Presos de cadeia de SP e familiares denunciam tortura em abaixo-assinado e pedem ‘socorro’ aos ‘direitos humanos’

Brasil de Fato

Em uma folha de caderno escrita à mão, ao menos 33 homens encarcerados na Unidade Prisional de Reginópolis II, no interior paulista, escreveram uma carta pedindo “socorro aos direitos humanos” e à imprensa, ao denunciar estarem sob um regime de tortura

No documento, os detentos relatam estar com hematomas, sofrendo agressões físicas e psicológicas rotineiramente e com falta de acesso a banho de sol. Afirmam também que as visitas estão sendo revistadas manualmente, o que é proibido desde 2014 pela legislação paulista e considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) desde 2023. Pedem, com urgência, que órgãos fiscalizadores visitem os raios 5, 6, 7 e 8 da unidade “de corpo presente”.    

Todas as linhas da folha estão ocupadas e, após a 33ª assinatura, lê-se em letras garrafais: “Faltou espaço”.  As denúncias são reiteradas em uma petição online assinada até o momento por 190 familiares de pessoas presas em Reginópolis II e também em entrevistas colhidas sob anonimato pelo Brasil de Fato

Mulheres que têm filho ou esposo na unidade alegam que em dias de visita sofrem constrangimentos, são tocadas por funcionárias e obrigadas a fazer necessidades na frente de agentes. Dentro do presídio, dizem encontrar detentos machucados pelo Grupo de Intervenção Rápida (GIR), tropa de elite de policiais penais.  

De acordo com dados da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), a unidade prisional de Reginópolis II tem capacidade para 811 pessoas, mas encarcera atualmente 1186. A superlotação do presídio, cujo diretor é Alessandro Tonhão Riqueti, é de 46,24% acima do número de vagas. 

“Bem-vindo ao inferno”

Léia* está com o filho preso no raio 5 da prisão. “O GIR está entrando todos os dias e batendo muito neles”, conta. Segundo ela, todos os que chegam ao presídio são agredidos. Na petição online, familiares denunciam que “os meninos” são recebidos com um “bem-vindo ao inferno”. 

Recentemente, ao visitar o filho, Léia viu e conversou com alguns homens de um grupo de 24 que tinha acabado de ser transferido para Penitenciária II de Reginópolis. “Eles apanharam, tiveram suas coisas jogadas e rasgadas e entraram sem nada. Os outros presos é que estavam lá ajudando eles”, ressalta.  


O GIR foi criado em 2002 em Sorocaba (SP) para revistar celas e contar rebeliões; ao longo dos anos expandiu sua atuação e alcance / SAP-SP

O esposo de Marilda* foi liberto no mês de setembro. Ela confirma que todos que chegam à unidade são agredidos, em especial por um agente de quase dois metros de altura, conhecido como “seu Jão”. “Os raios 5, 6, 7 e 8 são os que mais sofrem na mão da direção dessa unidade. São os raios em que eles oprimem, humilham mesmo”, relata Marilda.  

“Se a pessoa tem quantidade a mais de peça de higiene, o GIR põe tudo dentro de um saco e joga fora. É desumano. Eles deixam os meninos na tranca sem banho de sol, sem alimentação, é um descaso total”, diz. Léia acrescenta que a falta de água e luz também é regra. “Foram os piores dias da vida do meu companheiro”, resume Marilda.  

De acordo com Léia, antes das visitas os presos de todos os raios têm direito ao chamado “faxinão”. É quando limpam o espaço para receber seus familiares. No raio 5 isso estaria proibido.   

Revista vexatória: “colocam as mãos em nós”

“Na hora da visita, depende se a agente vai com a tua cara, tá? Elas colocam as mãos em nós. A gente passa por constrangimento, tem que mostrar a calcinha, abaixar, levantar. Muita coisa que a gente leva, a gente tem que jogar fora”, narra Léia.  

