Contra a tutela do Estado, indígenas protestam em Brasília e rejeitam PEC do marco temporal

Brasil de Fato

Indígenas de diversas etnias e organizações indigenistas realizaram um ato nesta quarta-feira (30), em Brasília, contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48, que pretende alterar o texto constitucional para inserir na Carta Magna o marco temporal do dia de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988, como limite para a definição da ocupação tradicional da terra pelas comunidades indígenas.

“Durante a constituinte, um dia meu avô chegou na nossa Terra Indígena, que fica no sudoeste do Paraná, em Mangueirinhas, e disse: ‘Meu neto, agora não somos mais tutelados. O Estado não pode retroceder a constituinte e nos tutelar novamente'”, declarou a liderança indígena Kretã Kaingang, durante o ato.  

Na mesma linha, outra líder, Alessandra Munduruku, fez um chamado ao respeito às garantias estabelecidas pela Constituição de 1988 de direitos aos povos originários. “Primeiramente, a gente precisa de respeito. Quando foi criada a Constituição de 1988, a gente tinha dois artigos de proteção aos territórios, aos povos indígenas e à demarcação. Infelizmente, no Congresso, na Câmara e em todos os setores, eles tão violando nossos direitos”, declarou.

“A PEC 48 afronta a Constituição na nossa cara, com todo o sofrimento que nós estamos hoje enfrentando, a seca, as queimadas, as mortes dos peixes, dos rios, e de repente você tem que se deparar com o Senado, que viola nosso direito, o Senado, que muitas vezes não quer ouvir os povos indígenas, não quer saber do ambiente”, protestou.  

Já Luis Ventura, secretário-geral do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), destacou que até mesmo as mudanças no texto constitucional são limitadas e não podem alterar cláusulas que versem sobre os direitos humanos, consideradas pétreas, ou seja, sem possibilidade de modificação por emendas.

“Os direitos dos povos indígenas são cláusulas pétreas na Constituição, portanto, não cabe ao Congresso Nacional nem promulgar leis, nem projetos de emendas à Constituição que não são viáveis, porque estaria tentando reformar cláusulas pétreas, que são inamovíveis”, declarou.

“O governo federal precisa entender que é necessário muito mais da parte dele, muito mais determinação política, muito mais determinação para retomar a demarcação e a proteção dos territórios indígenas”, cobrou Ventura. 


Indígenas se concentraram nas imediações do Museu Nacional e caminharam até a sede do Congresso, de onde não puderam passar. / Leonardo Fernandes

A PEC 48 é vista como mais uma tentativa do Congresso Nacional de legislar sobre a matéria, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha declarado a inconstitucionalidade da tese, em setembro de 2023. “A gente entende a PEC como uma vontade do agronegócio brasileiro em fazer se impor uma decisão que já foi declarada inconstitucional, né? O marco temporal é uma tese inconstitucional. Essa PEC, portanto, é uma PEC que já nasce inconstitucional”, destacou o advogado indigenista coordenador jurídico da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Maurício Terena.     

Atualmente o projeto, que é de autoria do senador Hiran Gonçalves (PP-RR), tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal.  

Judiciário conciliador 

No STF, o ministro Gilmar Mendes é relator de um conjunto de ações que questionam a constitucionalidade de outra norma aprovada pelo Congresso, a Lei 14.701, de outubro de 2023, que impôs o marco temporal via legislação infraconstitucional. Os indígenas criticam a manutenção da vigência da lei aprovada e a instauração de uma mesa de conciliação para um tema sobre o qual a própria Corte já firmou entendimento contrário.

“O Supremo tem cada vez mais adotado uma postura conciliatória em pautas polêmicas e caras, que dizem respeito ao próprio tribunal. A gente percebe que o tribunal está tentando equalizar um pouco os interesses em torno dessa pauta do marco temporal”, comenta Terena. Em agosto deste ano, as organizações indígenas decidiram se retirar da mesa, por considerá-la uma tentativa de “conciliação forçada e compulsória“.   

“A gente confia no tribunal, a gente segue acreditando, inclusive, na colegialidade dessa instituição. Mas como isso está nas mãos de um ministro, do ministro Gilmar Mendes, e ele não suspendeu a lei, a gente acredita que isso, sim, em alguma medida, contribui para que o Congresso continue acreditando que ele tem espaço para ganhar ou reverter algo que já foi dito pelo tribunal”, afirma o advogado. 

Os indígenas afirmam que a vigência de uma legislação reconhecidamente inconstitucional e que fere direitos dos povos indígenas, já produz efeitos nocivos nos territórios, como a paralisação de diversos processos demarcatórios e o agravamento das situações de violências contra povos originários.  

Ao final do ato, representantes indígenas encaminharam ao governo federal, às presidências da Câmara, do Senado e ao STF uma carta em que apresentam 25 reivindicações, entre elas, “a publicação de portaria declaratória de 12 Terras Indígenas (TIs), a retirada de tramitação e arquivamento definitivo das Propostas de Emenda à Constituição que desconstitucionalizam os direitos indígenas, a exemplo da PEC 132/2015, PEC 48/2023, PEC 59/2023, PEC 10/2024 e PEC 36/2024, e declaração imediata da inconstitucionalidade da Lei n.º 14.701/2023 pelo STF”.

As lideranças indígenas pedem ainda que, enquanto não haja uma decisão da Corte sobre a lei, a norma seja suspensa para evitar o agravamento dos conflitos nos territórios e permitir o andamento dos processos de demarcação.    

Da Redação