O que o apagão em São Paulo tem a ensinar para Minas Gerais?

Brasil de Fato

A Região Metropolitana de São Paulo foi atingida por uma forte chuva na última semana, com rajadas de vento de mais de 100 km/h, deixando ao menos 2,1 milhões de endereços sem energia elétrica. Cinco dias após o evento climático, na quarta-feira (16), ao menos 100 mil imóveis permaneciam às escuras.

A distribuição de energia na capital paulista é privatizada desde 1998, quando a Eletropaulo foi adquirida pela AES, em sistema de concessão. A Enel, empresa italiana, comprou a participação da AES em 2018 e deve gerir a distribuição de energia da maior cidade do país até 2028. Com dois apagões de grande porte em menos de um ano, a empresa enfrenta fortes críticas e patina para restabelecer a normalidade dos serviços. 

Já no dia seguinte ao apagão, teve início uma queda de braço para definir os culpados pela falha. Em suas redes sociais, o atual prefeito Ricardo Nunes (MDB), que concorre à reeleição contra Guilherme Boulos (Psol), atribuiu à empresa concessionária a responsabilidade pela ineficiência em impedir o apagão e retomar a distribuição de energia nos locais afetados. Por outro lado, o trabalho de zeladoria adequada da cidade, principalmente no âmbito da gestão de podas e remoções de árvores, que é responsabilidade da prefeitura, poderia ter minimizado o impacto do evento. 

Privatização e precarização dos serviços 

Segundo especialistas, o processo de privatização de recursos estratégicos está diretamente ligado a falhas como a ocorrida em São Paulo e prejudica sobretudo a população mais vulnerável. Na opinião de João Bosco Senra, doutor em saneamento, meio ambiente e recursos hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o apagão tem duas causas principais: a privatização do setor elétrico e a gestão ineficiente da prefeitura em acompanhar os trabalhos na retomada da energia.

“A cidade de São Paulo passou a ter, na gestão de sua energia, uma empresa cujo objetivo não é atender a população, mas aumentar seus lucros, razão pela qual demitiu vários trabalhadores que conheciam a cidade e seu sistema elétrico. A fim de reduzir custos, ela contratou, com menores salários, pessoas sem nenhuma experiência ou conhecimento específico na área”, afirma João, que também lamenta ver perdido o capital intelectual e científico construído por empresas públicas, em favor do aumento dos lucros.

Justamente por essa razão, frente a uma queda generalizada de energia, a retomada do serviço fica muito mais lenta. É o que também afirma Marina Oliveira, integrante da Campanha Fora Zema, que reúne mais de 200 organizações sociais e sindicais em Minas Gerais. 

Podemos aprender com SP e barrar o processo de privatização das empresas públicas de MG, diz pesquisador

“Quando a distribuição de energia passa a ser controlada por empresas privadas, elas tendem a priorizar a rentabilidade e a redução de custos. Isso se traduz em falta de investimentos adequados em infraestrutura, modernização das redes e manutenção preventiva. Além disso, a privatização fragmenta o controle estatal sobre um recurso estratégico, dificultando a implementação de uma política energética que atenda, de fato, aos interesses da população”, explicita.

Outro causa direta da tragédia em São Paulo, segundo João Bosco, é a ineficácia no acompanhamento da prefeitura ao trabalho de restauração das linhas. Como, em muitos casos, o problema envolve a queda de árvores, o processo de reparo precisa ser feito conjuntamente com a prefeitura. Ele ressalta ainda o papel da mesma em verificar as condições de atuação da empresa e manter o acompanhamento junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

“Como está o trabalho da empresa Ela está cumprindo o contrato? Porque com a Aneel em Brasília e tendo a atual diretoria indicada por Bolsonaro (PL), se a prefeitura não tiver uma ação proativa para acompanhar o trabalho na cidade, a empresa não será devidamente fiscalizada”, continua Senra. 

Na quarta-feira, (16) o ministro de Minas  e Energia, Alexandre Silveira (PSD), criticou o trabalho da Agência Nacional de Energia Elétrica. Segundo ele, foi enviado um ofício à Aneel para que a agência tomasse providências a respeito da Enel, tais como um processo administrativo, intervindo a fim de que a empresa transfira a responsabilidade do serviço a outra companhia ou mesmo para que a concessão fosse encerrada.

O que Minas pode aprender com isso? 

