‘Nosso povo não está nem abandonado, ele não é contado’: terreiro não consegue acessar recursos para reconstrução no RS

Brasil de Fato

O Rio Grande do Sul figura como um dos estados com a maior concentração de terreiros e casas de matriz africana do país. De acordo com o Ministério da Igualdade Racial, há aproximadamente 1,3 mil comunidades tradicionais de matriz africana e de terreiros que, devido ao desastre climático, foram afetados e ficaram sem acesso à água, energia, alimentos. Outros chegaram a ficar destruídos.

Um mapeamento realizado pelo Conselho dos Povos de Terreiro do estado do Rio Grande do Sul (CPTERGS) aponta que 650 terreiros tiveram perda total e enfrentam dificuldades para se reerguer. 

Um desses locais é a Casa de Orixás A Roça, localizada no município de Feliz, na Serra Gaúcha. O terreiro é conduzido pela Yá Patrícia do Xangô, também conhecida como Mãe Patrícia, que há 14 anos atua no município serrano, com trabalho de acolhimento, de resgate de mulheres, crianças e dependentes químicos, entre outros. 

Mãe Patrícia conta que na manhã do dia 30 de abril começou o deslizamento de terra dos terrenos vizinhos, que atingiu o barracão da Ilê Obá Kosso Asé Ogunjá Agadá. “Acontece esse deslizamento. Eu tiro minha mãe da casa dela, dez minutos depois soterra a casa, que foi atirada pra cima do pavilhão. Nesse pavilhão construímos um forno a lenha. Ali a gente fazia oficina de pães artesanais. Tudo isso foi para o chão. Tudo foi destruído, ali é o coração do lugar. Eu tinha uma cozinha que era uma cozinha de axé, onde tocávamos os projetos para que mulheres tivessem condição de criar sua autonomia através da cozinha.”

Sob orientação da Defesa Civil, a comunidade saiu do local por risco de novos deslizamentos. Conforme expõe Patrícia, não só o território, como a rua de acesso foi afetada. “Eles só abrem essa rua porque eu vou a público. Eu vou a público cinco horas da tarde, e às sete horas da manhã do dia seguinte, os caminhos começam a abrir o acesso, no sexto para sétimo dia. Eu levei 12 dias para entrar dentro da roça”, conta.


Foto: Arquivo Pessoal

Sem respostas do poder público

Ao voltar, ela viu as duas cozinhas totalmente destruídas, assim como o salão, os quartos de acolhimento e diversas plantas. “Eu não tenho só o Candomblé. Eu tinha uma biblioteca, com exemplares raríssimos, por que aqui é um ponto de cultura afro, que ficou soterrada. Os elementos do Candomblé, as obrigações, as louças, fora a parte do museu de Cultura, tudo foi soterrado.”

Ela recorda que, para ter segurança no retorno, precisava de máquinas para retirar a terra que desceu. “A resposta da prefeitura é que eles não podiam, dai eu vou a público de novo. Eu consigo que a máquina fique dois dias e meio aqui dentro, só tirando a terra de um lado para o outro, e me dando segurança para entrar para dentro do pavilhão e tirar o que sobrou”, pontua.

Quatro meses depois da enchente que devastou o estado, Mãe Patrícia ainda espera resposta do município para a situação do território. “Não tem segurança. Eu tive que trazer um geólogo do território quilombola para fazer análise do terreno, porque a análise da prefeitura é totalmente diferente da análise que o geólogo me deu. A área que o geólogo diz que [a área] de alto risco é três vezes a área que a prefeitura notificou para o estado”, aponta.


Foto: Arquivo Pessoal

O território tem 6,7 hectares, dos quais 1,5 hectare é utilizado para a práticas religiosas. O processo de reconstrução está sendo muito dolorido, desabafa. “Hoje a revitalização e reconstrução seria em torno de R$ 400 mil reais”, estima. 

