório Transversal da Caatinga; Professor da Pós-Graduação em Política, Cultura e Ambiente; PoCAM/UNIVASF Professor do Colegiado de Antropologia; CANT/UNIVASF; Delegado Regional da V Conferência Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável / São Raimundo Nonato)

Da Redação