Em Minas Gerais, a gestão da distribuição de energia elétrica é feita majoritariamente pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). Fundada em 1952, a empresa pública é considerada a maior empresa integrada do setor de energia elétrica do Brasil, sendo atualmente a maior comercializadora de energia para clientes livres do país. Na opinião de João Bosco, a Cemig é estratégica. 

“A Cemig é estratégica para a vida e para a economia do estado e foi construída com os recursos dos mineiros. Então, ao colocar na Constituição do Estado a necessidade de ter dois terços de aprovação da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) e referendo popular para a privatização, Itamar Franco teve uma visão estratégica de futuro “, afirma.

Apesar disso, nos últimos seis anos, sob o governo estadual de Romeu Zema (Novo), a Cemig tem sofrido constantes ataques. João Bosco explica que, desde de 2019, teve início na empresa um processo de privatização pela via da terceirização de serviços, gerando desmanche, a partir da redução das equipes. 

Quando a distribuição de energia passa a ser controlada por empresas privadas, elas tendem a priorizar a rentabilidade e a redução de custos

“Isso acaba gerando alguns problemas no serviço prestado, o que é de interesse do governador, para colocar a população contra a Cemig e facilitar a sua privatização. Porém, com a privatização, o que vemos é o que está acontecendo agora em São Paulo, uma série de problemas com a empresa que assumiu a concessão”, complementa o especialista. 

Ele enfatiza ainda que, embora Minas Gerais também tenha problemas com apagões, por conta da expertise da Cemig, o cenário permite uma resposta bem mais rápida.

“Podemos aprender com São Paulo e barrar o processo de privatização das empresas públicas de Minas. Temos que chamar a atenção para os deputados que defendem as estatais. Infelizmente, não são todos que têm essa postura de defesa do patrimônio público. Na próxima eleição, é necessário dar um basta a esse tipo de governo, que entra para o poder público para favorecer o interesse privado “, reitera.

Sofre mais quem tem menos 

Na visão de Marina Oliveira, com o processo de privatização, quem sofre são, sobretudo, as populações mais pobres. 

“Em vez de considerar a energia como um bem público comum da humanidade e um direito fundamental, a privatização trata a energia como uma mercadoria, o que pode agravar crises, aumentos de tarifas, insegurança no fornecimento e exclusão energética de populações mais vulneráveis”, afirma.

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Opinião com a qual também corrobora Senra. Para ele, há uma tendência mundial de desprivatização, por conta da piora dos serviços e do aumento das tarifas. 

“Quando falta energia e o objetivo é o lucro, o último lugar que as empresas privadas vão religar a luz são bairros de menor consumo, ou seja, os bairros de renda mais baixa. Onde se paga uma conta mais alta de energia, a luz volta com mais rapidez. O objetivo é lucro e não o bem estar da população, que acaba pagando por isso, como nós temos visto “, denuncia o especialista. 

O impacto das mudanças climáticas 

Com a aceleração da crise ambiental em curso, eventos climáticos extremos passam a ser cada vez mais comuns, o que demanda um sistema de gestão e contenção para tais catástrofes. Nesse sentido, a imprevisibilidade de tais tragédias naturais não caberia como justificativa para o cenário em São Paulo. É o que defende Bosco. 

“Temos que levar em consideração que estamos entrando em um processo de mudança climática severas, teremos chuvas cada vez mais fortes, secas cada vez mais intensas e isso, invariavelmente, afeta o sistema de produção e distribuição de energia elétrica. Precisamos parar de colocar a culpa nas árvores e passar a ter ações para minimizar esses impactos”, comenta.

Ele ressalta ainda que as estatais são fundamentais neste processo de preparação. 

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“A situação das condições climáticas tende a piorar, assim, a questão da água e da energia precisa ser cada vez mais estratégica e, por isso, é fundamental que continue como gestão pública, tendo assim, interesse em atender à população e não ao lucro dos empresários”, complementa João. 

Em consonância, Marina defende a soberania energética como saída para a crise.

“A soberania energética, em uma perspectiva popular e nacional, requer um modelo em que o Estado, em parceria com a sociedade, assuma o controle dos recursos energéticos e garanta que a gestão desse setor esteja a serviço das necessidades e direitos do povo brasileiro, promovendo desenvolvimento sustentável e inclusão social. No caso de São Paulo, a privatização representa um descompasso com essa lógica, pois retira o controle do Estado sobre um setor essencial e não prioriza a distribuição justa e eficiente da energia”, afirma. 

Da Redação