“Se eles não arrumam nada com você, te obrigam a ir ao banheiro. É isso mesmo: obrigam a gente a fazer necessidade na frente deles. Se não fizer, eles te dão ‘gancho'”, diz Marilda. Gancho é o nome dado para a suspensão, por um tempo determinado pela gestão do presídio, do direito de visitar seu familiar preso.  

“Ali eles tratam as visitas como lixo, de verdade. A revista é física, eles põem a mão no nosso corpo e isso é proibido a partir do momento que entrou o scanner”, denuncia Marilda.  

A lei estadual que proíbe revista vexatória (15.552/14) foi aprovada em agosto de 2014, após anos de pressão de movimentos abolicionistas, de familiares de pessoas presas e entidades de defesa de direitos humanos.  

A legislação determina que nenhum estabelecimento penal de São Paulo poderá fazer a visitante se despir, agachar ou se submeter a “exames clínicos invasivos”. A revista, diz a lei, será “mecânica” e feita por equipamentos como scanners corporais, detectores de metais e aparelhos de raio X.  

Em maio de 2023 o STF também proibiu as revistas íntimas físicas em todo o país, as considerando uma violação à dignidade de familiares de pessoas presas. 

“Ali em Reginópolis eles põem a mão no seu corpo, te fazem levantar a camisa, põem a mão no teu top, te fazem abaixar a calça. Teve uma colega que tem cílios grandes e ela passou rímel, ficou volumoso. A agente fez ela cuspir no dedo e passar nos cílios para ver se não era postiço”, conta Marilda.  

Procurada pelo Brasil de Fato, a SAP informou que as unidades prisionais “atuam dentro dos padrões de gerenciamento do sistema penal” e que possuem aparelhos como os scanners, “que evitam contato físico para revista”.   

“Já me maltrataram”, diz Luara*, que está com o marido preso também nesta unidade. “O agente me fez passar várias vezes no scanner de todas as formas”, diz, se referindo à visita que fez em agosto. “De costas, de frente, com as mãos para cima, meio que agachada”, descreve: “é humilhante”. 

No último Dia dos Pais, em 11 de agosto, Luara conta que uma amiga sua levou as crianças para visitar o pai. “Ela estava mexendo no cabelo da filha, arrumando. O funcionário falou que ela estava tirando piolho e não deixou ela nem as crianças entrarem no Dia dos Pais”, diz.  

“Neste mesmo dia, encanaram com outra conhecida. Depois de mandar passar várias vezes no scanner, disseram que apareceu uma mancha e que ela não iria visitar”, expõe Luara. “Eles falaram para ela assinar um termo concordando com o procedimento que eles estavam fazendo. Ela não queria e o funcionário falou, foi bem claro: ‘ou você assina o papel ou eu vou levar o seu marido para o castigo'”, denuncia. 

Em nota, a SAP informou que a sua Corregedoria “recebeu duas denúncias sobre revista vexatória na Penitenciária II de Reginópolis. Após as providências necessárias para elucidação dos fatos, foi determinado o arquivamento do caso”.  

“Logo o pior vai acontecer”

“O que puderem fazer para acabar com a vida do reeducando nesta unidade II de Reginópolis, eles vão fazer. O diretor… eu não sei descrever… é um torturador. Porque os agentes dele são treinados para torturar, humilhar os meninos. Eles não têm dó. Para oprimir as visitas”, sintetiza Marilda. 

O Brasil de Fato entrou em contato com o diretor do presídio. Alessandro Tonhão Riqueti informou que não tem autorização para dar entrevista, que a resposta formal é a da SAP e que ele já respondeu sobre as denúncias para as instâncias competentes – entre elas, para a Corregedoria da SAP, que arquivou os casos.  

“Esta unidade precisa urgente de atenção. Porque senão, não vai demorar para o pior acontecer. A gente pede socorro antes que aconteça a morte de algum reeducando lá dentro”, alerta Marilda.  

* Nomes alterados para a preservação das fontes.

Da Redação