Em junho do ano passado, Mãe Patrícia já havia protocolado junto à prefeitura e à Secretaria de Obras um pedido de análise para o possível risco de deslizamentos de terra em áreas vizinhas que poderiam atingir a Roça. “A prefeitura não responde protocolo nenhum. Eu tenho mais de 40 protocolos pedindo que eles venham ver, para que eles revitalizam o acesso à Roça, porque é uma área particular de uso público”, aponta.


Vista de cima da localidade do território / Foto: Arquivo Pessoal

Recursos

No dia 6 de agosto de 2024, na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, foi realizada uma reunião aberta de escuta dos povos de terreiro. O evento teve mediação dos defensores públicos federais Yuri Costa, coordenador do Grupo de Trabalho Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União (DPU), e Natália Von Rondow, integrante do GTPE. Participaram do evento lideranças de terreiro, o Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, o Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (Codene), os Defensores Públicos Federais, a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a Comissão de Verdade Sobre a Escravidão Negra – OAB/RS e assessores parlamentares. 

Na ocasião Mãe Patrícia solicitou a liberação de verba, assim como foi feito para o agronegócio. “Assim como vocês liberaram para as indústrias, eu quero uma rubrica. A busca é esta, que exista uma linha de crédito. Eu não estou pedindo que o estado me dê dinheiro, não estou pedindo que o município me dê dinheiro, não estou pedindo que a federação me dê dinheiro. Eu estou pedindo que seja liberado porque eu tenho CNPJ sem fins lucrativos. Esta comunidade tem condições de pagar uma prestação pelo tempo que for, com os mesmos juros que liberou para o agro, porque nós promovemos cultura, nós promovemos informação, nós promovemos educação, não só religiosidade”, ressalta.

No dia 7 de agosto, uma missão organizada pela DPU fez visita a alguns terreiros do estado, entre eles a Roça. O relatório elaborado pela missão aponta, entre os seus encaminhamentos, que a reconstrução dos terreiros precisa entrar no orçamento com destinação expressa e específica. “É necessário dar visibilidade orçamentária que sustente políticas públicas dessa natureza. Não pode o orçamento eventualmente destinado à reconstrução ficar na rubrica de gastos gerais, sob pena de inviabilizar sua especificidade e prioridade, inclusive enquanto comunidade tradicional”, diz.


Espaço oferece oficinas e debates / Foto: Arquivo Pessoal

Conforme enfatiza o documento, a reconstrução física dos terreiros atingidos não está sendo encarada como política pública. “O Estado está deixando nas mãos dos líderes de terreiro tal reconstrução, ou seja, exclusivamente sob a iniciativa privada. Tal quadro deixa de considerar os terreiros como espaço comunitário para fins de políticas reparatórias.”

Como encaminhamento, o documento recomenda a articulação da rede com gestores e legislativo federais, estaduais e municipais responsáveis pela assistência no contexto de reconstrução do Rio Grande do Sul, no sentido de dar o adequado direcionamento à política pública. Também a provocação aos legislativos federal e estadual, “no sentido de regulamentar a destinação orçamentária aqui referida, inclusive por meio do apoio a projetos de lei já existentes”. 

Ainda segundo o relatório, os órgãos públicos federais, estaduais e municipais tratam os terreiros somente como local religioso. Deixam de os reconhecer como espaço comunitário que desenvolve atividades de amparo que extrapolam o campo religioso, notadamente em contextos de calamidade pública, a exemplo da alimentação, assistência psicológica, medicinal/curativa e abrigamento.

Com o intuito de fomentar a criação de políticas públicas específicas voltadas para as comunidades religiosas de matriz africana, o deputado estadual Matheus Gomes (Psol) protocolou no final de agosto, o projeto de lei que se propõe a alterar a lei nº 16.134, de 24 de maio, que institui o Plano Rio Grande, Programa de Reconstrução, Adaptação e Resiliência Climática do Estado do Rio Grande do Sul, assim como a lei nº 16.138, de 7 de junho de 2024, que trata da Política Estadual de Habitação de Interesse Social (PEHIS). 


“O processo de reconstrução está sendo, muito dolorido”, desabafa Mãe Patrícia / Foto: Arquivo Pessoal

O que diz a prefeitura

Em resposta ao documento enviado pela Defensoria Pública da União, a prefeitura de Feliz informou que assim como a sede de A Roça – A Casa dos Orixás, outras entidades também foram duramente afetadas pela enchente e deslizamentos.

“Valorizamos a iniciativa da Defensoria Pública da União que tem o objetivo de articular e dar visibilidade a políticas públicas voltadas para esse grupo específico. Entretanto, com base no exposto, verifica-se que existem outras entidades de nossa cidade em situação semelhante e, da mesma forma preocupante. Cabe ressaltar também que determinados pontos, como é o caso de A Roça, encontram-se se em áreas privadas, em nome de terceiros. O município de Feliz ainda tem diversos espaços públicos, ruas, estradas e prédios de sua responsabilidade que necessitam de reconstrução e, infelizmente, não tem condições financeiras e materiais de auxiliar e atender todas as demandas de forma imediata. Caso que é caracterizado como o estado de calamidade pública que estamos vivendo, assim como dezenas de outros municípios do Estado do Rio Grande do Sul”, diz.

Racismo religioso

“É um trabalho muito cansativo, você está sempre batendo, batendo, batendo. Você ser católico é normal, até ser evangélico é normal. Mas quando você usa fio de contas, ó, já é um olhar diferente. E eu consegui ultrapassar essa barreira”, comenta Patrícia.

No último dia 7 de setembro, no dia do Grito dos Excluídos e Excluídas, manifestantes realizaram um ato dentro do território. Faixas diziam ‘não ao racismo’ e alertavam sobre a necessidade da aplicação efetiva da lei 10.639, que trata do ensino de história e cultura africana em escolas públicas, um dos temas abordados pela comunidade.

Na avaliação da Mãe Patrícia, a demora de uma solução para a situação pode ser lida como racismo religioso. A Roça atua há sete anos e tem parceria com vários movimentos sociais, entre eles a União Brasileira de Mulheres. E desde o início da sua existência tem fomentado debates sobre legalização do aborto, agroecologia, direito das mulheres, entre outros. 


Foto: Arquivo Pessoal

Próximos passos

Através de uma articulação da Comissão dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, haverá, na próxima quarta-feira (25), uma reunião online entre a prefeitura, comunidade, parlamentares gaúchos, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado, entre outras entidades para tratar da situação do território.  

“O que eu espero de todos esses órgãos públicos, do município, federação, é um trabalho, uma execução efetiva para o nosso povo. Porque o nosso povo não está nem abandonado, ele não é contado. Todo mundo fala que o Rio Grande do Sul é o lugar onde mais tem terreiros. E depois disso, o que mais é falado?”, questiona Mãe Patrícia. 

Diante da catástrofe, ela destaca que muitos estão abandonando suas crenças porque não têm mais força. “Não vê solução, não vê efetividade, não vê uma rubrica que possa ir buscar um recurso. Nós estamos pedindo reconhecimento, que as instituições se comprometam a cumprir, seja ele municipal, estadual ou federal, liberação de verba. Porque o setor agrícola, quando dá enchente, quando dá seca, eles têm carência, anuência de dívida, fundo perdido, e nós ainda não saímos dos porões. Porque nós nem vistos nós somos, e eu posso falar isso com propriedade. Eu sou filha de Xangô, eu não acredito na vida sem a justiça. Eu não acredito viver de uma forma ilícita. Eu acredito que a cura da nossa população é a civilidade, e o que está escrito no papel ser executado pelos nossos governadores.”

Apesar de ser o estado com a maior parcela de praticantes de religiões de matriz africana (dados do Censo de 2010 apontavam 166 mil pessoas do RS que se diziam pertencentes a Batuques, Quimbanda, Candomblé, Umbanda e outras declarações afrobrasileiras), o número de registros policiais por preconceito religioso teve aumento de 250% nos últimos três anos no RS: foram 20 casos em 2021 e 70 em 2023. 

Da Redação